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Mau gosto não é crime: elogio crítico ao Ministro Ayres Britto no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424

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3 O VOTO DO MINISTRO AYRES BRITTO

O ministro Ayres Britto dividiu o seu voto em três grandes partes: a introdução, a  preliminar pela concessão de ofício do habeas corpus, que obrigou o Tribunal a discutir uma “questão de ordem” suscitada, e o mérito no qual defendeu o não cometimento de crime algum pelo paciente. Na introdução iniciou recordando o histórico processual do feito, bem com as manifestações dos outros ministros da Corte sobre o tema, revelando, até aquele momento, como estava o “estado da arte” do habeas corpus.

Nessa introdução, o ministro informou como pretendia enfrentar a questão. Relembrou que o caso obrigava a Corte a fazer um cotejo de vários princípios jurídicos envolvidos. O ministro denomina alguns princípios de protoprincípios (livre iniciativa, pluralismo político, e os que estão nos arts. 1ª a 4º da Constituição) e intitula do da dignidade da pessoa humana como o megaprincípio, por ser a razão de ser de todo o ordenamento jurídico-constitucional. Nessa toada, segundo o ministro, a solução do problema deveria ser encontrada de um modo que satisfizesse uma “sociedade culturalmente pluralista”; ou seja:

de uma sociedade que se compõe de grupos humanos culturalmente díspares, formados por seres dotados de estrutura biopsíquica também personalíssima. Vale dizer, pessoas de mundividência e gosto pelas coisas verdadeiramente únicos. Por isso mesmo, pessoas que se fazem detentores de uma jurídica autonomia de vontade para materializar as suas insimilares convicções políticas e filosóficas de parelha com suas também insimilares preferências estéticas, profissionais, sexuais, religiosas, culinárias etc., pois somente assim é que o ser humano se realiza enquanto ser humano mesmo (...) Assumindo o Direito Positivo, de conseguinte, o inevitável risco de ver uma dada autonomia de vontade a se antagonizar com outra, por abuso de uma delas.

Este o fadário, a assumida destinação de um Direito que faz da convivência entre os contrários um dos mais expressivos conteúdos da Democracia (Tobias Barreto dizer ser o Direito o modus vivendi possível). Sabendo, de antemão, que a abstrata legitimação do uso de uma vontade individual pode resvalar para a danosa prática da abusividade. Mas também por antecipação convencido da maior valiosidade da premissa democrática de que não é pelo receio do abuso que se vai proibir o uso daqueles direitos e garantias em que mais resplende o valor da Liberdade. Há fórmulas compensatórias de resolução de conflitos e a ponderação jurisdicional dos interesses em jogo é a mais estratégica de todas elas. Com o quê a sociedade por recobrar o seu necessário estado de harmonia.

Ciente e consciente de tal sobredificuldade metodológica antecipo que todo o meu esforço operacional será o de demarcar o campo de lídima expressão de cada princípio em estado potencial de atrito, a fim de evitar o concreto sacrifício de um deles. Se não me for possível fazê-lo, também adianto que a minha preferência recairá sobre essa ou aquela norma-princípio que melhor assegure a aplicabilidade de outras que também tenham tudo a ver com o preâmbulo da Constituição, os fundamentos (incisos de I a V do art. 1º da CF) e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (incisos de I a IV do art. 3º da mesma CF). Dito pela forma contrária, o meu crivo de seleção prestigiará esse ou aquele princípio que, no caso vertente, menos sacrifício imponha aos demais. Demais princípios, reafirmo, nos páramos da mesma santíssima trindade do preâmbulo da Constituição e dos fundamentos e objetivos fundamentais da Federação Republicana brasileira.

Depois desse intróito, o ministro Ayres Britto suscitou a preliminar de concessão de ofício do HC. Segundo o ministro não ficou demonstrado que os livros tenham sido escritos e publicados após a vigência do art. 20 da edição da Lei n. 7.716, de 1989, que foi acrescentado pela Lei n. 8.081 de 1990. E que a criminalização de símbolos, emblemas, ornamentos distintivos visando a divulgação do nazismo se deu com a edição da Lei n. 9.459, de 1997.   Portanto, a conduta do paciente foi atípica à época dos fatos, pois não havia lei vigente que criminalizasse sua conduta de divulgar livros antissemitas.

Para alcançar essa conclusão o ministro assinalou:

Realmente, fácil é perceber que:

I – são de 1989 as datas de edição ou reedição dos seguintes livros, objeto da denúncia e apreendidos por ordem judicial: O Judeu Internacional, de Henry Ford; Os Protocolos dos Sábios de Sião, apostilada por Gustavo Barroso; Brasil – Colônia de Banqueiros, de Gustavo Barroso; Holocausto – Judeu ou Alemão? – nos Bastidores da Mentira do Século, de autoria dele mesmo, paciente, sob o pseudônimo de S. E. Castan;

