1. Introdução
A Lei 8.429/92 confere ao Ministério Público, além da pessoa jurídica interessada, legitimidade para propor a ação que visa a impor as sanções cabíveis aos agentes que praticaram ato de improbidade, em qualquer das modalidades especificadas no referido diploma.
Entretanto, a título de exercer o controle da coisa pública municipal e cumprir suas atribuições constitucionalmente determinadas, não raro tem-se verificado o uso abusivo do instituto da ação de improbidade por parte do Ministério Público, especialmente pela inclinação de sobrevalorizar atos de má gestão que não configuram, sob o ponto de vista jurídico, ato ímprobo capaz de ensejar as sanções previstas na Lei 8.429/92.
Nesse sentido, o presente escrito visa a levantar a discussão acerca da necessidade de diferenciação entre atos de má gestão e atos ímprobos, e a respectiva importância de os membros do Ministério Público adequarem a análise dos atos à realidade prática da administração municipal, que nem sempre conta com gestores ou mesmo servidores com razoável capacidade técnico-administrativa.
A relevância de tal discussão se dá à medida em que se verifica que o gestor municipal tem criado efetivo receio de administrar, notadamente diante da crescente probabilidade de o Ministério Público interpretar seus atos de gestão de forma vazia com o fim de enquadrá-los nos atos de improbidade, ensejando constante limitação quanto ao curso executivo da administração.
2. Aspectos centrais da improbidade administrativa e a realidade nos municípios
Os três principais tipos de atos que configuram improbidade administrativa, de acordo com a Lei 8.429/92, são aqueles que importam lesão ao erário (art. 9°), que geram enriquecimento ilícito do agente (art. 10) e aqueles que ferem os princípios da administração pública (art. 11).
Além da busca de proteção ao erário, especificamente nas duas primeiras modalidades, observa-se na Lei de Improbidade a intenção legislativa de coibir e punir civilmente o agente que pratica um ato ilícito imbuído de desonestidade[1], enquanto desvio ético de conduta e inabilitação moral quanto ao exercício de função pública, conforme é a lição de Kleber Bispo dos Santos:
Visando ao combate da corrupção na esfera do Poder Público, no Brasil fora editada a Lei nº 8.429, de 06 de junho de 1992, conhecida como Lei de Improbidade, que tem como finalidade combater a corrupção e os atos realizados na condução da coisa pública motivados por interesses que vão contra o interesse público. [...] ilegalidade não é sinônimo de improbidade, e que a prática de ato funcional ilegal por si só não basta para que se configure improbidade administrativa, sendo necessário que o ato tenha origem em comportamento desonesto, denotativo de má-fé e de falta de probidade do agente público [...][2].
Interessa registrar que o desvio ético da conduta na improbidade não se confunde sempre, a nosso ver, com a mera inobservância ao princípio da moralidade administrativa insculpido no art. 37 da Constituição, cuja violação tem o condão de invalidar o ato, uma vez ser possível uma afronta objetiva ao princípio da moralidade sem a configuração de má-fé relacionada à improbidade.
Tal situação pode ocorrer, por exemplo, em um ato administrativo de nomeação de parente próximo a cargo comissionado, em desrespeito às regras constitucionais, sem que o agente tenha efetiva intenção de se beneficiar ilicitamente, ou mesmo quando de fato há habilidade técnica do nomeado em relação ao cargo. Por mais que a legalidade do ato seja contestável sob o crivo dos elementos que o legitimam, não se pode afirmar categoricamente a ocorrência da improbidade.
Embora esta discussão tenha maior pertinência à modalidade de ato de improbidade administrativa atentatório aos princípios da administração (art. 11), o questionamento do dever de honestidade em qualificação mais específica que a violação objetiva ao princípio da moralidade, como acima indicado, permite indagar se a intenção do agente em agir de forma desonesta é elemento essencial à configuração de improbidade.
Trata-se de saber se, como elemento central, o aspecto volitivo doloso é intrínseco à configuração das três modalidades de ato ímprobo, ou somente a alguma delas, cujo debate não é uníssono, em que pese o Superior Tribunal de Justiça – STJ já ter firmado posição de que é necessário comprovar o dolo para ocorrência da improbidade, ao menos em relação às modalidades previstas no art. 9° e no art. 11 (enriquecimento ilícito e ofensa aos princípios da administração):
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. TIPIFICAÇÃO. INDISPENSABILIDADE DO ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO, NAS HIPÓTESES DOS ARTIGOS 9º E 11 DA LEI 8.429/92 E CULPA, PELO MENOS, NAS HIPÓTESES DO ART. 10). PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DA 1ª SEÇÃO. RECURSO PROVIDO.
