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A técnica de dinamização do ônus da prova no modelo constitucional do processo

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13/09/2019 às 16:00
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Apontam-se as bases constitucionais para a aplicação de uma técnica mais flexível de distribuição do ônus da prova, chamada de distribuição dinâmica do ônus da prova, indicando os seus requisitos e limites.

Resumo: O presente artigo tem a finalidade de apontar as bases constitucionais para a aplicação de uma técnica mais flexível de distribuição do ônus da prova, chamada de distribuição dinâmica do ônus da prova, apontando os seus requisitos e limites. O contexto histórico para se chegar à técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova também será indicado, demonstrando a necessidade de dimensionar o ônus da prova com os interesses substantivos das partes e critérios de equidade, desde que respeitados o contraditório, ampla defesa, e adequada fundamentação das decisões judiciais. Ainda, procurar-se-á apontar críticas ao modelo adotado pelo Código de Processo Civil de 2015, de modo a aplicar a técnica em questão em conformidade com o modelo constitucional do processo.

Palavras-chave: Ônus da prova, distribuição do ônus da prova, técnica processual, flexibilização, distribuição dinâmica do ônus da prova.

Sumário: Introdução. 1. Base constitucional da técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova – 2. Aproximação entre ônus da prova e direito material – 3. Surgimento da técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova e legislação infraconstitucional – 4. Técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova no CPC de 2015: requisitos, limites e momento – Conclusão.


Introdução.

A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova deve ser analisada com base no modelo constitucional do processo civil, que traça sua base e seus limites. Para tanto, devem ser apontados os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o instituto da prova, indicando-a como um direito fundamental.

Para uma melhor compreensão da referida técnica, importante identificar as bases constitucionais para a implementação da distribuição dinâmica do ônus da prova, relacionando-a com o acesso à ordem jurídica e o devido processo legal.

Após traçar suas bases, para compreensão da utilidade da técnica, parte-se da premissa que o ônus da prova está relacionado com o direito material, de modo a destacar a importância do regramento do ônus probatório para adequada atuação daquele.

Ainda, é preciso considerar que a incidência da técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova não é absoluta, devendo também ser conformada com o modelo constitucional do direito processual civil, sobretudo com as garantias do contraditório e da ampla defesa.


1. Base constitucional da técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova.

Para que o processo se apresente como instrumento eficaz de acesso útil à justiça, não basta assegurar o ingresso em juízo, pois se impõe uma resposta judicial efetiva, que dê real proteção ao direito material, garantindo o acesso à ordem jurídica justa, que se realiza, também, por meio do efetivo acesso aos instrumentos voltados à sua consecução.

A importância de uma atividade judicial efetiva está presente na Constituição Federal, que assegura o acesso à justiça (art. 5º, XXXV), o contraditório, a ampla defesa (LV) e o direito à prova lícita (LIV e LVI), de modo que o direito de acesso à ordem jurídica não compreende apenas o direito de movimentar a máquina judiciária, mas sobretudo a garantia da presença de uma atividade jurisdicional que tutele de forma adequada e efetiva a posição de vantagem no plano do direito material.

A garantia da prova é imprescindível para a garantia dos próprios direitos, já que “todo direito resulta de norma e fato”. Quando a existência ou o modo de ser do fato que serve de base para incidência dos efeitos jurídicos previstos no texto normativo é posto em dúvida, é imperioso a produção de provas para fazer valer o direito.[1] Vale dizer: “como a Constituição Federal diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, e que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, e diz, ainda, que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, resulta claro que o direito de produzir prova é um direito fundamental constitucionalmente assegurado”.[2]

Como o acesso à ordem jurídica justa é realizado por meio do devido processo legal, que repercute e incide no direito processual, propiciando ao litigante deduzir pretensão e defender-se do modo mais amplo possível,[3] o direito à prova representa elemento imprescindível para garantir os direitos em juízo, de sorte que eventual limitação ou restrição às fontes ou meios de prova pode caracterizar uma aplicação inconstitucional das regras processuais, pois significa uma restrição ao devido processo, que, além de ter por base uma previsão constitucional (art. 5º, LIV), é o instrumento para o acesso útil à ordem jurídica (art. 5º, XXXV).

