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A execução provisória da pena e o princípio da não culpabilidade segundo o Supremo Tribunal Federal

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22/08/2019 às 15:50
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Aborda-se o entendimento do STF acerca da execução provisória da pena frente ao princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, que foi modificado duas vezes em menos de uma década.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise do entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à compatibilidade entre o início da execução da pena após condenação em segunda instância sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o princípio constitucional da não culpabilidade.

Analisa-se, no primeiro capítulo, o entendimento da maior doutrina em relação à conceituação de um princípio e sua efetiva função dentro do ordenamento jurídico pátrio, bem como a forma com que o princípio da presunção de não culpabilidade foi recepcionado pela ordem jurídica brasileira, além das razões de seu surgimento no fim do século XVIII.

No segundo capítulo, o presente artigo científico visa conceituar o instituto da execução provisória da pena, bem como trazer à tona suas possíveis consequências. Verificando ainda, à luz da doutrina majoritária, a possibilidade ou impossibilidade da utilização do instituto em comento, de acordo com a ideal interpretação das normas constitucionais a fim de solucionar os aparentes conflitos de normas.

Por fim, no terceiro capítulo, o presente trabalho objetiva analisar as razões motivadoras das mudanças de posicionamento da Suprema Corte quanto ao tema, além de identificar a compatibilidade entre o entendimento do Supremo e o da doutrina em relação à fundamentação jurídica para tais mudanças.

Para o alcance de tais objetivos, o presente artigo utiliza a metodologia de pesquisa científica, lançando mão das pesquisas bibliográficas, documentais e de estudo de caso, tendo em vista a questão abordada ter suas discussões travadas em obras doutrinárias e em julgados da Suprema Corte Brasileira.


2 DOS PRINCÍPIOS NO CAMPO DE ESTUDO DO DIREITO

Os princípios gerais do Direito são a base que sustentam o sistema jurídico vigente e têm sua origem nos Direitos naturais do homem. Tais princípios consistem em enunciados normativos de ordem abstrata, que orientam a interpretação a ser dada às normas positivadas, tanto para a aplicação, quanto para a edição de novas normas.

Segundo o ilustríssimo mestre Miguel Reale, autor da conhecida teoria tridimensional do Direito, Aristóteles dizia que a lei natural é a expressão da natureza das coisas, possuindo por consequência a importância relativa à sua utilidade na vida prática. Desta forma, o direito natural não só antecede o direito positivo, como estabelece os bens jurídicos a serem guardados por estes, com base em constantes axiológicas (REALE, 2002, p. 311).

Tal conceito é facilmente compreendido quando se analisa o princípio da dignidade da pessoa humana, onde o homem tem um direito tutelado somente por ser humano. Tal postulado está vinculado a um elemento da própria natureza do indivíduo e por isso tais direitos são considerados direitos naturais.

Conforme a doutrina liderada pelo já citado professor Miguel Reale, os princípios surgem para que todo o sistema jurídico seja construído e interpretado conforme os fundamentos axiológicos dos Direitos naturais do homem. Em outras palavras, estes princípios são a fundação que sustenta toda a construção de um ordenamento jurídico, indicando o sentido de cada dispositivo.

Entre os princípios gerais do Direito existem diferentes abrangências, pois existem aqueles que devem ser aplicados de forma universal às áreas do Direito e aqueles que somente cobrem determinados ramos da ciência jurídica (REALE, 2002, p. 305).

2.1 DA FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO

No sistema jurídico brasileiro o legislador reconheceu a importância desses princípios de tal forma que lhes consagrou em dispositivos legais, inclusive em esfera constitucional, como por exemplo o princípio da legalidade e o princípio da não culpabilidade trazidos pela Constituição Federal no seu art. 5º, XXXIX e LVII respectivamente.

Tais dispositivos trazem claramente em sua redação um conceito do princípio consagrado.

De outra sorte, conforme citado na obra do professor Reale, sinaliza o notável jurista alemão Josef Esser que, independentemente de estarem presentes no texto legal, os enunciados principiológicos não deixam de possuir eficácia. Visto que quando uma lei consagra um princípio, está apenas servindo como veículo para o alcance de uma norma fundamental, pois apesar de lhe dar forma, não lhe altera a substância (REALE, 2002, p. 305).

No Direito brasileiro, pode ser citado novamente como exemplo o princípio da dignidade da pessoa humana, que, embora consagrado pelo art. 1º, III, bem como pelo art. 34, VII, ambos da CF/1988, não encontra seu conceito estampado na redação de qualquer dispositivo legal. Entretanto é homenageado por inúmeros diplomas legais nos mais variados ramos do direito. Podendo-se tomar como exemplos as vedações à tortura trazido pelo inciso III, do art. 5º da CF/88, às penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados, banimento e cruéis, trazidas pelo mesmo artigo constitucional em seu inciso XLVII.

Fugindo da esfera do direito criminal e adentrando um ramo completamente diverso, no direito do trabalho, existe a garantia de que o salário mínimo será capaz de atender as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, dada pela Magna Carta em seu art. 7º, IV.

