A participação das crianças e adolescentes no Santo Daime:

a dicotomia entre a liberdade religiosa e o exercício do poder familiar

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10/06/2019 às 14:06
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Reflexões sobre o direito fundamental à liberdade religiosa e seus reflexos sobre a faculdade que aos pais assiste de inserir seus filhos na religião ayahuasqueira, dentro do exercício do poder familiar.

RESUMO: Este artigo tem o propósito de verificar a liberdade religiosa, a qual se constitui em direito fundamental declarado pelo ordenamento pátrio, a partir do estudo dos direitos e deveres que os pais possuem na inserção dos seus filhos na religião ayahuasqueira do Santo Daime. Lançar-se ao estudo do tema aqui proposto é vivenciar a aplicação do direito fundamental, é tornar real a previsão constitucional e dar à liberdade religiosa eficácia e concreção.  Considerando a escolha religiosa dos incapazes, o poder familiar, no que se referem à utilização da beberagem consumida pelos participantes desse culto, tem como objetivo verificar a possibilidade da interferência do poder de família no direito de liberdade do adolescente, no que diz respeito à opção de crença religiosa. A problematização é em torno do consumo da ayahuasca por crianças. O objetivo deste ensaio etnográfico volta-se à descrição e ao entendimento qualitativo dos fenômenos cotidianos e místicos experienciados por “crianças ayahuasqueiras”. Observa-se no presente trabalho que, em caso de eventual conflito, entre a liberdade religiosa do menor e o poder familiar dos pais a solução passará pelo princípio do melhor interesse do menor, de forma que o papel dos pais é educar e não impor religião, sendo este o posicionamento adotado pelos Tribunais.    

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade Religiosa, Poder Familiar, Santo Daime    


INTRODUÇÃO 

Neste trabalho, temos o propósito de discutir sobre as relações entre o direito à liberdade religiosa e o poder familiar. Desenvolveremos essa discussão a partir do caso da participação de crianças e adolescentes na religião ayahuasqueira do Santo Daime. Discutiremos, assim, sobre o direito dos pais na inserção dos seus filhos nessa religião e, portanto, no consumo da ayahuasca, que é uma bebida psicoativa utilizada nesse culto. 

Segundo Labate (2004, p. 65), basicamente a ayahuasca no Brasil é formada por uma decocção composta por água e duas espécies vegetais, o cipó Banisteriopsis Caapi e a folha do arbusto Psychotria Viridis. Trata-se de uma bebida de origem indígena, provinda da região amazônica, onde se desenvolveram religiões cristãs que a consomem como sacramento. Essas religiões, o Santo Daime (Alto Santo/ Iceflu), a Barquinha[1] e a União do Vegetal [2] foram definidas como religiões ayahuasqueiras brasileiras durante o processo de regulamentação do uso dessa bebida no Brasil que deu origem à Resolução N ͦ 1 de 2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas -  CONAD. De acordo com Labate et al (2008: 23) essa definição apareceu Ipsis litteris pela primeira vez na obra organizada por Araújo & Labate (2009), “O uso ritual da ayahuasca”.

Atualmente, o uso dessa substância psicoativa no Brasil e no mundo encontra-se bastante difundido, mas não há um registro específico da quantidade de participantes dos cultos aonde há ingestão da bebida, os pesquisadores estimam que somente no território nacional esse número se aproxima das duas dezenas de milhares Labate et al  (2008). A expansão do uso gerou vários questionamentos na sociedade sobre a legitimidade desta prática, é um desses questionamentos consiste em indagar se o uso da ayahuasca causaria prejuízos sociais e individuais, no aspecto físico-químico e das interações entre as pessoas.

O fato de a ayahuasca conter uma molécula proibida pela ONU a dimetiltriptamina (DMT), que é considerada alucinógena, causou grande embaraço no tratamento da questão, mas a própria Organização admitiu que sua regulamentação não recaia sobre as espécies vegetais que compõe a ayahuasca e nem sobre a bebida, o que deu certa abertura para que a questão fosse tratada mais do ponto de vista cultural e do direito, do que do ponto de vista da criminalização. 

