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As provas produzidas por meios ilícitos e sua admissibilidade no Processo Penal

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21/08/2005 às 00:00
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6 PROVA ILÍCITA POR DERIVAÇÃO

            Questão de vital importância e que se encontra inserida no tratamento das provas ilícitas é a chamada "prova ilícita por derivação", que, conforme Grinover [142], "...diz respeito àquelas provas em si mesmas lícitas, mas a que se chegou por intermédio da informação obtida por prova ilicitamente colhida".

            A partir desse conceito, seriam ilícitas por derivação, como exemplifica Avólio, aquelas provas colhidas através de uma busca e apreensão, regularmente procedida, mas que só se tornou possível a partir de elementos fornecidos mediante tortura do suspeito ou de uma gravação telefônica clandestina [143].

            A questão que se coloca é se essas provas, obtidas licitamente, mas que derivaram de provas ilícitas, podem produzir efeitos ou se devem ter a mesma sorte das provas ilícitas, sendo banidas do processo.

            Essa questão, como assevera Torquato Avólio, ainda não foi pacificada, seja no direito brasileiro seja no direito comparado [144], suscitando amplas discussões, de modo a determinar os limites dessa vedação. A questão é delicada e tendo a Constituição deixado o espaço aberto a discussões, ficará a cargo da jurisprudência brasileira fazer uma construção jurisprudencial a esse respeito [145].

            6.1 DOUTRINA AMERICANA – TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE VENENOSA

            Nascida das decisões da Suprema Corte Norte Americana, a doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada ou fruits of the poisonous tree, como é conhecida na América do Norte, determina que os vícios da planta se transmitem para todos os seus frutos [146]. Desta forma, seriam tidas como ilícitas todas as provas que, conquanto colhidas de forma lícita, sejam derivas de provas ilícitas.

            Urge ressaltar que, no tocante à vedação às provas ilícitas, o sistema americano busca, com ajuda das proibições de valoração da prova, identificar os limites das atividades admissíveis por parte da investigação policial, visando, claramente, coibir atividades policiais em desconformidade com a Constituição. Diferentemente, o sistema alemão maneja postulados de direito material a fim de delimitar a extensão dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, com o fim precípuo de conjugá-los de forma harmônica dentro do sistema jurídico [147].

            Mas mesmo no direito americano, a doutrina do fruits of the poisonous tree não tem caráter absoluto, sendo possível identificar na jurisprudência norte americana alguns temperamentos, que se configuram em exceções à dita doutrina de exclusão.

            Danilo Knijnik, analisando o tema, descreve quatro exceções à aplicabilidade da doutrina em comento. A primeira refere-se à chamada "Limitação da Fonte Independente" ("The Independent Source Limitation"), a qual determina que "os fatos obtidos através de uma violação constitucional não seriam, necessariamente, inacessíveis ao tribunal, desde que pudessem ainda ser provados por uma fonte independente". Não se trata de mera possibilidade de se obter a prova por fonte independente, não conexa com a forma ilícita, mas elementos fáticos que possibilitem obter a prova sem a ilicitude [148].

            A segunda exceção, chamada de "Limitação da Descoberta Inevitável" ("The Inevitable Discovery Limitation"), segundo a qual "a prova decorrente de uma violação constitucional poderia ser admitida, conquanto fosse ela, inevitavelmente, descoberta por meios jurídicos". Esclarece o autor que "não se trata, aqui, de saber se a prova obtida foi adquirida com abstração ou não da árvore venenosa, como no caso anterior. Ao contrário, a prova a ser admitida nessa hipótese é inconstitucional (...). A questão é avaliar se, mesmo assim, essa prova seria hipoteticamente encontrada por meios jurídicos". Incumbe à acusação o ônus de demonstrar, através de fatos concretos, que a prova seria, inevitavelmente, descoberta por meios legais [149].

            A terceira exceção, denominada de "Limitação da Descontaminação" ("The Purged Taint Limitation"), refere-se aos casos em que embora haja uma prova ilícita "poderá intervir no processo de apropriação um acontecimento capaz de purgar o veneno, imunizando assim os respectivos frutos obtidos". Ocorre a intervenção de um fato independente, rompendo ou tornando secundários os vínculos da prova com a ilicitude original como, por exemplo, a posterior confissão do acusado ou de terceiro, com observância dos direitos fundamentais. colhida licitamente, e a primeira, obtida de forma ilícita [150].

            A quarta e última exceção, refere-se à "Limitação de Boa-Fé" ("The Good Faith Exception"), segundo a qual exclui-se a prova ilícita nos casos em que a autoridade policial crê, sinceramente, que sua atuação está observando os direitos fundamentais do cidadão, como no caso de cumprimento de um mandado que, posteriormente, é invalidado [151].

            Cumpre ressaltar que as duas últimas exceções à contaminação da prova derivada, especialmente a que se refere à "Limitação de Boa-Fé", são menos comuns de serem encontradas na jurisprudência da Suprema Corte Norte Americana.

