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OCDE, liberalização financeira e soberania:

a caminho da crise ou da solução?

01/07/2019 às 17:15
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A liberalização representa a passagem de um modelo de sistema financeiro para outro. O Estado, por sua vez, tem a incumbência de realizar as reformas institucionais necessárias para que essa mudança seja menos traumática para os agentes econômicos principais e para a sociedade como um todo.

Um dos assuntos mais relevantes suscitados pela possível entrada do Brasil como membro pleno da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é a provável liberalização financeira que deveria ser adotada no país, a fim de adequá-lo a algumas das regras da organização sobre movimento de capitais[1], principalmente ao Código de Liberalização de Movimentos de Capitais (Code of Liberalisation of Capital Movements) e ao Código de Liberalização de Operações Correntes Invisíveis (Code of Liberalisation of Current Invisible Operations). Considerando que ambos os códigos contêm dispositivos suficientes para promover a liberalização, algumas questões fundamentais devem ser respondidas antes de apreciar o conteúdo desses dois documentos. Duas questões basilares são as seguintes: o que é exatamente a liberalização financeira? Ela é benéfica ou prejudicial ao país? Pretende-se respondes essas questões neste ensaio.

A liberalização financeira, que consiste na retirada ou na diminuição de barreiras ao fluxo internacional de capitais, pode causar efeitos diversos aos países que a adotam. A análise de casos recentes de liberalização financeira indica que a abertura abrupta e indiscriminada da conta de capitais, se desacompanhada de medidas de fortalecimento institucional, pode gerar graves crises e prejudicar o processo de crescimento econômico do país.

Conforme explica Diaz-Alejandro (1985), as reformas financeiras liberalizantes, nos anos 1980, foram consideradas condições para o desenvolvimento econômico dos países pobres. Como esses eram caracterizados por baixas taxas de poupança, a abertura dos mercados de capitais seria forma importante de captação de poupança externa, sem a qual seria inviável a manutenção de taxas robustas de desenvolvimento econômico. Essa baixa taxa de poupança, por sua vez, seria decorrente de aspectos sociais (elevada propensão marginal ao consumo) e da política de controle legal dos juros incidentes sobre empréstimos (repressão financeira). Ambos os aspectos, em conjunto, diminuíam, internamente, o volume de recursos disponível para o investimento. A liberalização financeira, por sua vez, teria a função de aumentar o volume desses recursos a serem destinados ao investimento, mediante a captação de recursos externos.

Diaz-Alejandro explica, no entanto, que a forma como esse processo de liberalização ocorria em alguns países em desenvolvimento poderia causar sérias instabilidades financeiras e sucessivas crises econômicas, inclusive acompanhadas de ataques especulativos às moedas dos países em desenvolvimento. Essas crises seriam geradas, basicamente, por dificuldades em obter equilíbrio no balanço de pagamentos, o qual não reverteria déficits constantes provocados pelo aumento de importações. O autor explica que a liberalização financeira, em muitos países latino-americanos, teria a seguinte dinâmica: entrada de capitais externos na forma de investimentos em portfólio; elevação das importações (sobretudo na forma de bens de consumo); geração de sucessivos déficits na balança comercial e de serviços; depreciação da moeda nacional (anteriormente valorizada em razão do influxo inicial de recursos); pressões inflacionárias decorrentes do aumento real do preço das importações, seguidas de deterioração de outros indicadores macroeconômicos; deterioração das expectativas dos investidores e fuga em massa de capitais.

Embora os resultados dos processos de liberalização não apresentem, necessariamente, essa sequência de fatos, essa dinâmica foi observada, com intensidade diversa, em muitos países em desenvolvimento. Autores como Schmidt-Hebel (2011) e Fernandez-Albertos (2015) destacam a importância do quadro institucional nos processos de liberalização. Além de regras mínimas que propiciem segurança e transparência ao mercado financeiro, os países que buscam a integração internacional de seus mercados de capitais devem coibir a intervenção do Estado, com fins políticos, no mercado financeiro. Paralelamente, esses Estados devem garantir a existência e o funcionamento autônomo de uma autoridade monetária máxima, responsável pelo regramento do sistema bancário e pela estabilidade de expectativas dos agentes econômicos, os quais poderiam sempre atuar sob o amparo preventivo de um emprestador de última instância. Essa função dupla deveria ser desempenhada pelo Banco Central, o qual poderia também ter funções de política macroeconômica, como, por exemplo, manutenção da estabilidade dos preços e busca do crescimento econômico (como no caso da Federal Reserve, dos Estados Unidos da América).

