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O delegado de polícia como garantia da segurança jurídica

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06/03/2019 às 10:15

Resumo:


  • O artigo aborda a importância da autonomia do delegado de polícia para garantir a segurança jurídica da sociedade.

  • Destaca a ilegalidade e inconveniência da realização de atividades de polícia judiciária por policiais militares não qualificados juridicamente.

  • Apresenta a evolução dos modelos policiais ao longo da história, destacando a separação das funções policiais entre polícia militar e civil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Inconstitucionalidade da Atuação Militar na Polícia Judiciária

Nos últimos anos, algumas funções típicas da polícia judiciária vêm sendo ilegalmente atribuídas a policiais militares, com graves prejuízos aos procedimentos e à segurança jurídica da sociedade. Mais grave que essa deformação é a concepção do chamado “ciclo completo”, no qual policiais militares atuariam desde o atendimento da ocorrência até a conclusão do procedimento investigatório administrativo. Os policiais militares são capacitados para o policiamento ostensivo fardado, isto é, para a polícia de segurança que atua preventivamente, mas não para os trabalhos de polícia judiciária.

Verificam-se, ainda, violações ao sistema processual penal brasileiro quando se autoriza a Polícia Militar a elaborar termos circunstanciados de ocorrência (TCOs), em evidente prejuízo à instrução criminal e às garantias individuais. O Provimento nº 9/2018 da Corregedoria da Justiça do Tocantins autorizou juízes de primeiro grau a conhecer TCOs elaborados por policiais militares. Esse provimento foi objeto de procedimento de controle administrativo no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que decidiu suspender a sua eficácia. O Supremo Tribunal Federal (STF) também já se pronunciou em casos semelhantes, como na ADI 5637/DF, na qual declarou a inconstitucionalidade da Lei Estadual de Minas Gerais nº 250/16, que atribuía à Polícia Militar a lavratura de termos circunstanciados de ocorrência. Segundo a Suprema Corte:

O art. 144. da CF/88, no seu art. 4º, dispõe a todas as letras, sem margem para interpretação que não seja a declarativa, incumbir às policias civis, obviamente estaduais, ressalvada tão somente a competência da União, ‘as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares’, inexistindo dúvida de que se está, aí, diante de princípio cuja observância não se podem furtar as unidades federadas, a teor da norma do art. 25. da própria Carta Federal, inexistindo, consequentemente, qualquer espaço que comporte a instituição, por ato normativo local, de outras funções que venham a permitir que os encargos constitucionais da Polícia Civil, no ponto, sejam atribuídos aos policiais militares estaduais, ainda que de modo restrito à execução do serviço de lavratura de Termos Circunstanciados, a cargo das Delegacias Policiais, o qual, portanto, há de presumir-se como implicitamente compreendido, outrossim, nas atividades de polícia judiciária.

Durante a discussão da referida ADI, os ministros do STF consideraram que a elaboração de um termo circunstanciado implica em juízo jurídico de avaliação dos fatos, por parte da autoridade policial, o que requer a intervenção de agente juridicamente capacitado. A Constituição Federal e a legislação são claras nesse sentido e não podem ser “revogadas” por atos que não provenham dos poderes constituinte e legislativo em seus devidos níveis.

A estrutura militar, fundada nos conceitos de disciplina e hierarquia, embora adequados e até essenciais para a guerra, tem-se revelado desastrosa no trato com a sociedade civil em tempos de paz. A disciplina militar não pode ser estendida aos civis, sob pena de afronta ao Estado Democrático de Direito, no qual a soberania pertence ao povo. Na democracia, todos são livres, e somente a lei pode criar proibições e obrigações. A liberdade é a regra; a restrição, a exceção. O espírito militar, embora eficiente para os assuntos da guerra, é incompatível com a persecução penal, que deve pautar-se pelo respeito à liberdade, e não por critérios rígidos de disciplina e hierarquia.

A guerra é uma anomalia que ainda subsiste na realidade mundial. Representa a ruptura do padrão civilizatório e constitui exceção, eventualmente necessária para a defesa da pátria. A paz, ao contrário, é a regra. Por isso, a população civil não pode ser submetida aos preceitos militares em tempo de paz. A disciplina e a hierarquia castrenses devem reger as corporações militares, mas não podem ser impostas à sociedade civil.