Infere-se então, que independente do ramo, todos os citados dispositivos legais, apesar de não o conceituarem, trazem entranhados em sua ratio a observância ao princípio da dignidade da pessoa humana.

2.2 DA RECEPÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO

Conforme nos ensina o ilustríssimo mestre Paulo Rangel, o princípio da presunção de inocência surge no fim do século XVIII, na Europa, inspirado pelo movimento iluminista e em face a necessidade de se levantar contra o sistema processual penal inquisitório, que era adotado desde o século XII. Tamanha necessidade se dava pelo fato de o sistema vigente à época não dispor de qualquer garantia capaz de proteger o cidadão do poder do Estado, que presumia a culpabilidade do réu, até que o mesmo comprovasse o contrário.

Com o advento da revolução francesa, nasce, em 1789, a Declaração do homem e do cidadão, que em seu art. 9º materializa pela primeira vez o princípio da não culpabilidade (RANGEL, 2016, p. 23-24).

Segundo o iluminista clássico Cesare Beccaria, no modelo penal inquisitório a medida extrema era a regra e se conseguia a confissão do acusado através da tortura (BECCARIA, 1764, p. 23). No período colonial, este era o sistema penal adotado pelo Brasil.

Com a chegada da família real, o Brasil foi alcançado pelos ideais iluministas que em 1824 se materializavam nas primeiras garantias fundamentais do cidadão brasileiro. Como por exemplo o art. 179 da Constituição de 1824, que previa que ninguém poderia ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados na lei.

Mais recentemente, já no período republicano, o Brasil tornou-se signatário da Declaração universal dos Direitos do homem em 1948. Salientando-se que tal declaração traz em seu art. 11 as garantias de que o indivíduo seja presumido inocente até que se prove sua culpa de acordo com a lei e em julgamento que lhe tenha sido assegurada a ampla defesa.

Apesar de ser signatário da Declaração universal do Direitos do homem, somente com a promulgação da Constituição de 1988 o Brasil teve o princípio da não culpabilidade positivado no art. 5º, LVII da CF/1988.

Além disso, ratificado pelo decreto nº 678 de 1992, passou a vigorar no ordenamento jurídico pátrio o Pacto de San José da Costa Rica, que institui que o princípio da não culpabilidade é corolário dos direitos e garantias fundamentais.

Por conseguinte, o princípio consagrado pela Magna Carta em seu art. 5º, LVII, se revela numa cláusula pétrea, não podendo haver restrições aos direitos garantidos pela mesma, conforme art. 60, §4º, IV da CF/1988.

2.3 DO CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS E O DIREITO POSITIVO

À vista do exposto, dada a natureza humana dos componentes participantes do processo legislativo, bem como dos aplicadores da norma, por equívoco ou por qualquer outra razão, nem sempre as normas acabam sendo aplicadas ou até mesmo editadas em consonância com o princípio correspondente ao direito tutelado.

Nasce então a problemática do conflito entre o princípio e a norma positivada, principal questionamento abordado pela conhecida Teoria dos círculos, de autoria do professor Miguel Reale.

A teoria argumenta que existem três espécies de preceitos, a saber: I – Aqueles que são puramente jurídicos; II- Aqueles que são puramente morais; III – Aqueles que concomitantemente são morais e jurídicos.

Reale representa os preceitos morais e jurídicos por círculos independentes, que se organizam em relações de formas diferentes, sendo estas concêntricas ou secantes.

A primeira nos remete à ideia de que o círculo do direito está contido inteiramente no interior do círculo moral, sendo, portanto, moral tudo aquilo que é de direito.

A segunda relação nos traz a imagem dos círculos com dois pontos de interseção entre si. Desta forma a moralidade e o direito possuiriam preceitos independentes, entretanto também ostentariam preceitos em comum (REALE, 2002, p. 42-43).

Evidentemente a teoria dos círculos na forma concêntrica deve ser objeto de estudo da deontologia, uma vez que se operaria em um mundo ideal.

Entretanto, no mundo ôntico, se mostra adequada a teoria dos círculos organizados de forma secante, haja vista que, por numerosas vezes, no cotidiano, não é incomum se deparar com situações revestidas de legalidade, porém carentes de qualquer moralidade.

Voltando a problemática do conflito entre as normas naturais e positivas, na prática, a questão é resolvida através da hermenêutica. Ou seja, de processos interpretativos que vão moldando as normas disformes aos princípios gerais do Direito.

Ocorre que nem sempre existe interpretação capaz de realizar este recorte moral em determinada norma. Restando patente, nesses casos, divergência entre a justiça e a legalidade.

Nesta situação, Reale nos mostra que existem aqueles que, movidos por ideais filosóficos ou morais, heroicamente se recusam a aplicar a “norma imoral” em ato de mais lídima justiça.

