REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES À ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
Os procedimentos aos quais o Poder Judiciário está submetido ao utilizar os mecanismos de judicialização devem ser considerados como limites à sua própria atuação. Mas, por outro lado, há limitações de outra natureza que merecem destaque, uma vez que a a expansão do papel do Poder Judiciário nos Estados constitucionais da contemporaneidade tem sido discutida a partir de três aspectos básicos: o modo de investidura dos juízes e membros dos tribunais, sua formação específica e o tipo de discurso que utilizam.[1]
Podem ser extraídas, desses aspectos, três críticas sobre o crescente processo de judicialização, as quais guardam estreita relação com a idéia de limites à atuação do Poder Judiciário. O objetivo da apresentação dessas críticas, à luz das idéias publicadas em artigo científico de autoria de Luís Roberto Barroso[2], não incide, necessariamente, na concordância com tais posicionamentos ou na afirmativa de que essas são as únicas críticas a serem tecidas. Nesse momento, a intenção precípua é fomentar o leque de reflexões acerca do processo de judicialização, que se enriquece com a oferta de posicionamentos sobre os limites de atuação do Poder Judiciário.
A primeira crítica à expansão da intervenção judicial, citada por Barroso, se insere no campo político-ideológico e se sedimenta com a afirmação de que juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos, não tendo, portanto, sua investidura o batismo da vontade popular. “A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais.”[3]
Integram o rol desses críticos Jeremy Waldron, autor de Law and disagreement (1999), que defende que nas sociedades democráticas nas quais o Legislativo não seja disfuncional, as divergências acerca dos direitos devem ser resolvidas no âmbito do processo legislativo e não do processo judicial.
A segunda crítica relaciona-se à capacidade institucional, ou seja, indaga-se como é possível determinar que Poder estaria mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Sabe-se que cabe aos três Poderes pautar sua atuação a partir do texto constitucional. Em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário, embora saiba-se que, na prática, nem toda matéria necessita de apreciação do Poder Judiciário.
Luís Roberto Barroso sinaliza que “Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado suas idéias destinadas a limitar a ingerência judicial: a capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos.”[4]
O autor explica, no que se refere à capacidade institucional, em casos de temas que envolvem aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, até mesmo por falta de conhecimento específico. Por exemplo, em questões como demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, estudos técnicos e científicos adequados devem ser considerados: “a questão da capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa”, assinala Barroso.[5]
Já no que diz respeito ao risco de efeitos sistêmicos, recomenda-se uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. Isto porque o juiz, por provocação e treinamento, normalmente estará preparado para realiza a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem, muitas vezes, contar com condições que o possibilitam avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento da sociedade. Assim, a judicialização tende a mudar o foco da discussão pública, que passa de um ambiente onde as razões podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro altamente técnico e formal, tendo por objeto textos e idéias acerca de interpretação.[6]
A terceira crítica recai sobre o discurso utilizado no mundo do direito, uma vez que esse se reveste de métodos próprios de argumentação. O domínio desse instrumental exige conhecimento técnico e treinamento específico, não acessíveis à generalidade das pessoas. Diante dessas colocações, Barroso, citando Jeremy Waldron, destaca que a “primeira conseqüência drástica da judicialização é a elitização do debate e a exclusão dos que não dominam a linguagem nem têm acesso aos locus de discussão jurídica.”[7]
Assim, a judicialização tende a mudar o foco da discussão pública, que passa de um ambiente no qual as razões podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro técnico e formal, tendo por objeto textos e idéias acerca de interpretação. A transferência do debate público para o âmbito do Judiciário traz uma dose excessiva de politização dos tribunais, ensejando “paixões em um ambiente que deve ser presidido pela razão.”[8]
De fato, embora existam institutos como audiências públicas, amicus curiae e direito de propositura de ações diretas por entidades da sociedade civil, não se pode dizer que o problema destacado pela terceira crítica venha a ser completamente solucionado, até mesmo porque o Poder Judiciário, em sua estrutura e organização, guarda traços identificadores de sua atuação, incluindo, obviamente, linguagem e discurso próprio.
As críticas acima elencadas não são as únicas que podem ser tecidas sobre a intervenção judicial, mas, somadas a outras inseridas ao longo deste trabalho monográfico, ilustram de forma satisfatória a necessidade de reflexões acerca dos limites à atuação do Poder Judiciário diante da crescente judicialização.
