I) DO RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MACULADOS
Trata-se da análise da possibilidade de tipificação do crime quando do recebimento de honorários de advogado maculados, ou seja, que originam-se de infrações penais, pelos serviços prestados.
O tema reflete em diversas soluções na doutrina, com resultados e pontos de partida diferentes. Sendo assim, serão analisados os posicionamentos mais relevantes, com suas principais críticas.
O alvoroço doutrinário se perfaz na redação do Art. 1º da Lei nº. 9.613/98, a qual, em seu §2º, I, afirma que, quanto ao delito de lavagem de capitais: “Incorre, ainda, na mesma pena quem utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”.
Evidente que, na análise literal, o advogado utiliza valores provenientes de infração penal em suas operações financeiras se recebe honorários para defender sujeitos que têm como sua única fonte de renda o crime. No entanto, a incidência estrita do dispositivo tem efeito catastrófico, com extinção dos advogados criminalistas (CALLEGARI e WEBER, 2014, p. 119).
Sendo assim, a doutrina brasileira e estrangeira decompôs a solução em sabores diferentes:
Deveras, há quem diga que a solução desses casos deve ser estabelecida ao nível do tipo objetivo – a denominada solução objetiva do tipo – local hábil ao manejo de algumas teorias, tais como a adequação social, a redução teleológica do tipo penal, a imputação penal objetiva e as ações neutras, cotianas ou standard. De outro lado, existem autores que sustentam que o problema encontra resposta no elemento subjetivo do tipo penal – a chamada solução do dolo. Finalmente, citem-se aqueles que enxergam, no caso, hipóteses que dão azo à incidência de causas justificantes, como, por exemplo, o estado de necessidade e o exercício regular de direito (GRANDIS, 2013, p. 170-171).
Convém salientar que, à conclusão, será exposto o posicionamento do autor, ainda que no correr do artigo teça-se comentários.
Além disso, independente do fecho do presente artigo, é necessário observar que eventuais medidas assecuratórias e a ulterior perda dos valores atinentes aos honorários advocatícios em favor da União ou dos Estados, bem como a obrigação administrativa de notificação de atividades suspeitas, não são objeto a ser debatido neste foro. Sabidamente é efeito da sentença condenatória a perda de todos os bens, valores e direitos relacionados, direta ou indiretamente, ao delito de lavagem de capitais, ressalvado o direito do lesado e do terceiro de boa-fé, porém não será alvo de discussão a figuração, ou não, dos honorários do advogado como bem imune aos efeitos da sentença condenatória de seu cliente, bem como as implicações administrativas do exercício da atividade advocatícia (LIMA, 2012, p. 300-303).
II) SOLUÇÃO OBJETIVA DO TIPO
As teorias elencadas no âmbito da solução objetiva buscam resolver a imputação do advogado à prática do delito da lavagem de capitais baseadas no tipo objetivo. Então utilizam como base o objeto jurídico do crime e circunstâncias alheias ao aspecto anímico, subjetivo.
Cabe esclarecer, em consonância com os futuros artigos publicados, que o tipo objetivo de um delito se traduz na descrição dos caracteres objetivos que limitam e identificam o teor da proibição penal. São eles o sujeito ativo, a conduta proibida (deduzida no verbo penal, no caso ocultar, dissimular, dentre outros), o objeto da conduta (jurídico ou real), as formas e meios da ação, dentre outros. Em síntese, compõem o tipo objetivo aqueles componentes que se encontram objetivados no mundo exterior, não na consciência do agente (BITENCOURT, 2012, p.134).
A) Teoria da imputação penal objetiva
A teoria de imputação objetiva se efetiva na análise do risco relevante e juridicamente proibido desencadeado por uma conduta de alguém (popularmente conhecido como princípio do incremento do risco). Trata-se de determinar quando a lesão de um interesse jurídico pode ser considerada diretamente efetuada por um sujeito que recaiu em um risco proibido (JESUS, 2015, p. 320)
Em contraposição à teoria da causalidade clássica, que destaca o resultado naturalístico, a tese em questão leva em conta o risco de lesão, que, no caso, se subdivide em permitido e proibido. O risco permitido é aquele em que, ainda que imerso em um fato jurídico relevante e eventualmente causando dano a outrem, o sujeito agiu dentro das normas legais, oferecendo para si e terceiros um risco tolerado e aprovado, tornando o fato atípico. Em contrapartida, o risco proibido procede quando o sujeito subverte o dever objetivo de cuidado, gerando um risco desaprovado e tipicidade na conduta exercida (JESUS, 2015, p. 321).