Nas situações de liberalização financeiras, os bancos centrais teriam também funções importantes no controle do mercado cambial, reduzindo os impactos de possíveis ataques especulativos contra a moeda nacional. Por meio de operações diretas de compra e venda de divisas ou da realização de swaps cambiais, os bancos centrais mitigariam movimentos bruscos de apreciação ou de depreciação da moeda nacional, evitando saídas maciças e irracionais (efeito manada) de investidores estrangeiros. Nota-se, entretanto, que esse tipo de atuação estabilizadora dos bancos centrais depende do acúmulo de reservas internacionais, as quais, por sua vez, geram custos fiscais elevados de manutenção.

De certa forma, em linhas gerais, a liberalização financeira pode causar crises e traumas econômicos aos países em desenvolvimento, porque ela implica a passagem de um sistema relativamente fechado, fundado em bancos comerciais e no fornecimento de crédito bancário, para outro mais aberto e estruturado em torno do mercado de capitais. Esses dois sistemas operam com lógicas distintas e, por consequência, demandam estruturas institucionais diferentes. No primeiro tipo, o Estado tende a desempenhar papel mais ativo e, por vezes, repressor (no sentido financeiro), estimulando e determinando a expansão do crédito. Os agentes financeiros, por sua vez, em razão dessa intervenção aguda do Estado e das poucas perspectivas de retorno econômico, são pouco estimulados a emprestar, o que acarreta um descompasso entre as demandas por investimento e a oferta de poupança, a qual, por vez, é vitimada pela preferência pela liquidez dos poupadores.

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No segundo sistema, no entanto, o Estado passa a ter um papel residual, ainda que importante, no estabelecimento de regras econômicas mínimas, garantidoras do funcionamento do mercado de capitais. De qualquer forma, diferentemente do primeiro, a maneira como os recursos excedentes dos poupadores é canalizada para os tomadores é mais impessoal, atomizada e menos sujeita a ingerências políticas. Em razão disso, a passagem da poupança para o investimento efetivo torna-se mais dinâmica e segura para as partes envolvidas.

A liberalização financeira produz efeitos diferentes, de acordo com o país e com o momento em que é intentada. A forma como ela deve ser feita também é controversa, ainda que muitos autores destaquem a solidez de certas instituições (e.g. banco central) como condição para o êxito da liberalização. Os resultados de uma liberalização decorrente da aceitação do Código de Liberalização de Movimentos de Capitais e do Código de Liberalização de Operações Correntes Invisíveis ainda são incertos. As crises pelas quais passaram os Estados latino–americanos são indícios importantes de que, em determinadas situações, a liberalização deve ocorrer com algum grau de controle do Estado. Como a liberalização representa a passagem de um modelo de sistema financeiro para outro, o Estado também tem a incumbência de realizar as reformas institucionais necessárias para que essa mudança seja menos traumática para os agentes econômicos principais e para a sociedade como um todo. Por fim, não se vislumbra se as obrigações impostas pelos Códigos da OCDE e o quadro institucional brasileiro formam um conjunto econômico harmônico e adequado a proporcionar o desenvolvimento econômico de longo do país.


Referências

DIAZ-ALEJANDRO, C. (1985). Bye-bye financial repression hello financial crash. Journal of Development Economics, 19, 1–24.

KLAUS SCHMIDT-HEBBEL (2011). "Central banking in Latin America: changes, achievements, challenges," Occasional Papers 1102, Banco de España; Occasional Papers Homepage.

FERNÁNDEZ-ALBERTOS, J. (2015). The Politics of Central Bank Independence. Annual Review of Political Science, 18, 217–237.

ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO (OCDE). Legal Instruments. Disponível em: https://www.oecd.org/legal/legal-instruments.htm. Acesso em: 14 de maio de 2019.


nOTAS

[1] A OCDE, na atualidade, tem um conjunto de quatrocentos e cinquenta instrumentos legais (compulsórios e não compulsórios). Desse universo, oitenta e um são instrumentos sobre finanças e investimentos, dois quais apenas dezesseis são compulsórios. Dos dezesseis instrumentos vinculantes, apenas seis estão em vigor atualmente. O Brasil, por sua vez, na qualidade não membro participante e atuante em diversas frentes da organização, aderiu a quatro desses seis instrumentos. O Brasil não aderiu justamente aos dois Códigos, pois entendia que ambos poderiam implicar em mudanças substanciais nas regras brasileiras e poderia comprometer a capacidade do país em manipular sua política macroeconômica. A entrada definitiva na OCDE implicará a necessidade de aderir a ambos os códigos e isso tem causado o temo de alguns setores econômicos e analistas.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. OCDE, liberalização financeira e soberania:: a caminho da crise ou da solução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5843, 1 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73999. Acesso em: 21 nov. 2024.

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