Diante disso, o Estado brasileiro realizou um longo processo de investigação sobre o uso da ayahuasca e os grupos que fazem esse uso. Processo este que teve início na primeira metade da década de 1980 e desfechou-se na autorização do uso ritual da ayahuasca em 2010, o que também deu suporte para que em 2011 o governo brasileiro, através do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional), iniciasse o processo de inventário desse uso para possível patrimonialização (COSTA 2017). Nesse cenário, o caso da participação de crianças e adolescentes no Santo Daime gera determinados questionamentos como, por exemplo, sobre os alcances e os limites do poder familiar no respeito à liberdade religiosa dos menores.

Sendo assim, dividimos este trabalho em três capítulos através dos quais pretendemos primeiro, desenhar um cenário sobre o consumo religioso da ayahuasca chamada de Santo Daime no culto fundado por Raimundo Irineu Serra no início do século XX no Acre. Escolhemos esse grupo religioso como foco de análise, porque ele é um dos grupos que mais se expandiu na última década e vivenciou controvérsias jurídicas. Num segundo momento do trabalho, dedicamos um capítulo à definição das categorias de liberdade religiosa e poder familiar, com o intuito de constituirmos ferramentas teóricas para analisar, finalmente, a relação desses direitos no contexto do Santo Daime, no terceiro capítulo.  


O CONTEXTO DO USO RELIGIOSO DA AYAHUASCA NO SANTO DAIME

Para desenharmos o contexto do uso religioso da ayahuasca no Santo Daime é importante considerarmos a dimensão do controle do uso dessa substância psicoativa, pois por um lado vigora certo controle estatal sobre a prática e por outro lado os grupos possuem seus próprios mecanismos de controle interno do uso. Essas formas de controle influenciam o direito à liberdade religiosa e o direito familiar exercido. Logo, no texto a seguir descreveremos sinteticamente a história e a configuração doutrinária do Santo Daime para podermos visualizar com mais clareza esses mecanismos internos de controle. Depois, citaremos os parâmetros normativos estabelecidos pelo Estado brasileiro através da Resolução N ͦ 1 de 2010 do CONAD.  

O Santo Daime considerado como uma religião possui arcabouço doutrinário, ou seja, um conjunto de normas morais que orientam a vida do fiel, ao mesmo tempo em que possui uma institucionalidade. As referências para a formação desse arcabouço encontram-se, segundo os antropólogos (LABATE et al 2008; MACRAE 1992), no cristianismo popular, na cultura de matriz africana, como o tambor de mina, no espiritismo europeu, no esoterismo europeu e especialmente no xamanismo amazônico, da onde deriva o consumo ritual de substâncias psicoativas como sendo uma interação com o sagrado.

Essa característica é fundamental para entendermos o papel central que o santo daime ocupa quanto ao sacramento, pois na cultura xamânica a ayahuasca é considerada um ser superior que ensina e revela a verdade para quem entra em contato íntimo com ela, por isso é chamada, também, de planta professora. Dentro do Santo Daime, a substância psicoativa é considerada como sendo o próprio corpo do Cristo, um ser que deve ser muito respeitado e que é compreendido, por exemplo, como “o professor dos professores”. Podemos dizer que essa concepção valórica fundamentada na própria trajetória de criação e consolidação de dita religião influencia de maneira determinante o comportamento de consumo dentre os fiéis, uma vez que a vulgarização desse uso significaria um rompimento com um dos princípios fundadores dessa crença. 