Assim, o direito à prova é de extrema relevância para o devido processo, que é o sentido processual do devido processo legal (procedure due process),[4]pois sem ele, as garantias da ação e da defesa careceriam de conteúdo substancial; ou seja, impedir que a parte tenha direito à prova significaria privá-la dos meios legítimos para defesa dos seus direitos em juízo, o que desviaria o processo dos fins aos quais está constitucionalmente predisposto.[5]

Como direito fundamental, o direito de produzir provas deve ser assegurado no processo, dimensionando-o, por meio de critérios racionais e de equilíbrio para ambas as partes, com o princípio da igualdade processual.[6] É imprescindível que aos sujeitos processuais sejam conferidas condições de participação suficientes ao desempenho de suas plenas capacidades, distribuindo-se equitativamente poderes, faculdades e ônus. Para o exercício do diálogo, ínsito à ideia de contraditório, faz-se necessário um ambiente de equilíbrio processual, no qual se minimize eventuais assimetrias de conhecimento, informação e poder, evitando distorções comunicativas relevantes, que repercutirão nos atos processuais e, por consequência, na decisão judicial.

Dessa maneira, diferenças extraprocessuais devem ser minimizadas, com a finalidade de se promover a adequada participação dos sujeitos no contraditório, assegurando-lhes a possibilidade de influir na decisão judicial. Não é possível conceber que uma pretensa inflexibilidade procedimental possa dar guarida a diferenças que impossibilitem ao sujeito o acesso ao efetivo exercício do contraditório. Aqui, por exemplo, assume importância o princípio da adaptabilidade do procedimento às necessidades da causa.[7] Tal elasticidade procedimental se dá para atender às necessidades específicas do direito material, que não encontrariam consonância com os procedimentos previamente fixados.

Por exemplo, não há como supor que técnicas de facilitação da produção da prova somente possam ser aplicadas quando haja previsão legal. Oportuno destacar que no ordenamento processual alemão, não há regra semelhante ao do art. 333 do CPC/1973 ou o artigo 373 no CPC vigente, e, mais, a suposição de que a modificação do ônus da prova deva sempre estar prevista em lei remota o postulado liberal de que os poderes do juiz, quando não previstos na legislação, ensejariam decisões arbitrárias.[8]

Assim, os institutos processuais devem ser analisados à luz da realidade constitucional, assegurando a atuação do modelo constitucional do direito processual civil,[9] em que o acesso útil a ordem jurídica se dá por meio do exercício adequado do contraditório, que demanda um ambiente processual equilibrado, para que as partes possam ter a possibilidade de concretamente influir na formação da decisão judicial, mesmo quando se encontrem em um situação de assimetria em relação ao conhecimento dos fatos relevantes para a defesa de seus direitos. A distribuição dinâmica do ônus da prova se apresenta como importante técnica[10] para afastar tal assimetria, como será demonstrado no decorrer do presente trabalho.


2. Aproximação entre ônus da prova e o direito material.

O contexto acima se aplica ao regramento do ônus da prova, pois de nada adianta o direito que, em tese, seja favorável a alguém, se este não consegue demonstrar que se encontra em uma situação fática que lhe permite a incidência da regra jurídica, já que, como já afirmado, do fato nasce o direito (ex facto oriutur ius). Essa perspectiva nos leva a procurar aproximar o ônus da prova à realidade do direito material, afastando-o, quando as particularidades do caso exigirem, do regramento estático previsto no art. 373, incisos I e II, do CPC.

Inclusive, impende apontar o entendimento de Pontes de Miranda, segundo o qual “a regra jurídica do ônus da prova não é de direito material (res in iudicium deducta), nem é processual: a existência do ônus é comum aos dois ramos do direito, porque concerne à tutela jurídica”.[11] Trata-se de instituto de natureza mista, pois, malgrado sua aplicação ocorra no processo, tem vínculo indissociável com o direito substancial.