Diante dessas colocações, não se pode esquecer que a atuação do Poder Judiciário deve estar pautada no dever de proteger e promover os direitos fundamentais, bem como resguardar as regras do “jogo democrático”. Por outro lado, Luís Roberto Barroso assinala que, quando não estão em jogo os direitos fundamentais ou os procedimentos democráticos, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua própria valoração política. “Isso deve ser feito não só por razões ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões proferidas em casos individuais.”[9]
Embora a última palavra acerca da interpretação da Constituição Federal seja do Poder Judiciário, não se deve presumir que esse é o único ou principal foro de debate do qual se possa extrair a vontade constitucional em cada tempo. A multiplicidade de vozes, a democratização da comunicação e da informação, as diferentes visões em sociedade acabam não apenas por enriquecer o debate acerca das questões que chegam ao Poder Judiciário, mas possibilitam que as decisões tomadas por esse Poder possam ser conhecidas e acompanhadas pela sociedade, reforçando um importante aspecto do Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
Nos últimos anos, a função jurisdicional assumiu contornos mais amplos, conferindo à atuação do Poder Judiciário uma nova dimensão. Especialmente após o advento da Constituição Federal de 1988, a crescente necessidade de se preservar os direitos fundamentais e os valores constitucionais impõe ao Poder Judiciário o uso de mecanismos que viabilizem a solução de casos nem sempre passíveis de serem resolvidos a partir dos métodos tradicionais utilizados no sistema civil law.
Se antes a lei, emanada de um processo legislativo estipulado constitucionalmente, apresentava-se como a fonte de maior expressão do direito, na atualidade o Poder Judiciário se utiliza de diversos mecanismos no processo decisório das questões que enfrenta. A primeira noção de superioridade da lei sobre as demais formas de expressão do direito parece agora ser questionada com mais veemência. Não parece mais vigorar a idéia inquestionável de que a lei galgará, em qualquer situação jurídica, posição de maior prestígio.
Diante de ausência da atividade legislativa em determinadas matérias, chegam ao Poder Judiciário questões ainda não disciplinadas pelo legislador, mas que, por outro lado, devem ser enfrentadas pelo Judiciário, que não pode se eximir de prospectar as conseqüências políticas das decisões que profere na concretização de fins sociais.
Nesse cenário, ao longo deste trabalho monográfico, procurou-se evidenciar os variados mecanismos utilizados pelo Poder Judiciário no exercício de suas funções, agora delineadas de forma abrangente. O papel mais atuante dos juízes de primeiro grau, a edição de súmulas e súmulas vinculantes, a valorização da jurisprudência como fonte do direito e o controle de constitucionalidade das leis são alguns desses instrumentos que atestam o processo de judicialização do direito brasileiro.
Há causas de naturezas diversas para a ocorrência do fenômeno estudado, entre as quais o reconhecimento, na sociedade atual, da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas e o próprio sentimento de desilusão com a atuação do Poder Legislativo, em razão de crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentares em geral.
Como detentor do poder-dever de resolução dos conflitos sociais, o Judiciário não pode se furtar da tarefa de resolução dos conflitos que lhe são apresentados. Ao desempenhar esse papel, especialmente se considerado o contexto da judicialização, acaba por abrir espaço para o exercício de uma possível função criadora do direito, extrapolando a tradicional idéia de que o Poder Judiciário deve se ater à função de interpretação, aplicando a lei ao caso concreto.
A idéia de exercício da função criadora pelo Poder Judiciário se fortalece à medida que as demandas da sociedade chegam aos juízes de primeiro grau e aos Tribunais, fazendo necessária a decisão judicial frente a processos relativos a matérias ainda não disciplinadas pelo Poder Legislativo.
Embora a intenção desse trabalho monográfico não seja oferecer elementos conclusivos sobre o exercício da função criadora pelo Poder Judiciário, sendo esse apenas um dos aspectos abrangidos pelas reflexões sobre o tema proposto, é importante destacar que a judicialização do direito é um fenômeno em curso e deverá ser observado pelos estudiosos e operadores do mundo jurídico, especialmente diante dos questionamentos que emergem acerca dos limites à atuação do Judiciário no Brasil.
Ao longo da pesquisa, procurou-se delinear algumas críticas à intervenção judicial, de natureza político-ideológica, que envolvem aspectos como a capacidade institucional e a possibilidade de limitação do debate em sociedade a partir do momento em que questões relevantes passam a ser decididas judicialmente. Tais críticas podem ser consideradas pontos de partida para as discussões sobre a atuação do Poder Judiciário a partir de uma compreensão atualizada da Teoria da Separação dos Poderes, permitindo entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo o respeito à harmonia e à independência.
Nesse sentido, é importante compreender que a intervenção decisória do Poder Judiciário em questões de naturezas diversas é capaz de afetar a conjuntura da democracia contemporânea, uma vez que se reveste de caráter político, ideológico e social. As soluções para os problemas sociais nem sempre estão pré-definidas no ordenamento jurídico pátrio, precisam ser construídas a partir da atuação de juízes e tribunais. Exatamente por isso, a atuação do Poder Judiciário e, conseqüentemente, o processo de judicialização do direito, adquirem inegável importância enquanto fenômenos do Estado Democrático de Direito.
[1] Essas críticas à expansão da intervenção judicial no cenário brasileiro foram sistematizadas e expostas por Luís Roberto Barroso, no artigo Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, publicado na Revista de direito de estado: BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 03-42.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 3-42.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13.
[6] WALDRON, Jeremy. The core case against judicial review apud BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13-14.
[7] WALDRON, Jeremy. The core case against judicial review apud BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 14.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 14.
[9] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de direito do estado, n. 16, out./dez. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 16.