Adere-se ao âmbito de aplicação extensivo, adotado por parcela significativa da doutrina, no sentido de aceitar que os princípios da imputação objetiva sejam aplicáveis a todos os tipos de delitos, sejam eles materiais ou não (JESUS, 2015, p. 322).
Como ensina Eduardo Luiz Santos Cabette (2013), a tese não depende apenas do risco criado, mas do nexo entre risco e resultado:
Não prescinde de nexo causal e nem dos conteúdos finalísticos da ação, […] procura solucionar a questão da atribuição da responsabilização criminal por uma conduta a um indivíduo, mediante um critério objetivo referente ao ‘risco permitido’ e à correlação entre esse risco criado pelo agente e o decorrente resultado.
Rodrigo de Grandis (2013, p. 170) entende que a resolução do impasse da imputação do advogado encontra a ferramenta adequada na referida teoria.
Antes de adentrar o mérito, convém assentar que não existe escusa automática do delito de lavagem de dinheiro por ser praticado pelo advogado, já que é crime comum, em que o sujeito independe de capacidade especial de fato ou de direito. Desta forma, pode muito bem ser consumado pelo defensor, ao ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores provenientes de infração penal antecedente (GRANDIS, 2013, p. 174).
Acerca da teoria do risco objetivo, Rodrigo de Grandis (2013, p. 176) invoca que a missão do direito penal é a tutela dos bens jurídicos, portanto somente as condutas que são objetivamente perigosas, ou seja, que geram risco proibido ao bem jurídico, merecem atenção do aplicador da norma penal incriminadora. Por conseguinte, a análise da criação do risco e a verificação do risco no resultado buscam limitar a responsabilidade penal.
À baila, busca-se verificar o que é estimado como risco proibido ou permitido para a atividade advocatícia.
Nesse sentido, fica em evidência o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB) e o Código de Ética da Advocacia, que são os principais instrumentos nacionais para traçar o paradigma de risco para o advogado.
Em primeiro, a Lei nº. 8.906/2004 dispõe, em seus vários artigos, de maneira exaustiva, a atividade relacionada à advocacia. Pertinentes ao tema os Arts. 2º e 34 do referido diploma:
Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.§ 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.§ 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.[…]Art. 34. Constitui infração disciplinar:[...]XVII – prestar concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la;XVIII – solicitar ou receber de constituinte qualquer importância para aplicação ilícita ou desonesta;
Em segundo, o Art. 2º do Código de Ética e Disciplina da OAB:
Art. 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce.Parágrafo único. São deveres do advogado:I – preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade;II – atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé;III – velar por sua reputação pessoal e profissional;IV – empenhar-se, permanentemente, em seu aperfeiçoamento pessoal e profissional;V – contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis;VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios;VII – aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial;VIII – abster-se de: a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente; b) patrocinar interesses ligados a outras atividades estranhas à advocacia, em que também atue; c) vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso; d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana; e) entender-se diretamente com a parte adversa que tenha patrono constituído, sem o assentimento deste.IX – pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comunidade.[...]
Tecendo uma análise pormenorizada dos dispositivos em comento, especialmente no Art. 34 da Lei nº. 8.906/2004 e o Art. 2º, VIII, do Código de Ética e Disciplina da OAB, o risco seria considerado proibido se o advogado prestasse concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la, qual seja lavagem de capitais, ou solicitasse ou recebesse de constituinte qualquer importância para aplicação ilícita ou desonesta.
Sobre a configuração do risco proibido:
Situação diversa é aquela em que o advogado recebe honorários por serviços não prestados –dissimulação – ou os emprega em atividade ilícita, como, por exemplo, remetendo ao exterior por intermédio de uma operação “dólar-cabo” ou, ainda, comprando bens e registrando-os em nomes de terceiros desvinculados de seu círculo familiar. Deveras, neste caso, o advogado efetivamente cria um risco ao interesse do Estado em reduzir as possibilidades de o agente usufruir os bens obtidos com a perpetração de crimes e esse risco encontra-se desaprovado pelas normas que regulamentam a sua profissão (GRANDIS, 2013, p. 179).
No caso, o advogado que recebe honorários maculados desempenhará sua atividade profissional regularmente se não aplicá-los em atividade ilícita ou desonesta e não objetivando fraudar a lei, razão pela qual imputa-se risco permitido à sua conduta — que se coaduna com a teleologia da profissão e no âmbito de proteção da norma, pelo Art. 2° dos dois regramentos supracitados.
