Segundo os ensinamentos de Maria Berenice Dias[1], bem de família expressa uma qualidade que se incorpora a um imóvel e seus móveis, protegendo-os quanto a credores, como meio de tutelar a família nele residente. Gera, para tanto, a impenhorabilidade de tais bens e se converte em verdadeiro patrimônio, como elemento protetivo do núcleo familiar.
Em harmonia com esse pensamento, Rolf Madaleno[2] assevera que o fim do bem de família é tutelar a habitação, espaço compartilhado por seus integrantes, fortificando o direito ao teto familiar, essencial à estruturação e à ampliação das relações familiares.
Prosseguindo em sua lição, Dias[3] expõe a classificação do bem em comento em duas modalidades: legal e voluntário. O bem de família legal, disciplinado na Lei 8.009/90, é aquele assim estabelecido sem precisar de alguma conduta do instituidor, não dependendo ainda de qualquer formalidade. A legislação torna-o impenhorável pelo simples contexto de o devedor nele residir com sua família. Já o voluntário, previsto nos arts. 1711 a 1722 do Código Civil, é aquele resultante da vontade do proprietário ou de terceiro, sendo indispensável, para sua configuração, a observância de um conjunto de requisitos.
Em se tratando do bem de família legal, o art. 3º da Lei 8009/90 elenca exceções à sua característica de impenhorabilidade, nas quais o referido bem poderá ser penhorado em alguns panoramas processuais, como na execução civil. Dentre as exceções, há o inciso V, segundo o qual a penhora poderá ocorrer quando, após o casal ou entidade familiar instituir hipoteca sobre o bem acima, houver a execução da garantia.
Realizadas essas considerações, imagine agora o contexto de um terreno onde moravam duas famílias de baixa renda e no qual uma empresa pretendeu construir um edifício. Para obter o terreno, a construtora firmou contrato com os moradores, comprometendo-se, em troca da aquisição, a ceder-lhes dois apartamentos do futuro edifício. A empresa ainda ofertou, como garantia do cumprimento contratual, a casa onde residiam o proprietário daquela (único dono ou sócio da construtora) e seus familiares. Porém, cinco anos após o acordo e não surgindo o edifício, os supracitados moradores ajuizaram a execução da garantia, requerendo a penhora e posterior leilão da casa para sanar, com correção monetária, a dívida da construtora, referente ao terreno.
Examinando esses fatos, percebe-se que o imóvel dado em garantia, por nele morarem o proprietário da executada e sua família, corresponde a um bem de família legal, e que a mencionada garantia, por apresentar como objeto um imóvel, pode ser considerada uma hipoteca, nos termos do art. 1473, I, do Código Civil. À primeira vista, parece que essas conclusões já permitem enquadrar tal bem na exceção do art. 3º, V, da Lei 8009/90 e, assim, torna-lo penhorável na execução civil da hipoteca. Porém, esta não foi instituída diretamente pelo casal ou entidade familiar (como preceitua o inciso acima), mas pela construtora devido a dívida por si contraída.
Nesse quadro, é preciso verificar se a eliminação da dívida através da execução hipotecária favorecerá a entidade familiar ou não. Caso favoreça, o bem inerente à garantia será penhorável e restará configurada a exceção da Lei 8009/90. Do contrário, permanecerá impenhorável.
Sobre o tema, há o entendimento, jurisprudencial e doutrinário, de que será presumido o favorecimento quando o titular ou titulares do imóvel hipotecado forem os únicos proprietários ou sócios da empresa devedora. Trata-se de presunção relativa, cabendo a esses indivíduos a prova em contrário (não favorecimento) para que o imóvel continue impenhorável. O oposto acontecerá caso existam, na empresa, outros sócios além dos donos do bem hipotecado, com a presunção relativa de não favorecimento e o ônus da prova conferido aos credores da dívida garantida para o bem tornar-se penhorável.
