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O advogado é lavador de dinheiro?

A possibilidade de imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados

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26/02/2019 às 16:00
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III) SOLUÇÃO SUBJETIVA DO TIPO

Consoante será trazido em artigos subsequentes, o elemento anímico do delito de lavagem de dinheiro é o dolo, direto ou eventual, no manejo de bens e valores. Ou seja, é a intenção (animus) de ocultar ou dissimular esses bens, obstruindo a administração da justiça, que é o bem jurídico tutelado.

A) Da Intenção do Advogado

Com bastante receptividade doutrinária está a solução subjetiva, isto é, no elemento anímico do recebimento de honorários maculados pelo advogado. Sob esta perspectiva, a imputação da atuação profissional passa a se tornar alvo do tipo subjetivo, unicamente do dolo direto, então já se parte de notório problema, excluindo o dolo eventual (RIOS, 2010, p. 224).

Nesta seara, o defensor só exacerba seus limites de atuação quando atua com dolo direto, com o intuito de praticar as condutas descritas no tipo penal, ou seja, com intenção, agora subjetivamente verificada, de lavar dinheiro.

O posicionamento não encontra fortes alicerces fundamentais por diversos motivos.

Primeiro é que o dolo eventual é aceito como elemento subjetivo naqueles delitos em que não conste expressamente o contrário e, no caso brasileiro, não só restou silente a lei acerca da temática como tem se entendido na doutrina e jurisprudência pela possibilidade de tipificação da conduta com o dolo eventual. Não seria suficiente para afastar a figura dolosa do advogado, que então recairia na figura dolo eventual (RIOS, 2010, p. 225).

Segundo que a mera solução subjetiva não impediria que o advogado fosse investigado em inquérito policial e posteriormente processado pelo delito de lavagem de capitais junto do seu cliente. Naturalmente, deixar a resolução da problemática para o plano interno ocasionará a abertura de inquérito policial, visando encontrar indícios de autoria e materialidade da conduta do advogado. A própria existência da persecução penal pré-processual já fere gravemente a esfera da atividade profissional, com violação dos cânones básicos do exercício da advocacia e dos pressupostos do devido processo legal (RIOS, 2010, p. 226; CALLEGARI e WEBER, 2014, p. 117).

Em terceiro lugar, resta levantar os obstáculos da seara probatória, na medida que a constatação do elemento anímico não acontecerá a partir da presunção, mas de uma avaliação objetiva dos elementos de convicção fornecidos. Portanto, ainda que se opte pela perspectiva subjetiva, se elucidará, por meio da prova, se o agente perpassou os limites do risco permitido e atingiu o risco proibido, deixando de lado os elementos anímicos. A teoria, ainda que possua validade intelectiva, praticamente acaba sendo substituída pela da imputação objetiva (RIOS, 2010, p. 226).

A fim de solucionar algumas dessas problemáticas, invoca-se o dolo de suspensão processual, que consiste em dar imunidade de investigação ao advogado, devendo este gozar de tranquilidade e confiança na linha de defesa, dedicando-se a dar cumprimento às prerrogativas do seu mandato na gerência da defesa (RIOS, 2010, p. 227).

Em outra mão, poder-se-ia invocar, como se faz na legislação alemã, dispositivos legais que têm o intuito de afastar os profissionais que atuam em favorecimento ou encobrimento pessoal ou real do seu cliente (RIOS, 2010, p. 228).

Ao que soa, é uma solução louvável, podendo servir inclusive de substrato para a teoria das causas neutras, visto que a clara identificação do elemento anímico facilitaria o processo de reconhecer o sentido delitivo quando o sujeito recai em risco proibido, sobretudo por conta da solidarização consciente e voluntária dos danos do delito (KAWAKAMI, 2015, p. 75).

Impera resolver que as críticas apontadas não almejam o descarte completo da seara subjetiva do delito, mas a sua interpretação conjunta com o tipo objetivo, que dispõe de maiores poderes probatórios. O julgamento de casos tão, e somente, baseado no elemento subjetivo, é temerário e também defeito metodológico de decisões. Evidentemente, a natural análise e colocação do problema deve ser feita no fundamento à periculosidade objetiva da conduta, não comportando a cogitação subjetiva em primeiro momento (KAWAKAMI, 2015, p. 76).