II – não vem acompanhada de nenhuma indicação de data a 3ª edição do livro Os conquistadores do Mundo – os verdadeiros criminosos de guerra, que tem por autor o húngaro Louis Marschalko, mas é de presumir que tenha sido anterior à data da denúncia, pois o fato é que esse livro, cuja 1ª edição é de 1958, já constava da representação em que se louvou o Órgão Promotorial para o ajuizamento da denúncia (e tal representação é de 3 de julho de 1990);

III – finalmente, as outras duas obras (A História Secreta do Brasil, 1ª reedição, escrita por Gustavo Barroso, e Hitler, Culpado ou Inocente?, 1ª edição, impresso (que foi o de 1990). Nenhuma referência existe quanto ao mês das respectivas publicações, porém é de se presumir que esse mês tenha sido anterior à data de publicação da Lei n. 8.081 (sem falar que a primeira delas também figurava na citada representação, enquanto a outra, por silêncio do Ministério Público, não comporta exegese que não seja a do in dubio pro reo).   

Depois dessa provocação do ministro Ayres Britto instalou-se um forte debate no seio da Corte. O ministro Nelson Jobim questiona o ministro Ayres sobre a possibilidade de se examinar o conteúdo das provas (no caso os livros) no julgamento de habeas corpus, o que seria uma subversão do processo e que seria uma questão de fato, insuscetível de apreciação no julgamento de habeas corpus. O ministro Ayres Britto socorre-se em verso de Camões: “Cessa tudo que a antiga musa  canta que outro valor mais alto se alevanta”. O ministro Jobim rebateu dizendo que “Camões não conhecia Processo Penal”. Mas o ministro Britto assinalou que se “trata de impedir a consumação de nulidade absoluta: a retroatividade incriminadora da lei”.

O debate foi intenso e acalorado, com todos os demais ministros da Corte contra a proposta do ministro Ayres Britto, que maneira vibrante e quixotesca se manteve fiel na defesa de seu ponto de vista. A proposição do ministro Ayres foi rejeitada pelos demais ministros. A justificativa sintética da rejeição da concessão de ofício do HC consistiu em basicamente duas razões: a) não constava nos fundamentos do habeas corpus a tese da anterioridade penal nem a da liberdade de expressão; e b) não estavam presentes elementos suficientes e necessários para a concessão de ofício do HC.

Nada obstante essa rejeição que deixou o ministro Ayres Britto em posição escoteira, ele não se deu por convencido e reafirmou:

Sr. Presidente, não retiro a proposta, porque fiz uma coisa muito simples: li a denúncia e busquei as datas nela própria. Acabei de receber o processo. A autoridade denunciante indica as datas de edição e reedição dos livros, e elas ou são manifestamente anteriores à data da lei increpadora, ou, simplesmente suscitam aquela dúvida. A lei é de 90. Há dois livros que são de 90, mas o órgão promotorial público não diz em que mês essas edições ou reedições se deram. Então, aplico o princípio constitucional do in dubio pro reo; simplesmente isso. Mas acato, do ponto de vista do respeito, a decisão de V. Exa., e não tenho como deixar de fazê-lo, apenas não mudo de opinião. Peço vênia para persistir na minha proposta.

Superada a preliminar suscitada pelo ministro Ayres Britto, ele passou a votar no mérito do habeas corpus e defendeu o não cometimento de crime algum pelo paciente. O voto de mérito também tem duas grandes divisões (o regime constitucional do racismo e o concreto agir do paciente) e outras subdivisões (o racismo enquanto crime, a significação coloquial do substantivo “prática” etc.), todas visando a demonstrar um encadeamento lógico do seu raciocínio.

Nessa parte, o ministro Ayres Britto deixou assentado que a criminalização do racismo tem estofo constitucional, não apenas legal. E que para uma adequada compreensão dos mandamentos constitucionais se fazia necessário uma correta interpretação da Constituição e dos sentidos técnicos e coloquiais das palavras constantes nos textos normativos. Invocou o magistério de Gilberto Freyre, de Celso Ribeiro Bastos e o de Geraldo Ataliba. Deste último assinalou, em suas palavras, “esta lapidação de joia de pensamento”:

A interpretação constitucional deve ser feita de maneira diversa da do direito ordinário, porque sabemos que no direito constitucional a exceção é o emprego de termos técnicos. Na norma constitucional, havendo dúvida sobre se uma palavra tem sentido técnico ou significado comum, o intérprete deve ficar com o comum, porque a Constituição é um documento político; já nos setores do direito ordinário a preferência recai sobre o sentido técnico, sendo que a acepção comum só será admitida quando o legislador não tenha dado elemento para se infira uma acepção técnica.

Nessa linha, o ministro analisou as possibilidades semânticas e normativas, cotejando os textos normativos e perspectivando com autores do Direito e de outros domínios do saber e da cultura, das expressões “racismo”, “raça”, “cor”, “preconceito” e “discriminação”, para concluir que o crime de racismo não visa combater apenas o preconceito ou a discriminação decorrente da raça ou racial, nem tampouco o preconceito de cor, mas o “racismo” significa a discriminação preconceituosa fundada em uma equivocada e deturpada visão de superioridade que alguns segmentos de pessoas supostamente julgavam possuir em relação a outros segmentos de pessoas humanas. Assim, segundo o ministro, o preconceito e a discriminação contra os judeus poderia ser compreendido como racismo, crime inafiançável e imprescritível.