Apesar de nobre, tal ação não guarda nenhuma segurança jurídica, visto que é defeso ao jurista, advogado ou magistrado não reconhecer a vigência de uma lei fundado em seu conceito próprio de justiça, sob pena de flagrante desrespeito à separação das três funções do Estado.

Parafraseando as últimas palavras do grande filósofo Sócrates enquanto se recolhia à execução da pena de morte que lhe impuseram “é preciso que os homens bons respeitem as leis más, para que os maus não aprendam a desrespeitar as leis boas”. 

Neste panorama, o doutrinador pensa no sentido de que a história do Direito nos demonstra que a Justiça é o valor mais alto, mas nem sempre é o mais urgente. Inclusive porque, quando a ordem e a paz são preservadas, também são preservadas as condições para a reconquista do justo (REALE, 2002, p. 318).

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Ainda assim, importante recordar que, no Direito brasileiro, o legislador conferiu força cogente a determinados princípios, em especial àqueles que estão estampados no texto constitucional.

Em se tratando de um conflito aparente entre uma norma infraconstitucional e algum princípio consagrado no texto da Lei Maior, não há que se questionar a prevalência desta em relação àquela, visto que esta última possui uma posição hierárquica privilegiada.

Este é o entendimento da maior doutrina que conta com o apoio de grandes juristas, entre eles o ilustre professor Norberto Bobbio, que, em sua obra sobre a Teoria Geral do Direito, demonstra a existência de princípios capazes de resolver os aparentes conflitos, quais sejam: I- Hierarquia; II- Cronologia; III- Especialidade.

O primeiro é o único que trata a questão do um aparente conflito entre normas de hierarquias diferentes e resolve a situação instituindo que a norma de hierarquia superior prevalece sobre a inferior; o segundo princípio trata do conflito aparente entre normas de mesma hierarquia e estabelece que a lei mais moderna deve prevalecer em relação a mais antiga; o terceiro princípio também tem como objeto o conflito entre normas de mesma hierarquia e nos orienta que a norma de que trata a matéria de forma específica deve prevalecer sobre a norma genérica (BOBBIO, 1982, p. 88).

2.4 DO CONFLITO APARENTE ENTRE PRINCÍPIOS

Na hipótese de se identificar um aparente conflito principiológico, caracterizado pela colisão de ao menos dois princípios constitucionais que incidem sobre uma mesma situação fática, o prestigiado professor Daniel Sarmento nos mostra os passos a serem seguidos para resolver os aparentes conflitos dessa natureza.

Segundo Sarmento, primeiramente se deve interpretar os cânones envolvidos para verificar se é possível harmonizá-los ou se realmente se confrontarão para resolução do caso.

O professor explica que esta tarefa confere cumprimento ao princípio da unidade da constituição, que demanda do hermeneuta o esforço pela busca da conciliação entre as normas constitucionais aparentemente conflitantes, evitando colisões.

Isto porque a Constituição não representa um conjunto de normas isoladas, mas um organismo no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das demais.

Neste contexto, se deve então delimitar o campo normativo alcançado por cada princípio em questão, para que saiba se a hipótese realmente está debaixo da tutela de mais de um deles.

Sarmento classifica tais delimitações como “limites imanentes” e explica que tais limites devem ser fixados antes da resolução dos conflitos, que só se caracterizará se uma situação fática estiver no interior dos limites imanentes de duas ou mais normas constitucionais (SARMENTO, 2003, p. 99-100).

Se não se mostrar possível interpretação capaz de harmonizar os princípios conflitantes, deve-se passar para a segunda parte do processo de ponderação dos interesses em jogo.

Neste caso, ainda Sarmento nos mostra que, à luz de circunstâncias concretas, o intérprete deve comparar o peso genérico dado pela constituição a cada um dos princípios envolvidos.

Após isto, deve-se levar em consideração a importância que cada princípio vai assumir no caso concreto, dando resultado ao peso específico de cada direito fundamental.

Com isto, o princípio que foi considerado de maior peso específico levando em conta a aplicação ao caso concreto deverá prevalecer em relação ao de menor peso.

Imperioso dizer que essa prevalência não é absoluta e deve ter por objetivo garantir a sobrevivência do princípio contraposto, de forma que a restrição seja a menor possível e que o benefício logrado compense o grau de sacrifício imposto ao princípio relativizado (SARMENTO, 2003, p. 102-103-104).

Por este prisma, se percebe a natureza flexível dos princípios constitucionais, podendo ser relativizados em detrimentos de seus congêneres quando a situação fática assim exige.

Por oportuno, muito importante salientar que não se trata de graduação de importância entre os princípios constitucionais na sua forma genérica, mas do peso que lhe é conferido pela situação fática sob sua aplicação. Sendo possível que um princípio prevaleça em uma situação fática e em caso diverso seja relativizado em detrimento do princípio anteriormente sacrificado.

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FRAGOSO, Marcelo Dias. A execução provisória da pena e o princípio da não culpabilidade segundo o Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5895, 22 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74635. Acesso em: 23 abr. 2024.

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