O policial militar é agente subordinado à legislação castrense, mas atua junto à população civil. Suas leis e regulamentos não alcançam o cidadão, que é protegido pela Constituição Federal em sua liberdade e em sua integridade física e moral. Por isso, no exercício da função de polícia de segurança, os civis não podem ser subordinados às normas e à cultura militares. Se o sistema de segurança pública instituiu as polícias militares, também estabeleceu que a atividade dessas corporações, na relação com a sociedade civil, deve estar sujeita ao crivo inicial de uma autoridade jurídica civil. O sistema processual penal brasileiro foi explícito ao determinar que uma autoridade policial civil presida os procedimentos administrativos investigatórios. Trata-se de uma garantia constitucional da cidadania, que impede que os civis fiquem sujeitos à legislação e à disciplina militar, sobretudo quando o ius libertatis está em jogo.

A autoridade policial é dotada de discricionariedade, conforme dispõe a Lei nº 12.830/13. Esse poder é necessário para que o delegado de polícia compatibilize a aplicação da lei aos casos concretos que lhe são apresentados. Compete-lhe avaliar e qualificar a ocorrência, requisitar perícias técnicas, ouvir testemunhas, vítimas e declarantes, enfim, conduzir a investigação criminal em conformidade com os ditames constitucionais e legais, mas com o discernimento indispensável à atividade de polícia judiciária. O delegado de polícia tem atribuição para decidir de acordo com seu convencimento e não está obrigado a acatar intromissões de superiores hierárquicos.

Além disso, como já referido, a Lei nº 12.830/13 veda que os procedimentos administrativos — tanto o inquérito policial quanto o termo circunstanciado — sejam avocados ou redistribuídos para outras autoridades, salvo nos casos legalmente previstos e mediante despacho fundamentado. Essas providências são admitidas exclusivamente por razões de interesse público ou em hipóteses de descumprimento de regulamentos pela autoridade que preside as investigações.

Dessa forma, ao garantir a discricionariedade do delegado de polícia no exercício da investigação criminal, a lei assegura a eficácia dos procedimentos e a proteção dos direitos e garantias individuais dos indiciados. A autonomia da autoridade policial atua como garantia do administrado, que, de outra forma, estaria continuamente exposto à revisão de decisões por superiores hierárquicos do investigador, o que geraria gravíssima insegurança jurídica.

Nas polícias militares, prevalece rigorosa hierarquia. O subordinado jamais detém poder discricionário, e suas decisões podem sempre ser revistas por superiores. Como, então, poderia a decisão de um policial militar, acerca de determinada ocorrência policial, vincular um cidadão civil, se a qualquer momento esse entendimento pode ser alterado por patentes superiores? O poder decisório em matéria de ocorrências policiais é, portanto, incompatível com a hierarquia militar, pois compromete a segurança dos direitos dos administrados.

Um fato que exemplifica as consequências de boletins de ocorrência lavrados pela Polícia Militar ocorreu em Belo Horizonte. Uma adolescente de 15 anos procurou a companhia do 34º Batalhão da Polícia Militar e relatou que um criminoso a empurrou e subtraiu seu celular. O sargento de serviço entendeu tratar-se de roubo, em razão do emprego de agressão pelo delinquente. Entretanto, o tenente considerou que se tratava de furto e determinou que o sargento modificasse a qualificação jurídica do delito. O sargento não acatou a ordem e foi autuado em flagrante por desobediência, nos termos do Código Penal Militar. Da mesma forma que o tenente desautorizou o sargento, ele próprio poderia ser desautorizado por oficial de patente superior, pois os policiais militares não possuem a independência funcional imprescindível à atividade de polícia judiciária.

Esse exemplo evidencia os malefícios de agentes não capacitados, e ainda submetidos a rígida disciplina hierárquica, desempenharem funções típicas de polícia judiciária. No caso mencionado, tratava-se de ocorrência com autoria desconhecida. Imagine-se a gravidade quando a autoria é conhecida e é necessário tomar decisões que envolvem coleta de provas e imputação de responsabilidade penal a cidadãos.

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A polícia judiciária corresponde aos primeiros passos no exercício do dever estatal de garantir a segurança da sociedade. Trata-se de atividade civil que exige a devida independência funcional da autoridade policial, sem a qual a segurança jurídica e a eficácia da coleta de provas ficam comprometidas. Quando a Constituição e a legislação penal adjetiva atribuíram independência funcional a magistrados, promotores e delegados de polícia, não criaram privilégios, mas garantias necessárias para o exercício eficaz de suas funções.