(EREsp 479.812/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/08/2010, DJe 27/09/2010)
Feitas tais considerações, é possível verificar que nem todo ato administrativo ilícito enseja a ocorrência de improbidade administrativa, sendo necessário existir a intenção do agente em agir de forma a violar o dever ético da função pública para fins que não atendam o interesse público. A partir desta conclusão, mostra-se ainda mais questionável a qualificação de atos de má gestão – que nem sempre são ilícitos – como atos de improbidade administrativa.
A má gestão pode ser compreendida como a inobservância do dever de zelar pela coisa pública em atendimento ao interesse público. Em outros termos, cuida de atos que desviam a finalidade maior da máquina pública, que é proporcionar qualidade na prestação dos serviços públicos e reverter benefícios aos administrados. Entretanto, este desvio nem sempre é intencional ou eivado de má-fé do agente administrador.
Segundo Marcos José Porto Soares e Alexandre Araújo Pereira, os atos de má gestão se dividem em duas categorias: aqueles derivados de ineficiência e aqueles derivados de desonestidade. Enquanto a primeira “corresponde a uma conduta que não reproduz o efeito esperado, seja pela inabilidade ou incompetência de um sujeito para atingir objetivos predeterminados”, a má gestão por desonestidade seria aquela em que o ato é praticado com “falta de pudor ou honradez do indivíduo”[3].
Tal diferenciação nos parece de fundamental importância, haja vista que, na ocorrência de alguma das hipóteses de má gestão, o resultado para a coisa pública é prejudicial, muito embora não seja juridicamente adequado assinalar a má-fé do agente e sua consequente improbidade exclusivamente por isso. Antes, a má gestão tem de ter ocorrido a partir, mais uma vez, de deliberada intenção em agir em desacordo com os preceitos morais da função pública.
Partindo-se da constatação já realizada de que o ato de improbidade surge primeiro em razão de um ato administrativo ilícito, mesmo a análise de um ato de má gestão deve passar pelo filtro de ilicitude da conduta. Se não houver violação objetiva a determinações legais ou aos princípios da administração, pode se mostrar inócuo indagar o aspecto doloso do agente, muito embora seja possível argumentar que a simples intenção desonesta e o resultado lesivo à coisa pública configurem ilicitude administrativa.
Em suma, trata-se de verificar se todo ato administrativo ilícito configura improbidade e se todo ato de má gestão também o faria. Em razão do já mencionado objeto do escrito, centraremos nos atos de má gestão no âmbito municipal.
O maior número de municípios brasileiros conta com pequena estrutura administrativa, em função do território, da população e das incontáveis dificuldades orçamentárias, raramente tendo um chefe do Poder Executivo com histórico de qualificação que beneficie o entendimento sobre a gerência da máquina pública.
Sem querer entrar em contornos político-eleitorais, o que de fato se verifica é uma inabilidade técnica apropriada ao relevante cargo de gestor municipal, que exige, sob o ponto de vista administrativo, conhecimentos básicos acerca de execução orçamentária, políticas públicas, procedimentos licitatórios, assuntos fundiários e demais elementos mais voltados à gestão prática da coisa pública.
Em que pese tais elementos serem, em geral, estruturalmente divididos internamente no âmbito da administração municipal, tal repartição não escusa o prefeito da necessidade de possuir conhecimentos elementares acerca do cotidiano administrativo. Apesar disso, sabe-se que nem sempre tal compreensão ocorre, mesmo por parte dos servidores e da equipe de apoio em cargos comissionados, em razão da realidade brasileira fora das capitais e das peculiaridades de cada município.
Nesse sentido, registra Scarpinelli a dificuldade de qualificação técnico-administrativa no âmbito de atos que nem sempre contam com má-fé do agente e nos quais, portanto, não haveria configuração de improbidade:
[...] não podemos deixar de registrar os casos de concessão irregular de benefícios, a doação de terrenos de forma irregular, sem lei ou legitimidade para o ato, entre tantas situações que fogem ao nosso dia a dia, fatos esses que podem ocorrer devido à falta de capacitação do servidor recém-empossado, que pode, em um devido processo judicial, virar uma penalidade de suspensão dos direitos políticos ou perda do cargo, penalidades essas que não podem ser dadas superficialmente[4].