            Constata-se que mesmo na jurisprudência norte americana a doutrina dos frutos da árvore venenosa comporta abrandamentos. Portanto, cabe determinar se a referida doutrina é compatível com o sistema jurídico brasileiro e se aqui, como lá, são aplicáveis as mesmas exceções à exclusão da prova ilícita por derivação.

            6.2 POSIÇÃO BRASILEIRA

            No Brasil, Ada Pellegrini Grinover [152] manifesta-se no sentido de que "na posição mais sensível às garantias da pessoa humana, e conseqüentemente mais intransigente com os princípios e normas constitucionais, a ilicitude da obtenção da prova transmite-se às provas derivadas, que são, assim, banidas do processo". Mas lembra que, mesmo na jurisprudência da Suprema Corte Norte Americana, existem causas que excepcionam a vedação à prova derivada de outra prova ilícita, mencionando as duas primeiras exceções aludidas no item anterior.

            No mesmo sentido é a posição de Avólio [153], afirmando que "se a prova ilícita tomada por referência comprometer a proteção de valores fundamentais, como a vida, a integridade física, a privacidade ou a liberdade, essa ilicitude há de contaminar a prova dela referida, tornando-a ilícita por derivação, e, portanto, inadmissível no processo". E conclui dizendo que:

            A questão de fundo não difere em se tratando de provas obtidas ilicitamente e provas ilícitas por derivação. Haverá, sempre, uma referência constitucional, cujo enfoque deverá ser o das liberdades públicas. Qualquer outra concepção da matéria, atrelada ao dogma da verdade real ou divorciado de uma visão político-constitucional do processo penal, é de se reputar superada.

            Mirabete, analisando o tema, dispõe que "tratando-se de prova ilícita e, na falta de regulamentação específica, tem-se defendido a tese de que o art. 573, 1º [154], do CPP, consagra a regra do direito americano fruits of poisonous tree..." [155].

            Tornaghi, sobre o assunto, assume posição oposta, afirmando que devem ser levadas em consideração as provas legalmente obtidas seguindo-se as indicações dadas pelas ilegalmente conseguidas [156].

            Em decisão anterior à Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal já havia sinalizado para a inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, contrariando o voto do relator, determinando não só o desentranhamento dos autos das gravações clandestinas, como o trancamento do inquérito policial, por inexistirem nos autos outros elementos não viciados que justificassem a continuidade da investigação criminal [157].

            Após a promulgação da Constituição de 1988, destacam-se duas decisões do Supremo Tribunal Federal, de grande importância para o tratamento das provas ilícitas e daquelas que dela tenham derivado, as quais afastaram a incidência da doutrina dos frutos da árvore venenosa, declarando a incomunicabilidade da ilicitude da prova originária às provas dela derivadas.

            A primeira decisão refere-se ao HC 69.912-0/RS [158], na qual votaram pela licitude da prova decorrente da ilícita os Ministros Carlos Veloso, Paulo Brossard, Sydney Sanches, Nery da Silveira, Octávio Gallotti e Moreira Alves; votaram contrariamente a admissibilidade da prova derivada da ilícita os Ministros Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Francisco Rezek, Ilmar Galvão e Marco Aurélio de Mello. Pela maioria de seis votos a cinco declarou-se a licitude da prova derivada. A segunda decisão é referente à Ação Penal 307-3/DF [159], que também confirmou a posição anterior [160].

            Ressalte-se que a decisão no HC 69.912-0/RS foi posteriormente anulada, face à participação no julgamento de ministro impedido. Em novo julgamento, houve empate, já que o ministro impedido era partidário da tese da licitude da prova derivada, o que acarretou a concessão do habeas corpus, já que o empate favorece o paciente.

            Essa decisão não alterou a posição majoritária da Corte pela licitude da prova ilícita por derivação, o que foi confirmado na Ação Penal 307-3/DF. Entretanto, com a aposentadoria do Paulo Brossard, adepto da tese da admissibilidade, a questão ficou pendente de novo pronunciamento do Pretório Excelso, já com a participação do Ministro Maurício Corrêa. Esse pronunciamento veio com decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, invertendo-se a posição anterior [161], passando a adotar a teoria do "fruits of poisonous tree", reconhecendo a ilicitude das provas derivadas de provas obtidas por meios ilícitos, ainda que tenham sido colhidas licitamente [162].

            Mas o que de mais importante emerge da decisão no HC 69.912-0/RS e das decisões subseqüentes versando sobre a teoria do "fruits of poisonous tree" não é o fato de a Suprema Corte ter firmado posição que repudia as provas derivadas de provas ilícitas, mas sim os fundamentos empregados pelos grupos de ministros. Knijnik [163], a esse respeito afirma que:

            Percebendo-se, destarte, a concepção processual-formalística do Direito americano, fechado às concessões e comparações entre os bens jurídicos envolvidos, e, de outra, a perspectiva material, bem mais flexível, do Direito Alemão, sensível às circunstâncias do caso concreto, verifica-se que na decisão do Supremo Tribunal Federal sob exame, em verdade, a polêmica que se estabeleceu foi entre duas orientações jusfilosóficas diversas, uma contenda entre dois discursos possíveis, mas dificilmente conciliáveis.