Essas garantias existem para assegurar que a jurisdição, a acusação e a investigação sejam desempenhadas sem ingerências externas, em benefício da segurança jurídica da sociedade. Nenhuma dessas autoridades poderia exercer suas atividades sem poderes discricionários e sem independência funcional, devendo subordinar-se tão somente à Constituição e às leis.


Conclusão

Historicamente, a primeira atribuição do Estado foi a distribuição da justiça, seja compondo os litígios entre os cidadãos e dando a cada um o que lhe é devido, seja punindo os criminosos (ius gladii), com o objetivo de dissuadir aqueles que violam a ordem jurídica (HESPANHA, 1995, p. 217). Durante milênios, o Estado logrou cumprir essa missão, impedindo a vingança privada e a consequente guerra de todos contra todos. Contudo, essa função era exercida de forma arbitrária, concentrando poderes absolutos e constituindo-se em grave fator de insegurança social.

Na Baixa Idade Média, em 1215, surgiu a Magna Carta, estabelecendo que homens livres não poderiam ser privados de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. No mesmo ano, Felipe, o Belo, criou o embrião do Ministério Público, determinando que os procuradores do rei fossem incumbidos da acusação, em substituição ao modelo anterior, no qual a mesma autoridade investigava, acusava e julgava (ESMEIN, 1882).

Com o Iluminismo, filósofos demonstraram a necessidade de limitar os poderes do Estado, dividindo-os e regulando-os por meio da Constituição e da lei. Firmou-se, então, a ideia de que o poder público deveria ser distribuído entre instituições autônomas, para evitar que se tornasse o Leviatã centralizador e absoluto aludido por Hobbes.

Foi nesse contexto da Revolução Francesa que surgiu o modelo napoleônico, inspirado na teoria dos freios e contrapesos de Montesquieu, para conter o arbítrio daqueles incumbidos de proteger a sociedade. Estabeleceu-se, assim, que a polícia fardada se responsabilizaria pelo policiamento ostensivo, enquanto a polícia civil seria destinada à investigação e à coleta de provas. Dessa forma, o agente que atende a ocorrência, em meio à comoção provocada pelo crime, não seria o mesmo a conduzir a instrução provisória essencial para que a Justiça pudesse julgar os fatos.

O modelo policial brasileiro foi feliz ao instituir uma autoridade policial civil, com qualificação jurídica, sob a fiscalização do Parquet e do Poder Judiciário. Dessa forma, proporcionou-se eficácia aos trabalhos investigativos e garantiram-se as liberdades individuais, imprescindíveis à existência de uma sociedade democrática.

Quando uma polícia militarizada intervém na esfera da sociedade civil, é imperativo que seu trabalho seja submetido a uma autoridade civil, incumbida da coleta de provas e da observância dos direitos constitucionais dos envolvidos, sobretudo da pessoa do suspeito. Estender os poderes de uma polícia militar a todo o ciclo da atividade policial constitui grave afronta aos princípios democráticos inerentes à civilização contemporânea. Tal providência representaria um retrocesso histórico ao modelo do Antigo Regime, período em que a proteção dos cidadãos significava, ao mesmo tempo, uma ameaça aos seus direitos, deixados ao arbítrio de agentes sem qualificação jurídica e embrutecidos pela violência cotidiana do mundo do crime.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAVID, René. O direito inglês. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ESMEIN, Adhémar. Histoire de la procédure criminelle em France. Paris: L. Lorose et Forcel, 1882.

HESPANHA, António Manuel. História de Portugal Moderno: político e institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.

MATHIAS, Eric. O equilíbrio do poder entre a Polícia e o Ministério Público. In: DELMAS-MARTY, Mireille.(Org.) Processos penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p 471-506.

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

SPENCER, J. R. O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa, 2005. p. 245-339.

VIEIRA, Hermes. Formação histórica da Polícia de São Paulo. São Paulo: Serviço Gráfico da Secretaria da Segurança Pública, 1995.

VOCLER, Richard. La perspectiva anglo-americana sobre la policía y el Estado de Derecho: implicaciones para Latinoamerica. In: La policía em los Estados de Derecho latinoamericanos: um proyecto internacional de investigación. Ediciones Jurídicas Gustavo Ibañez, 2003.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Luiz Carlos. O delegado de polícia como garantia da segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5726, 6 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72343. Acesso em: 5 dez. 2025.

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