O ônus, no processo, significa “uma conveniência de o sujeito agir de determinada maneira no intuito de não se expor às consequências desfavoráveis que poderiam surgir com sua omissão”.[12] Assim, o ônus é uma escolha, cuja inobservância acarreta um prejuízo de ordem processual.[13]

Com efeito, estabelece-se que uma vez não provado um fato, não se pode aplicar a regra de direito material que assume esse tipo de fato como premissa fática para sua incidência: por consequência, as pretensões baseadas nesse fato e na aplicação dessa norma deverão ser rejeitadas. Portanto, em regra, aplica-se o ônus da prova no momento da tomada da decisão final, quando o órgão jurisdicional verifica que alguns fatos carecem de provas suficientes para extrair as consequências jurídicas pertinentes a tal situação. Umas das consequências pela ausência de provas suficientes sobre um fato é suportada pela parte que formulou pretensão baseada nesse fato e, ao final, não conseguiu demonstrá-lo.

Portanto, a distribuição estática do ônus da prova (art. 373, incisos I e II, do CPC) leva em consideração a posição da parte em juízo e a espécie de fato a ser provado.

Ocorre que a forma de distribuição estática do ônus da prova está mais relacionada com a decisão judicial, do que com a tutela do direito substancial lesado ou ameaçado de lesão,[14] pois, como é vedado o non liquet, ou seja, o juiz não pode se escusar a decidir, ainda que esteja com dúvidas em relação à realidade dos fatos alegados (art. 3º e 14º do CPC)[15], decide-se de forma desfavorável à parte que não se desincumbiu do ônus que lhe cabia.

Percebe-se que a regra estática de distribuição do ônus da prova relaciona-se com a decisão judicial, não levando em consideração a dificuldade ou a impossibilidade da parte em relação à prova do fato no processo, o que pode inviabilizar a tutela dos direitos lesados ou ameaçados.

Não se duvida que há casos em que o grande complicador do processo é a prova: “seja por seu custo, seja pela dificuldade (ou mesmo impossibilidade) em obtê-la, a atribuição da carga da prova de certo fato (ou de sua falta) a uma das partes pode, sem dúvida, resultar em importante privilégio ou grave fardo a esta”.[16]

Para romper com a lógica acima, procurou-se inserir na regra do ônus da prova alterações necessárias para torna-lo mais próximo da realidade do direito material. Dessa maneira, passa-se a permitir com que a regra do ônus, quando se está diante de fatos cuja prova é complexa ou apresenta certa particularidade, possa ser manipulada, extraindo-lhe o inteiro potencial para alcançar um processo conduzido de forma equilibrada e que atenda às particularidades do direito material.

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3. Surgimento da técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova e legislação infraconstitucional

A discussão sobre a distribuição do onus probandi é antiga. Rosemberg afirmava que as regras sobre o ônus da prova deveriam ser fixas e prévias em nome da segurança jurídica. Para o autor, “o direito não pode deixar ao arbítrio do juiz a decisão sobre a quem pertence o fundamento da demanda e a quem pertence o fundamento das exceções”, pois “a regulação do ônus da prova deve fazer-se mediante normas jurídicas cuja aplicação deve estar submetida à revisão pelo tribunal correspondente, e esta regulação deve conduzir a um resultado determinado, independente das contingências do processo particular, sendo um guia seguro para o juiz (...). Uma distribuição livre do ônus da prova não é a liberdade com que poderia pensar uma magistratura bem aconselhada. A distribuição proporcionada e invariável da carga da prova é um postulado da segurança jurídica”.[17]

A ideia está inserida no contexto do processo civil liberal, que se mostra insuficiente para garantir a efetiva tutela do direito substancial, sobretudo diante de relações jurídicas cada vez mais complexas. Por isso, a defesa da mobilidade da regra do ônus da prova tem premissas diversas, pois segue a ideia segundo a qual “a carga da prova deve ser imposta, em cada caso concreto, à parte cuja prova se apresentar com menos inconvenientes, ou seja, com menos atraso, obstáculos e gastos”.[18]

É sob o este pano de fundo, que se insinuou a técnica da  distribuição dinâmica do ônus probatório, por meio da qual se pretende dar uma adequada resposta aos casos em que as particularidades do direito material em debate ou a condição das partes diante das alegações de fato a serem provadas evidenciarem uma desigualdade material nas respectivas capacidades probatórias.