Logo, não vislumbrado risco proibido na conduta do advogado que presta serviços ao seu cliente e recebe honorários maculados, já que a administração da justiça, bem jurídico do delito, como sustentado no capítulo anterior, não foi submetida a risco desaprovado. Nota-se que a percepção de honorários e a prestação de serviços de origem advocatícia são naturais e necessários ao exercício da profissão de advogado, razão pela qual este não aumenta o risco de sua conduta ao exercê-la. Pelo contrário, o defensor atua dentro de suas prerrogativas legais apregoadas nos dispositivos supra. Dessarte, não se torna mais possível imputar ao advogado o crime de lavagem de dinheiro, ainda que, de fato, tenha recebido honorários proveniente de atividades criminosas (GRANDIS, 2013, p. 174).
Aliás, o advogado contribui para a plenitude do objeto jurídico que seria lesionado pela prática do delito de lavagem de capitais, já que é indispensável à administração da justiça e o é em função de prestar serviço público, exercer uma função social, contribuir, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador e assim por diante.
A.1) Condutas neutras, cotidianas ou standard
Relevante desdobramento da teoria da imputação objetiva na doutrina, pertinentemente apontada por Rodrigo Sánchez Rios (2010, p.154), é o estudo das condutas neutras, que são as atividades, dentro do risco permitido, sobretudo no caso do advogado no desempenho de suas prerrogativas, que são naturais ao exercício da profissão, ainda que acabem favorecendo a conduta delitiva de outrem.
Seguindo os exemplos do mesmo autor (2010, p. 153), a ação neutra se dá com o proceder “do contador ao lançar como despesas determinados gastos do seu cliente”, ou “do fornecedor de carne de uma empresa distribuidora ciente de que seu produto será comercializado sob precedência falsa de qualidade superior”. São, portanto, todas as condutas de terceiros que contribuem para o fato ilícito não manifestamente puníveis.
Em uma interpretação literal, as atividades standard poderiam ser vislumbradas como cumplicidade, já que favorecem o delito, mas não há, pela política criminal, possibilidade de tipificar e punir condutas inseridas no contexto social e cruciais para o desenvolvimento econômico do convívio em sociedade. O proceder cotidiano não possui o condão de lesar um bem jurídico, no caso a administração da justiça, por isso não pode ser proibido (RIOS, 2010, p. 154-159).
Aqui impera o princípio da idoneidade, que prescreve que eventual imputação de tipo penal às condutas neutras de sujeitos inseridos no meio social não geraria qualquer proteção ao bem jurídico, já que os serviços poderiam ser obtidos livremente com outros prestadores (RIOS, 2010, p. 210).
A ilustrar o preceito acima, cabe lembrar do exemplo do padeiro que vende pães que posteriormente serão envenenados por alguém para matar outra pessoa. Na circunstância, além de ser uma conduta neutra do padeiro, não é possível imputá-lo cumplicidade no crime de homicídio, visto que, à luz do princípio da idoneidade, o delinquente que comprou o pão poderia fazê-lo em qualquer outra padaria (LOBATO, 2005).
Sendo assim, na advocacia regular, mesmo que o advogado saiba da origem delitiva dos valores pagos a título de honorários, não há nenhuma possibilidade de punição ao fato, visto que é uma conduta cotidiana, neutra e dentro das atribuições do advogado, portanto atípica. Não se analisa o fator subjetivo da conduta, com dolo e culpa, mas o sentido delitivo da conduta, que é limitador dos comportamentos aprovados e os desaprovados penalmente (RIOS, 2010, p. 155).
Em final esclarecimento, o sentido delitivo se resume objetivamente na instigação e cumplicidade no delito alheio, caso em que operará regular tipificação (JOBIM, 2017, p. 198).
A.2) Proibição de regresso
À continuidade e suficiente entendimento do tema, importantíssimo levar em evidência os conhecimentos do professor Günther Jakobs quanto a limitação da responsabilidade criminal por meio da proibição do regresso.
Para o jurista, a proibição do regresso é o ponto de partida da discussão acerca da necessidade de limitar o âmbito do comportamento punível. Há proibição de regresso quando um sujeito auxilia na prática delitiva, mas não faz parte do sentido objetivo dessa, podendo ser distanciado deste. A proibição de regresso indica “o âmbito da intervenção delitiva no acontecimento e determina o campo da ‘não participação (punível)’”(CALLEGARI e WEBER, 2017, p. 203).