A ilustrar a contribuição do elemento subjetivo a suplementar a teoria das causas neutras (logo da imputação objetiva), teria sentido delitivo o agir do padeiro que informa, com segurança e certeza de que venderá pães para cometimento de delito, o tipo de produto predileto da vítima, gerando tipicidade na conduta (KAWAKAMI, 2015, p. 74).


IV) SOLUÇÃO DAS CAUSAS JUSTIFICANTES

As causas justificantes, causas de justificação, excludentes de antijuridicidade ou causas de exclusão do crime, dentre outras denominações, surgem na lei e na doutrina como formas de resolver um conflito entre um bem jurídico atacado por conduta típica e outros interesses valiosos e dignos do nosso ordenamento jurídico (BITENCOURT, 2013, p. 402).

Embora a doutrina encontre outras hipóteses extralegais, o Código Penal, em seus Arts. 23, III, 24 e 25, acolheu expressamente as causas justificantes de legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular do direito e estrito cumprimento de dever legal. O efeito de uma causa justificante está na conversão do fato típico em lícito, impedindo a imputação do agente (BITENCOURT, 2013, p. 402).

Entende-se como uma solução híbrida do problema em evidência, visto que pauta-se em elementos subjetivos e objetivos que, juntos, excluem a antijuridicidade. Portanto não basta que, objetivamente, os pressupostos tenham sido preenchidos, mas que o agente tenha consciência de agir acobertado por uma excludente, ou seja, sabendo da situação que motiva a justificante (JESUS, 2015, p. 404).

Na esteira dos ensinamentos de Damásio de Jesus (2015, p. 405), a ausência da junção do elemento objetivo e subjetivo tornam, ao contrário da teoria, a conduta ilícita.

No caso, aplica-se ao advogado que recebe honorários maculados o exercício regular de direito, previsto no Art. 23, III, do CP.

Para definir o instituto utiliza-se as palavras de Wiliam Wanderley Jorge (2005, p. 272-273), que afirma que:

No exercício regular de direito há um poder, uma faculdade[…]. Fá-lo querendo, em face de uma faculdade, que a lei lhe concede, mas pela sua própria iniciativa, pelo seu próprio espírito de educação política ou de solidariedade humana.

Assim sendo, o sujeito, ao atuar como defensor do acusado de infrações penais, em recebendo honorários maculados e sabendo de suas prerrogativas legais e do agir dentro de exercício regular do seu direito, estará acobertado pelo instituto.

O reconhecimento da preponderância do direito à ampla defesa, devido processo legal e da presunção da inocência ante a possibilidade de incriminação da conduta do advogado, respaldado pelo exercício regular de direito (causa justificante), que presta serviço indispensável à administração da justiça, utiliza como alicerce fundamental o Art. 263 do Código de Processo Penal e Arts. 133 e 5º, LIV, LV e LVII, da Constituição Federal, deduzidos infra (CALLEGARI e WEBER, 2017, p. 213).

No Código de Processo Penal:

Art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.Parágrafo único. O acusado, que não for pobre, será obrigado a pagar os honorários do defensor dativo, arbitrados pelo juiz.

Na Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…]LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;[…]LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
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O advogado só se encontra abarcado pela benesse da causa de justificação se receber honorários bona fides, isto é, por serviço efetivamente prestado de boa-fé. Evidentemente, aqueles valores recebidos de maneira dissimulada,v.g., a fim de ocultar o capital, não têm o respaldo da escusa aqui trazida, e, pelo contrário, merecem tais advogados a regular imputação pelo delito de lavagem de capitais. Nestes casos, a conduta difere das garantias da nossa Constituição Federal quanto à indispensabilidade do advogado à administração da justiça (Art. 133), bem como do Pacto São José da Costa Rica, recepcionado pelo ordenamento brasileiro, que garante a livre escolha do advogado, com impossibilidade de condenação sem o que o réu seja julgado com seu procurador constituído (CALLEGARI e WEBER, 2017, p. 214).

Compatível com o já introduzido, a solução da justificação calca-se também no princípio da presunção de inocência fixada no direito processual. Desta maneira, o advogado poderia “justificar a aceitação dos honorários com base no próprio argumento da presunção de inocência do seu assistido”. Assim, a causa de justificação se dará em outro sentido: no interesse preponderante do juízo imparcial, em detrimento da persecução da conduta do advogado (RIOS, 2010, p. 232).