O ministro também enfrentou o tema dos “usos” e “abusos” da liberdade de expressão. Segundo ele, uma coisa é a liberdade de que desfruta “quem quer que seja para dizer o que quer que seja”, ou ainda, para trazer à ribalta suas incursões pelos domínios da Arte, do Intelecto, da Ciência, ou da Comunicação; outra coisa bem diferente, segundo o ministro, é o titular dessas liberdades ficar imune a resposta por eventual agravo a terceiros, ainda que não intencionalmente cometido, ou pior ainda, assinalou o ministro, deixar de responder pelos abusos em que vier  a incorrer, deliberadamente.

O ministro Ayres Britto dividiu a liberdade de expressão em quatro partes: a intelectual, a científica, a artística e a de comunicação. Mas segundo ele três comportamentos são normados como excludentes de abusividade: a crença religiosa, a convicção filosófica e a convicção política. Nada obstante, segundo o ministro Ayres Britto, a Constituição repudia o racismo e o caracteriza como crime inafiançável e imprescritível, de sorte que eventual acanhamento interpretativo alquebra a força normativa da Constituição e atenta contra o princípio da instrumental da máxima efetividade das “Lei das Leis”. Daí que o que interessa para a Constituição é a intersubjetividade da revelação do preconceito, não os meios utilizados para tal exteriorização, ou a forma pela qual o discriminador se enlaça a terceiros. Nessa batida, o ministro assentou que as práticas abusivas que sejam reconhecidas como criminosas devem ser punidas.

Fincadas as premissas, o ministro Ayres Brittou analisou “o concreto agir do condenado, ora paciente” e assinalou:

.... o que me incumbe enquanto julgador é saber se o brasileiro Sigfried Ellwanger Castan abusou, ou não, da sua liberdade de expressão. Se extravasou, ou não, os limites jurídicos da sua autonomia de vontade, passando a discriminar todo o povo judeu. Porque dessa resposta é que depende o deferimento, ou, ao inverso o indeferimento do habeas corpus sob judice. Sem que se possa levantar contra esse modelo concreto de subsunção o argumento dos mais estreitos lindes probatórios do heroico remédio em que o habeas consiste.    

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O ministro passou a discorrer sobre as obras escritas pelo autor (então paciente do habeas corpus), e chegou à conclusão, segundo ele penosa, de que se trata de um livro de pesquisa histórica, de revisitação ou de revisionismo histórico, mediante a exposição das convicções filosóficas e políticas do paciente, estando, portanto, no livre campo das ideias. E, segundo o ministro, não há incitação ao ódio contra os judeus. Há, segundo ele, um ataque ao “sionismo internacional”, que seria, na visão do paciente (escritor) e compartilhada por muitos outros autores e personalidades políticas e sociais ao longo da história, uma visão ideológica de supremacia dos interesses dos judeus. E que o paciente, enquanto autor, escreveu uma obra de vasta pesquisa histórica, de sorte que a discordância com as ideias explanadas pelo paciente, enquanto “intelectual” não autorizava a sua criminalização, visto que “não é crime tecer uma ideologia”, ainda que essa ideologia seja pouco verossímil e equivocada, como a do paciente.

Depois de analisar os livros escritos pelo paciente, o ministro passou a analisar os livros que ele editou e publicou. E também nesse campo reconheceu o exercício do direito de livre pesquisa científica, especialmente pelo fato de que tais obras estavam à disposição do público desde há muito tempo, circulando livremente em vários países do mundo, como sucede com o livro. E, segundo o ministro, em todas elas estavam as marcas da liberdade político-ideológica e o combate ao movimento político “sionista”.

Em suma, segundo o ministro Ayres Britto, os livros escritos e os publicados pelo paciente não seriam livros que praticavam o racismo, mas livros que externalizavam uma opinião político-ideológica, que era equivocada, mas ainda assim protegida pela Constituição. Assim segundo o ministro não houve abuso da liberdade de expressão, mas uso desse direito. E, segundo o ministro, da leitura dos livros não seria crível o leitor, apenas por essa leitura, cometer atos de ódio contra os judeus, salvo em situações excepcionalíssimas e de predisposição patológica. Mas aí, o livro seria usado como pretexto, mas não como instrumento.

E, forte nesses argumentos e fundamentos, o ministro votou pelo deferimento do habeas corpus. Na última sessão de julgamento, ocorrida em 19 de setembro de 2003, o ministro reiterou o seu entendimento e voltou a travar um áspero debate com os demais ministros da Corte e mesmo diante de duras críticas de alguns colegas pronunciou as suas últimas palavras nesse histórico e simbólico julgamento: “Mantenho convictamente meu voto. Absolvo Siegfried Ellwanger Castan”.    

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Mau gosto não é crime: elogio crítico ao Ministro Ayres Britto no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5800, 19 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74003. Acesso em: 22 dez. 2024.

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