A despeito disso, tem-se observado crescente ajuizamento de ações de improbidade que têm como fato ensejador atos administrativos de má gestão por ineficiência, sem que tenha concorrido o elemento da desonestidade deliberada por parte do agente público, em especial do gestor municipal. Tais contextos fáticos passam desde a ausência de pagamento de débitos do ente público às escolhas políticas feitas pelo Chefe do Executivo, realizadas dentro da margem de discricionariedade que lhe é inerente e obedece aos contornos legais, pelo fato exclusivo de gerarem prejuízo à coisa pública em termos de gestão com resultado negativo.
Com o uso excessivo da ação de improbidade por parte do Ministério Público – não sendo muito falar-se em banalização do instituto – especialmente visando controlar atos administrativos exarados dentro da discricionariedade que compõe a administração, os gestores municipais têm sofrido efetiva restrição no âmbito de sua atuação e poder de decisão no exercício da função.
Na prática, a vigia muitas vezes desenfreada do Ministério Público acaba por ceifar a liberdade gerencial da administração municipal, enquanto capacidade juridicamente autorizada de escolher os rumos administrativos que compuseram a escolha política do gestor eleito, para atender àquilo que os membros do órgão ministerial entendem como boa gestão, cada um à sua maneira.
Assim, considerando estes breves apontamentos, nota-se a necessidade de que o Ministério Público passe a observar as nuances essencialmente administrativas no âmbito municipal, em termos de gestão, ainda que má, com o fim de utilizar o importante instituto da ação de improbidade apenas nos casos em que efetivamente haja indícios de imoralidade e ilegalidade nos atos administrativos, que ensejariam por direito a aplicação das sanções previstas na Lei 8.429/92.
3. Conclusão
A aplicação da Lei de Improbidade Administrativa exige cautela, tanto pelo aspecto da legitimidade geral conferida ao Ministério Público, quanto pela natureza punitiva do diploma, que visa a coibir e sancionar atos administrativos ilegais eivados de desonestidade.
No âmbito municipal, tendo em vista ser possível ou mesmo frequente a ausência de qualificação técnico-administrativa dos chefes do Poder Executivo, que podem praticar atos de má gestão por ineficiência, mostra-se de rigor que a atuação do Ministério Público seja prudente, evitando-se a banalização do instituto. De todo modo, mesmo em realidades municipais em que há razoável qualificação do gestor municipal ao exercício da função pública, há de se observar que atos de má gestão nem sempre estão incorporados de deliberado desvio moral de conduta, tratando-se de escolhas político-administrativas que não irão trazer os bons resultados esperados pela Administração em todas as ocasiões.
Caso a utilização da ação de improbidade continue crescendo para controle de atos de má gestão por ineficiência, sem indícios de má-fé, é possível levantar que a excessiva atuação do Ministério Público acarrete em interferência do órgão no Poder Executivo municipal, ferindo a separação dos poderes e, na prática, inviabilizando o curso saudável da gestão municipal.
4. Referências bibliográficas
SANTOS, Kleber Bispo dos. Da delimitação dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. Revista Brasileira de Direito Municipal – RBDM, Belo Horizonte, ano 17, n. 59, p. 71-87, jan./mar. 2016.
SCARPINELLI, Christopher Pinho Ferro. Da Diferenciação do Dolo e da Culpa na Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa. Revista Síntese: Direito Administrativo, São Paulo, v. 10, n. 111, mar. 2015.
SOARES, Marcos José Porto; PEREIRA, Alexandre Araujo. Distinção entre corrupção, improbidade administrativa e a má gestão da coisa pública. Revista dos Tribunais. vol. 959. ano 104. p. 55-69. São Paulo: Ed. RT, set. 2015.
Notas
[1] SANTOS, Kleber Bispo dos. Da delimitação dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. Revista Brasileira de Direito Municipal – RBDM, Belo Horizonte, ano 17, n. 59, p. 71-87, jan./mar. 2016, p. 72.
[2] SANTOS, Kleber Bispo dos. Da delimitação dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. Revista Brasileira de Direito Municipal – RBDM, Belo Horizonte, ano 17, n. 59, p. 71-87, jan./mar. 2016, p. 71-73.
[3] SOARES, Marcos José Porto; PEREIRA, Alexandre Araujo. Distinção entre corrupção, improbidade administrativa e a má gestão da coisa pública. Revista dos Tribunais. vol. 959. ano 104. p. 55-69. São Paulo: Ed. RT, set. 2015, p. 57.
[4] SCARPINELLI, Christopher Pinho Ferro. Da Diferenciação do Dolo e da Culpa na Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa. Revista Síntese: Direito Administrativo, São Paulo, v. 10, n. 111, mar. 2015, p. 13.