Enfim, o preenchimento do aspecto objetivo e subjetivo da causa de justificação se baseia no princípio da preponderância de interesses, dando maior relevância à garantia do direito à defesa, à presunção de inocência e à livre escolha de defensor, então indiferente quanto ao conhecimento da origem ilícita dos honorários que está recebendo, mas o advogado precisa saber que o faz dentro do seu direito.

A crítica fundamental à adoção da causa de justificação, especialmente no exercício regular de direito, segue o mesmo caminho do elemento subjetivo, que está no não impedimento de instauração de investigação preliminar por meio de inquérito policial. A exclusão de antijuridicidade, ao contrário da exclusão de tipicidade (que é o caso do risco permitido na teoria da imputação objetiva), não obsta a etapa pré-processual, inclusive quando objetivando posterior pedido de arquivamento (BRODT, 2005, p. 99).

Como já apontado, a própria existência de investigação já fere uma série de direitos do advogado e seu cliente, lesando a relação recíproca de confiança e a administração regular da justiça, em sentido amplo.

Por outro lado, eventual investigação em um caso de exclusão da tipicidade, como na imputação objetiva, geraria constrangimento ilegal, ensejador, v.g., de habeas corpus (BRODT, 2005, p. 100).


V) CONCLUSÃO

A doutrina apresenta diversas saídas significativas para a imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados. Desta forma, o profissional no exercício regular da profissão, na defesa, tem a faculdade de utilizar diversas teses a fim de proteger os seus interesses e de seu cliente.

Como tratado no decorrer do estudo, a tese de limitação do elemento subjetivo têm bastante receptividade na doutrina e na jurisprudência, visto que é defendido por alguns autores da literatura jurídica específica, como Brodt, e já foi objeto de decisão no Tribunal alemão Bundesverfassungsgericht (acompanhe meu perfil para saber mais), que hoje figura como referência internacional na abordagem de solução à imputação quanto aos honorários de origem delituosa.

Por outro lado, outros autores, como Kawakami, Rios, Callegari e Weber, entendem que melhores soluções encontram cadeira em diferentes articulações doutrinárias, como as de elemento objetivo, seja das condutas neutras, redução do elemento teleológico, adequação social, dentre outras, ou as de elemento misto, representado pelas causas de justificação.

Em confrontamento, segue-se a orientação da doutrina de Brodt e de Rios, no sentido de que melhores soluções seriam as que inviabilizassem o início de inquérito policial, portanto as que excluem a tipicidade da conduta, não sua ilicitude. Entende-se que a fase pré-processual investigativa do advogado, por si só, já fere inúmeras garantias recíprocas da relação advogado e cliente, bem como direitos do Estado Democrático.

Ao fim da análise das teses, cumpre ressaltar que a fuga pelo elemento objetivo do delito de lavagem de capitais, sobretudo em função da teoria da imputação objetiva e seus desdobramentos, é a que encontra massa na doutrina e nos trabalhos pesquisados. Por ter mais adeptos e, conforme análise no tópico pertinente, menos resistência dentre estudiosos e um selamento melhor da questão não somente quanto aos advogados, mas às demais profissões que se enquadram na ideia de condutas neutras (abarcadas pela análise teleológica do delito e o princípio da adequação social, do risco e da idoneidade), a alternativa é de merecido reconhecimento, com escopo de solucionar o problema aqui suscitado.

Será objeto de outro artigo a análise das decisões internacionais sobre o tema e projetos de lei de âmbito nacional, por isso importante que você nos siga, para acompanhar as novidades.

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Sobre o autor
Guilherme Schaun

Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Advogado criminalista. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal na Verbo Jurídico. Aprovado na OAB em Direito Penal e no Trabalho de Conclusão de Curso acerca da imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados. Orgulhosamente ex-estagiário do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHAUN, Guilherme. O advogado é lavador de dinheiro?: A possibilidade de imputação de responsabilidade criminal ao advogado pelo recebimento de honorários maculados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5718, 26 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72235. Acesso em: 26 abr. 2024.

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