No que se refere à relação dessa centralidade do Santo Daime com a história dessa religião, é interessante frisarmos alguns aspectos. O fundador desse culto, posteriormente conhecido como Mestre Irineu, migrou do Maranhão para o Acre a fim de trabalhar na economia da borracha no início do século, levando consigo toda sua influência cultural. Na fronteira com o Peru, no interior da Amazônia, o negro maranhense travou contato com o xamanismo indígena onde aprendeu a usar a substância psicoativa em questão. A partir desse consumo, quer dizer, das implicações que a bebida gerava em sua vida, esse líder espiritual foi configurando um novo formato ritual. Uma dessas implicações foi o contato com seres oriundos do plano espiritual, sendo o principal deles uma entidade que Irineu reconheceu como Rainha da Floresta ou Nossa Senhora da Conceição. Esse ser teria lhe ensinado a preparar a bebida dentro de uma nova concepção, a qual definia a função da bebida que era dar tudo o que uma pessoa realmente estivesse precisando, sobretudo o entendimento da sua própria realidade, por essa razão que a bebida indígena milenar dentro dessa ritualização passa a se chamar daime, em referência ao verbo dar, dai-me, tudo o que eu precisar, sendo assim a bebida conteria em si toda potencialidade, todo poder (COSTA, 2015; MACRAE, 1992 p.59-125).

Após essa primeira experiência, Raimundo Irineu Serra em conjunto com um grupo de amigos, que, posteriormente, seriam conhecidos como “companheiros do Mestre”, e passou a realizar reuniões de caráter religioso onde era consumida a bebida psicoativa do santo daime. Inicialmente, o grupo, chamado de Círculo de Regeneração e Fé, sofreu grande perseguição policial por ser considerado um grupo de negros curandeiros que utilizavam substâncias venenosas, como bem explica a obra de MacRae & Moreira (2011). Dessa forma, o grupo que se mudou para a periferia de Rio Branco no Acre em busca de melhores condições de vida, já que o último ciclo da borracha havia entrado em crise, reconfigurou seus rituais dando-lhe um caráter institucionalizado. Por isso, muitos adeptos dessa religião consideram que a mesma nasceu por volta do início da década de 1930, que é justamente quando o ritual é padronizado e o grupo registrado nos órgãos competentes do poder público.

Segundo MacRae (1992, p.65), nessa época vigorava uma intensa política de repressão à práticas consideradas feitiçaria, com base no código penal de 1890 que criminalizava a prática ilegal de medicina, da magia e do curandeirismo. Diante da ameaça que essa visão criminalizante poderia representar para o culto que estava organizando, Mestre Irineu teria incentivado certas características e desencorajado outras. A organização do culto em si num formato bastante parecido com uma estrutura militar é prova disso, os fiéis são divididos em dois batalhões, feminino e masculino, ademais os adeptos devem vestir uma farda cuja confecção e manutenção exigem zelo e investimento. Além disso, o uso da bebida alcoólica e do cigarro são desencorajados e em alguns momentos até proibidos, ou seja, os elementos que poderiam sinalizar para qualquer ideia de desordem e descontrole vão sendo eliminados. Outro detalhe muito importante na configuração ritualística é o papel central exercido pela música. Dentro do Santo Daime, a referência doutrinária da religião, quer dizer, todo o arcabouço doutrinário com suas normas e valores advêm do conjunto de hinos de louvor que os seus adeptos canalizam como mensagens mediúnicas. No ritual, esses hinos são cantados, dançados e tocados de forma bem ordenada, com passos e melodias bem definidas, dentro de uma divisão de funções no espaço do salão da Igreja. Mestre Irineu possui um hinário, caderno que contém um conjunto de hinos de louvor, chamado O Cruzeiro, o qual foi considerado fonte da forma básica dessa religião, depois outros adeptos também canalizaram hinários, os quais compõem hoje os cultos do Santo Daime. Vemos assim, que essas características ajudam a estabelecer uma determinada ordem na relação com o consumo da bebida psicoativa dentro do exercício dessa religiosidade. Tudo isso sugere a existência de um uso controlado socialmente, pois há regras rígidas de produção, distribuição, armazenamento e consumo da substância, evitando consequências prejudiciais aos integrantes (MACRAE, 1992 p.59-125).

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No início da década de 1970, após a morte de Raimundo Irineu Serra, um grupo importante de adeptos do Santo Daime se reuniu em torno da liderança do ex-seringueiro Sebastião Mota de Melo, que deu continuidade ao culto e fundou uma instituição diversa da original, o hoje chamado Iceflu (Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal). Foi a partir desse ramo que o Santo Daime se expandiu como religião pelo Brasil e pelo mundo, causando, assim, a desconfiança da sociedade e do Estado que questionaram o consumo de uma substância psicoativa como sacramento, considerando que pudesse se tratar de um disfarce para o uso de drogas.