Corroborando a presença desse entendimento, o comentário adiante de Madaleno:
O bem de família como uma propriedade destinada à moradia da pessoa ou de um grupo familiar tem na sua gênese uma função social, embora não se trate de um direito absoluto, porque pode conflitar com outros direitos de igual dimensão existencial, tanto que (...) o STJ admitiu a penhora de imóvel dado em garantia hipotecária de dívida contraída em favor de pessoa jurídica quando os únicos sócios da empresa devedora são proprietários do bem hipotecado, em virtude da presunção do benefício gerado aos integrantes da família.[4]
Também na direção do mesmo entendimento e adotando-o em decisões, os seguintes julgados do STJ:
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. BEM DE FAMÍLIA OFERECIDO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA PELOS ÚNICOS SÓCIOS DA PESSOA JURÍDICA DEVEDORA. IMPENHORABILIDADE. EXCEÇÃO. ÔNUS DA PROVA. PROPRIETÁRIOS. 1. O art. 1º da Lei n. 8.009/1990 instituiu a impenhorabilidade do bem de família, haja vista se tratar de instrumento de tutela do direito fundamental à moradia da família e, portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para uma vida digna, ao passo que o art. 3º, inciso V, desse diploma estabelece, como exceção à regra geral, a penhorabilidade do imóvel que tiver sido oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar. 2. No ponto, a jurisprudência desta Casa se sedimentou, em síntese, no seguinte sentido: a) o bem de família é impenhorável, quando for dado em garantia real de dívida por um dos sócios da pessoa jurídica devedora, cabendo ao credor o ônus da prova de que o proveito se reverteu à entidade familiar; e b) o bem de família é penhorável, quando os únicos sócios da empresa devedora são os titulares do imóvel hipotecado, sendo ônus dos proprietários a demonstração de que a família não se beneficiou dos valores auferidos. 3. No caso, os únicos sócios da empresa executada são os proprietários do imóvel dado em garantia, não havendo se falar em impenhorabilidade. 4. Embargos de divergência não providos. (STJ, Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 848.498 - PR - 2016/0003969-4 – Relator: Ministro Luis Felipe Salomão; julgamento em 25/04/2018)
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO. BEM DE FAMÍLIA. EXCEÇÃO À REGRA DA IMPENHORABILIDADE. ART. 3º, V, DA LEI Nº 8.009/90. GARANTIA HIPOTECÁRIA. PESSOA JURÍDICA. EMPRESÁRIO INDIVIDUAL. PROPRIETÁRIOS DO IMÓVEL. BENEFÍCIO DA ENTIDADE FAMILIAR. PRESUNÇÃO. PRECEDENTE. SEGUNDA SEÇÃO. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL. INCIDÊNCIA DA MULTA DO ART. 1.021, § 4º, DO NCPC. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO, COM IMPOSIÇÃO DE MULTA. (...) 2. A jurisprudência desta Casa consolidou o entendimento de que a) o bem de família é impenhorável, quando for dado em garantia real de dívida por um dos sócios da pessoa jurídica devedora, cabendo ao credor o ônus da prova de que o proveito se reverteu à entidade familiar; e b) o bem de família é penhorável, quando os únicos sócios da empresa devedora são os titulares do imóvel hipotecado, sendo ônus dos proprietários a demonstração de que a família não se beneficiou dos valores auferidos. (...) 5. Agravo interno não provido, com imposição de multa. (STJ, AgInt no Recurso Especial nº 1.675.363 - MS - 2017/0127734-7 – Relator: Ministro Moura Ribeiro; julgamento em 28/08/2018)
Retornando ao contexto em análise, observa-se que o titular do imóvel objeto da hipoteca é o único proprietário ou sócio da construtora, não havendo outros e representando esta uma empresa individual. Portanto, presume-se daí que a quitação da respectiva dívida na execução hipotecária, ajuizada pelos ocupantes iniciais do terreno, beneficiará a entidade familiar que o dono da construtora integra. Sendo essa uma presunção relativa, competirá ao referido dono comprovar o não beneficiamento para afastá-la. Consequentemente, sem a comprovação, o imóvel hipotecado, embora bem familiar, poderá ser penhorado e leiloado para adimplemento do valor alusivo ao terreno, corrigido monetariamente.
Então, sinteticamente, no quadro fático em discussão e conforme as explicações apresentadas, é possível, em favor dos exequentes, a penhora, com ulterior leilão, do bem familiar hipotecado para sanar a dívida da pessoa jurídica executada.
Notas
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 381.
[2] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1144.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 383.
[4] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1146.