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            O debate travado foi entre os adeptos da concepção americana de exclusão de provas ilícitas, ligada muito mais à determinação dos limites de atuação da autoridade policial do que propriamente à proteção a direitos fundamentais e sua adequada convivência dentro do sistema jurídico, e os adeptos do modelo alemão, preocupado em garantir a convivência dos direitos fundamentais que, irremediavelmente, entram em conflito, impondo ao julgador que, sopesando os bens jurídicos envolvidos, restrinja o mínimo possível um deles, de modo a dar a máxima efetividade ao outro.

            Essas duas posições antagônicas e, a princípio, inconciliáveis, podem ser vistas, segundo Knijnik [164], em trechos dos votos dos eminentes ministros. Do voto do Min. Sepúlveda Pertence pode-se extrair trecho que demonstra, claramente, sua inclinação para o modelo americano de exclusão de provas, nos seguintes termos:

            "Não é que, nestas bandas, a persecução penal, algum dia, tivesse sido imune à utilização de provas ilícitas. Pelo contrário. A tortura, desde tempos imemoriais, continua sendo a prática rotineira da investigação policial da criminalidade das classes marginalizadas, mas a evidência de sua realidade geralmente só choca as elites, quando, nos tempos da ditadura, de certo modo se democratiza e violenta os inimigos do regime, sem discriminação de classe (...). Nossa experiência histórica, a que já aludi, em que a escuta telefônica era notória, mas não vinha aos autos, servia apenas para orientar a investigação, é a palmar evidência de que, ou se leva às últimas conseqüências a garantia constitucional, ou ela será facilmente contornada pelos frutos da informação ilicitamente obtida (...). De fato, vedar que se possa trazer ao processo a própria degravação das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que, sem tais informações, não colheria, evidentemente, é estimular e não reprimir a atividade ilícita de escuta e de gravação clandestina de conversas privadas".

            Por outro lado, o discurso do Min. Paulo Brossard parte em direção oposta, tratando a matéria sob a ótica alemã da ponderação de valores e da flexibilização dos direitos fundamentais. Diz o Ministro:

            "Os direitos, via de regra, não são absolutos, e o seu exercício não exclui limitações e temperamentos mediante o denominado poder de polícia (...). A Constituição revela atenção particular em relação aos delitos relacionados com o tráfico de entorpecentes e drogas afins, a elas se referindo mais de uma vez (...) o comércio de drogas não conhece fronteiras, e sua força expansiva não encontra rival, tendo em vista a lucratividade que oferece".

            No mesmo sentido é o discurso do Min. Sydney Sanches:

            "Ora, o processo criminal não é um ente abstrato, mas, sim, instrumento para apuração do crime, dos fatos, da autoria do ilícito (...). Cumpre, ademais, ter presente, no exercício da jurisdição, que se está a examinar um caso concreto e não a discutir, academicamente, uma tese, uma quaestio juris (...). Não é cabível, com a devida vênia, que o Supremo Tribunal Federal firme solução à tese dessa gravidade, no sentido de anular o processo condenatório, mesmo existindo outras provas, inclusive a apreensão da substância entorpecente em poder do traficante".

            O precedente jurisprudencial apenas lançou o problema para a comunidade jurídica, e não analisou qual dos discursos é o mais adequado ao Direito brasileiro. Se a teoria dos frutos da árvore venenosa for adotada, não caberá qualquer flexibilização da vedação constitucional, ainda que seja para combater a criminalidade mais grave. Adotando-se o discurso do Direito alemão, será possível ponderar bens jurídicos, restringindo-se um em benefício de outro [165].

            É de se ressaltar que o legislador constituinte, ao dispor que "são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos", parece ter adotado a doutrina americana, já que utilizou um termo indicativo de que não só as provas ilícitas, mas também aquelas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis [166]. Se alguém utiliza informações fornecidas por uma prova ilícita pra conseguir outras provas, estas serão, ao menos indiretamente, ilícitas, já que a ilicitude cometida no processo de obtenção dessa prova satisfaz a previsão constitucional.

            A posição do Supremo Tribunal Federal, conquanto tenha adotado a teoria dos frutos da árvore venenosa, não o fez por completo, já que em suas decisões deixou de analisar a questão da adequação desse meio de exclusão de provas ao sistema processual brasileiro, que se assemelha ao sistema alemão [167]. Também não foi objeto de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal e nem da maioria da doutrina a questão das exceções à exclusão das prova derivadas de provas ilícitas, adotadas pela jurisprudência norte americana. Se o Brasil adotar a doutrina do fruits of poisonous tree, também terá que analisar, como conseqüência lógica, as regras de exceção que essa doutrina tem em sua origem.

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Sobre o autor
José Carlos do Nascimento

militar em Curitiba (PR), bacharel em Direito pela PUC/PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, José Carlos. As provas produzidas por meios ilícitos e sua admissibilidade no Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 779, 21 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7180. Acesso em: 18 abr. 2024.

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