É importante sublinhar, que a concepção da bebida como sacramento ocorre de maneira bastante natural dentro da mentalidade xamânica ou cabocla, da qual o Santo Daime sofre grande influência e segundo a qual a natureza e suas espécies representam um conglomerado de seres com os quais devemos aprender a nos relacionar e respeitar. Nessa concepção muitas espécies vegetais são vistas como “plantas professoras”, ou seja, substâncias que trazem muitos ensinamentos para quem as consome. Devido a esta característica fundamental, o Santo Daime do ramo liderado pelo homem que ficou conhecido como Padrinho Sebastião, encontra-se em certa medida aberto para o reconhecimento da importância de outras espécies além daquelas que compõem a bebida sagrada. Entretanto, neste artigo não entraremos no mérito do consumo de outras substâncias que não o Santo Daime, pois a relação com este é o nosso foco de análise, uma vez que é esta bebida que é normatizada pelo governo brasileiro, influenciando o direito dos pais a levarem seus filhos aos rituais.

Para MacRae (1992), a ingestão da ayahuasca no âmbito daimista reproduz uma invocação emblemática à redução da nocividade.

Entre os membros da seita, o efeito da bebida é tradicionalmente entendido como um transe em que o sujeito expande seus poderes de percepção, tornando-se consciente de fenômenos de um plano espiritual que, por sua sutileza, normalmente escapam aos sentidos. Além disso [...] essa prática é rigorosamente prescrita em seus menores detalhes, tornando-se um bom exemplo do uso controlado de um psicoativo (MACRAE 1992 p. 117)    

Com a expansão da religião durante a década de 1980, o governo brasileiro iniciou um processo de investigação dos grupos a fim de averiguar a finalidade do uso do Santo Daime e se este uso causava algum dano social e/ou individual. Foram quase trinta anos de pesquisas e diálogo com os grupos religiosos até que em 2010 foi publicada a Resolução N 1 do CONAD (Conselho Nacional Sobre Drogas) que autoriza o uso religioso dessa substância nos seguintes termos nas letras c) e d) do artigo 2:

c) a liberdade religiosa e o poder familiar devem servir à paz social, à qual se submete a autonomia individual;

d) deve ser reiterada a liberdade do uso religioso da Ayahuasca, tendo em vista os fundamentos constantes das decisões do colegiado, em sua composição antiga e atual, considerando a inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia de proteção do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, com base nos arts. 5 o, VI e 215, § 1o da Constituição do Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação de preconceito" (CONAD, 2010).    

Vemos que a própria normativa aufere papel central ao direito à liberdade religiosa e ao poder familiar, conceitos estes que serão objeto de nossa dissertação no próximo capítulo. Eles servirão de base para discutirmos no terceiro e último subtítulo deste artigo, o caso do exercício do Poder Familiar dentro da Liberdade Religiosa de culto ao Santo Daime.

De acordo com MacRae (1992 p.87), durante o processo de investigação do governo brasileiro sobre as chamadas religiões ayahuasqueira a grande parte das denúncias apuradas sobre os grupos diziam respeito a relacionamentos entre pais e filhos que discordavam da participação destes nos rituais.       

Contudo, acompanhando os argumentos do Juiz Federal Jair Araújo (2013) Facundes, podemos considerar que se a ayahuasca é aceita enquanto base fundamental de uma atividade religiosa de boa-fé, originada da cultura ameríndia, seu uso, nesses limites, não poderia ser refreado pela legislação proibicionista, ou pela política de drogas, porque a liberdade de religião e o poder familiar, como direitos fundamentais, apresenta organização preferencial no manifesto político, não conseguindo ser extinta pela medida majoritária. No capítulo a seguir abordaremos a definição desses conceitos fundamentais para podermos refletir em seguida sobre o caso do Santo Daime.    

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