Mais claramente, a proibição de regresso é a vedação de recorrer e imputar a prática de um delito a pessoas que “física e psiquicamente” poderiam ter evitado o curso da ação ou omissão lesiva e, apesar da não evitação, não violaram seu papel de cidadãos e se comportam legalmente (CALLEGARI e WEBER, 2017, p. 204).
Em enxuta análise, depreende-se que a teoria da imputação objetiva, causas neutras e proibição de regresso são um pacote, um conglomerado. Elas juntas servem como fundamento forte para o afastamento da responsabilização do advogado, que pratica a atividade advocatícia como conduta neutra, invocando a proibição do regresso ao aplicador da norma penal quando do recebimento de honorários maculados no universo da teoria da imputação objetiva.
B) Teoria da adequação social e adequação profissional
O princípio da adequação social é outra das soluções dadas à problemática no âmbito objetivo.
Idealizada por Hanz Welzel, a doutrina estabelece que uma conduta, apesar de estar inserida em um tipo penal incriminador, não será considerada típica se for socialmente adequada, ou seja, se a ordem social estiver de acordo por seus parâmetros éticos (CUNHA, 2015, p. 79).
Conforme Rogério Sanches Cunha (2015, p. 79) dispõe, os objetivos do princípio são “restringir o âmbito de abrangência do tipo penal (limitando sua interpretação ao excluir as condutas socialmente aceitas)” e “orientar o legislador na seleção dos bens jurídicos a serem tutelados”, descriminalizando algumas condutas.
É notável que a adequação social e imputação objetiva guardam semelhança no espírito de não interpretar o tipo penal de maneira isolada da realidade social ou de maneira disfuncional. Entretanto, a fundo, a teoria da imputação objetiva é mais completa, ao passo que, além de considerar a realidade fática e valorizar o fator risco, exige que o resultado produzido pela conduta do agente tenha relação com o risco criado (PRADO e CARVALHO, 2006).
Portanto, a principal crítica à utilização do critério da adequação social está na sua imprecisão, já que não se sabe exatamente o que é, ou não, socialmente adequado, sobretudo em um Estado Democrático. Este, por sua natureza, deve tolerar comportamentos diversos. Não há segurança jurídica para se tecer uma definição precisa sobre o socialmente adequado, até porque nem todas as condutas socialmente inadequadas serão típicas, bem como nem todas as socialmente adequadas serão atípicas (RIOS, 2010, p. 206-209).
Parece claro que o princípio da adequação social restou ultrapassada pela teoria da imputação objetiva, já que esta estabeleceu marcos substanciais com maior segurança jurídica e precisão para a delimitação de condutas corriqueiras na sociedade. Com a introdução do fator risco (permitido ou proibido) na imputação objetiva, a teoria da adequação social torna-se genérica e estereotipada, sem entender que a relevância penal de determinadas condutas depende de outras circunstâncias envolvidas, como nexo causal e resultado, abarcados pela análise objetiva. Atualmente, a teoria em pauta é muitíssimo usada como mero critério hermenêutico, já que os efeitos são obtidos, na prática, a partir de interpretação teleológico-funcional da norma (KAWAKAMI, 2015, p. 88).
Sendo assim, a imputação objetiva detém a mais vasta aplicabilidade e fornece critérios objetivos mais claros para determinar o risco. Em síntese, enquanto a adequação social consegue adentrar a seara do risco permitido e proibido, a imputação objetiva avançou para um segundo nível, buscando a correlação entre o risco e o resultado criado, e até um terceiro nível, sobre o âmbito de proteção da norma (CABETTE, 2013).
Em comparação à teoria das causas justificantes, que será analisada ainda nesse artigo, tem-se que, enquanto a adequação social busca tornar as condutas atípicas, as causas de justificação buscam criar uma “permissão especial” para realizar condutas originariamente típicas (KAWAKAMI, 2015, p. 87).
Advém da adequação social o princípio da adequação profissional, pensada pelo jurista Winfried Hassemer, que é voltada especialmente para profissões “ordenadas ou estruturadas”, que possuem normas legais, ou não, reguladoras da sua atividade. Conforme a derivação, busca-se determinar o risco permitido a partir da interpretação normativa das condutas corretas e adequadas (KAWAKAMI, 2015, p. 88).
A crítica fundamental à vertente da adequação profissional é calcada na esteira de que toda atividade automaticamente se tornaria uma profissão e, com isso, aumentariam as possibilidades de abusos em esferas profissionais. Portanto recai, a grosso modo, no mesmo defeito da adequação social, na medida que traz uma régua imprecisa à mesa no momento de determinar o critério de admissão de normas profissionais e atividades da vida cotidiana (KAWAKAMI, 2015, p. 89)
C) Redução teleológica do tipo
A seguir, vislumbra-se interessante contribuição da doutrina, que pode servir de etapa para a imputação objetiva na lavagem de capitais, já que escapa do teor literal da norma e firma uma interpretação mais profunda, muito útil em termos de política criminal.