A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova significou um “giro epistemológico fundamental no modo de observar o fenômeno probatório, em que o mesmo é visto da perspectiva da finalidade do processo e do valor da justiça, e não sob o ângulo do mero cumprimento das formas processuais abstratas”.[19]

Como tentativa de aproximar o ônus da prova do direito material, viabilizando a adequada tutela dos direitos, o Código de Defesa do Consumidor conferiu deveres-poderes ao juiz para que, ao considerar o caso concreto, e dentro dos critérios legais (verossimilhança da alegação ou da hipossuficiência do consumidor), “inverter” o ônus da prova.

O termo “inversão”, geralmente tratado para se referir ao tema, não existe propriamente no regime do ônus da prova, já que significaria dizer que cabe ao réu a prova dos fatos constitutivos do direito do autor e ao autor o encargo de provar os fatos modificativos, extintivos e impeditivos de seu próprio direito. O que existe, na verdade, é uma modificação do regime tradicional de distribuição do ônus da prova, de sorte a imputar-lhe de forma diferente daquela fixada previamente (art. 373, incisos I e II, do CPC).

Por sua vez, com o escopo de alcançar uma efetiva tutela jurisdicional do direito lesado ou ameaçado de lesão, no Código Modelo de Processos Coletivos do instituto Ibero-Americano de Direito Processual (art. 12, § 1º, 1ª parte)[20], bem como o anteprojeto de Processos Coletivos (art. 11, § 1º)[21], estabeleceu-se que o ônus da prova incumbe à parte que tiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre fatos, ou maior facilidade na sua demonstração, prescindindo de decisão judicial que modifique o ônus da prova

A técnica da distribuição dinâmica das cargas probatórias, no caso acima, determina que o ônus da prova sobre determinado fato deve recair sobre a parte que se encontra em melhores condições fáticas, econômicas, técnicas, jurídica, de demonstrá-lo no caso concreto. Logo, não importa o lugar que o litigante ocupe no processo (autor ou réu), nem qual a natureza dos fatos (constitutivos, extintivos, impeditivos ou modificativos), nem tampouco quais dos litigantes alega os fatos como fundamento de sua pretensão, defesa ou exceção[22].

A visão acima está em consonância com o entendimento de Jeramy Benthan, segundo o qual “carga de la prueba deve ser impuesta, em cada caso concreto, a aquella de las partes que la pueda aportar com menos inconvenientes, es decir, con menos dilaciones, vejámenes y gastos”.[23]

O Projeto da nova Lei da Ação Civil Pública (PL 5.139/2009), enviado pelo Ministério da Justiça ao Presidente da República, em abril de 2009, trata da distribuição dinâmica do ônus da prova. Conforme se infere da exposição de motivos, o projeto pretende disciplinar o ônus da prova, atribuindo-o a quem estiver mais próximo dos fatos, bem como àquele que tenha melhor capacidade de produzir a prova, objetivando mais efetividade. No art. 20, IV a VIII, o Projeto prevê que o juiz, não obtida a conciliação ou não sendo possível outro meio de solução de conflito, fundamentadamente: i) distribuirá a responsabilidade pela produção da prova, levando em conta os conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos obtidos pelas partes ou segundo a maior facilidade em sua demonstração; ii) poderá ainda distribuir essa responsabilidade segundo os critérios previamente ajustados pelas partes, desde que esse acordo não torne excessivamente difícil a defesa do direito de uma delas; iii) poderá, a todo momento, rever o critério de distribuição da responsabilidade da produção da prova, diante de fatos, observando o contraditório e a ampla defesa; iv) esclarecerá as partes sobre a distribuição do ônus da prova; e v) poderá determinar de ofício a produção de provas, observando o contraditório.

Apesar das interessantes inovações, o projeto foi rejeitado, no mérito, pela Comissão de Constituição e Justiça, em 17.03.2010, tendo se argumentado que a proposição não resolve o modelo atual das ações civis públicas, gerando insegurança jurídica.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNELOS, Rubens Sampaio. A técnica de dinamização do ônus da prova no modelo constitucional do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5917, 13 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74805. Acesso em: 28 mar. 2024.

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