Também chamada de lógica ou volunta legis, a interpretação teleológica da lei consiste na indagação acerca da sua finalidade.
O intérprete, neste caso, procura entender o sentido legal, investigando os diversos motivos que determinam a sua existência (JESUS, 2015, p. 80).
Como bem preceitua Damásio de Jesus (2015, p. 81-82), a interpretação teleológica se vale do(a): ratio legis, que é a razão finalística da norma, alcançada pela consideração do bem jurídico da mesma; elemento sistemático, cotejando o preceito normativo com as demais normas que tratam do mesmo tema, no conjunto do ordenamento; elemento histórico, procurando as origens históricas da lei, sua evolução, modificações e eventuais debates parlamentares e exposições de motivos que fizeram-na existir; direito comparado, para entender como o mesmo tema é tratado em outros países; elemento político-social (extrapenal), vislumbrando a adequação da lei à ininterrupta mudança da sociedade, levando em conta as condições de vida, a harmonia com as instituições políticas, além de outros; por fim, elementos extrajurídicos, com investigação de aspectos de outras áreas de conhecimento, como psiquiatria, antropologia, dentre outros.
No caso da Lei de Lavagem de Dinheiro, estuda-se que o legislador objetivou impedir a dissimulação ou ocultação de valores, bens e direitos frutos de infração penal anterior, imputando os autores da prática. Consoante outro artigo a ser publicado, o bem jurídico tutelado pela norma é a administração da justiça.
Nesse sentido, o item 77 da exposição de motivos da Lei de Lavagem de Dinheiro demonstra o que tenta-se evitar:
77. Como se sabe, entre a prática da atividade ilícita e o usufruto dos recursos dela originados, há a necessidade de que seja realizada uma série de operações financeiras e comerciais com o fito de dar a esses recursos uma aparência de valores obtidos licitamente. Portanto, o móvel principal de todo o procedimento de lavagem de dinheiro será encobrir, de qualquer forma, a origem ilícita desses recursos e apagar os vestígios que permitam às autoridades públicas descobrir essa origem.
Deste jeito, se a pretensão do legislador é garantir o ideal funcionamento da administração da justiça, é preciso haver a garantia do devido processo legal, evidentemente englobando os interesses da acusação e da defesa, com os princípios do contraditório, ampla defesa e livre escolha de defesa técnica pelo acusado. Como resultado, o impedimento da atuação do advogado, que no nosso ordenamento é tido como indispensável à administração da justiça, afetaria os próprios interesses originários da norma. A administração da justiça, em seu sentido amplo, inclui a assistência técnica legal prestada pelo advogado, recebendo ou não honorários maculados (RIOS, 2010, p. 214).
A crítica fundamental a essa tese é de que não há unidade doutrinária acerca do bem jurídico tutelado pela norma, como pincelado aqui e será tratado em outro artigo sobre o tema.
Sobre o objeto jurídico, a doutrina se divide principalmente entre ordem socioeconômica e o sistema financeiro, o bem jurídico da infração penal antecedente e a administração da justiça, razão pela qual a interpretação teleológica da norma pode se mostrar, em alguns cenários, insuficiente para não tipificar a conduta do advogado pelo recebimento dos honorários.
A título de exemplo, se for considerado como bem jurídico a ordem socioeconômica e o sistema financeiro, de acordo com alguns o advogado pode ser imputado pelo crime, já que a aquisição de fruto de infração penal distorce os rumos da economia, então comete lavagem de capitais — independentemente de sua conduta coadunar com a administração da justiça. Em outra perspectiva, se considerado como objeto jurídico do crime o bem jurídico do crime antecedente, também faz incidir a norma penal incriminadora, já que as movimentações de bens e valores de crime antecedente pelo advogado objetivamente ofendem o bem jurídico do crime ou contravenção penal originários (KAWAKAMI, 2015, p. 90-91)
Outro problema da adoção da redução teleológica do tipo penal está no direito comparado, que é um dos fatores que também pode ser considerado para esse tipo de leitura da norma. Como será visto no próximo capítulo, a jurisprudência internacional não é uníssona em relação à imputação do advogado pelo recebimento de honorários maculados, ainda que de boa-fé.