4. Técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova no CPC de 2015: requisitos, limites e momento.
A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova possui uma relação de adequação com o direito fundamental à tutela jurisdicional justa e efetiva, baseando-se necessariamente no direito fundamental à igualdade substancial e à prova. Portanto, “nos casos em que há desigualdade na produção probatória, a dinamização do ônus nada mais é do que uma técnica para conformação constitucional do procedimento probatório”.[24]
O CPC de 2015 contemplou a técnica da distribuição dinâmica do ônus da prova no art. 373, §§ 1º e 2º, mas sem abolir o ônus estático, que ainda é regra para a maioria dos casos (art. 373, incisos I e II).
Assim, a ideia de ônus dinâmico não afasta, de per se, a técnica de distribuição estática do ônus; ao contrário, persiste o enfoque estático, devendo os sujeitos processuais, na generalidade dos casos, examinar a natureza dos fatos alegados segundo a sua posição na relação jurídica material. A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova incidiria quando a aplicação das regras iniciais conduzisse a probatio diabólica, inutilizando o acesso útil à tutela jurisdicional.
Tanto ônus estático, quando o dinâmico, são válidos, de modo que o primeiro leva em consideração a natureza do fato a ser provado (constitutivo, modificativo, extintivo ou impeditivo), a despeito de quem se encontre em melhores condições de fazê-lo; no segundo, as possibilidades de oferecer a prova do fato, tendo por base a capacidade de cada litigante no caso, considerando o acesso às provas relevantes ou algum comportamento que tenha inviabilizado a prova pela parte onerada.
A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova entra em jogo quando a aplicação das regras de distribuição estática do ônus representar um risco para a realização do direito material, já estaria em desacordo com o modelo constitucional do processo, que não admite a possibilidade de a lei processual estabelecer regulação que, por mero formalismo, coloque em risco a igualdade jurídica assegurada nas regras de direito material.
A possibilidade de dinamização do ônus da prova, prevista nos §§ 1º e 2º do art. 373, do CPC, insere-se, portanto, no dever constitucional de garantir a igualdade substancial dos litigantes e o acesso útil à ordem jurídica. Dentro desse contexto, também se reconhece ao juiz a possibilidade tomar iniciativas para garantir a igualdade substancial entre as partes (art. 139, inc. I, do CPC), inclusive no plano probatório.
Ocorre que a técnica da dinamização do ônus da prova não é absoluta, de modo que comporta limites, que devem ser respeitados para que a sua aplicação esteja em consonância com o modelo constitucional do processo que, no meu entender, é a sua razão de ser.
Na redação originária do Senado Federal, admitia-se de forma extremamente aberta a dinamização, pois apenas exigia que a parte estivesse em melhores condições de produzir a prova. “Os Professores João Batista Lopes e Maria Elizabeth de Castro Lopes oportuna e corretamente sugeriram uma redação mais restritiva, apontando requisitos como o encargo impossível ou extremamente oneroso, o que foi acolhido na Câmara dos Deputados”.[25]
Percebe-se uma primeira dificuldade quando se tenta definir os requisitos para a dinamização estabelecidos no § 1º do art. 373, que utiliza a partícula disjuntiva “ou” para se referir à impossibilidade ou dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário. Entretanto, a impossibilidade ou dificuldade de se desincumbir do ônus distribuído estaticamente não é suficiente, por si só, para a incidência de dinamização, devendo estar presente, também, a maior facilidade de a outra parte produzir a prova. Se o que justifica a distribuição dinâmica são os princípio da igualdade substancial, colaboração e acesso útil à ordem jurídica, não é possível transferir o ônus para parte, que não possua adequadas condições de produzir a prova. “O que se estaria fazendo é apenas transferir as consequências da prova diabólica, o que é vedado pelo § 2º. do art. 373 e representa o mesmo que vedar o acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, LIV e LV, da CF)”.[26]
Com efeito, exige-se que o litigante dinamicamente onerado esteja em posição de vantagem em relação ao material probatório em face da outra parte.[27] Ou seja, “por estar na posse de coisa ou instrumento probatório, ou por ser o único que dispõe da prova, se encontra em melhor posição de revelar a verdade, e seu dever de colaboração se acentua, a ponto de atribuir-lhe uma carga probatória que, em princípio, segundo as regras clássicas que mencionamos acima não teria”.[28]
Dessa maneira, “não bastará sustentar ou provar que uma parte se encontra em melhor posição para a produção da prova se, assim mesmo, não se tiver evidenciado que quem o invoca não tem modos de produzi-la”[29]O referido limite material “deve sofrer rigoroso escrutínio processual: o ônus dinâmico não pode ser aplicado para simplesmente compensar a inércia ou a inatividade processual do litigante inicialmente onerado, mas, única e tão-somente, para evitar a formação da probatio diabolica diante da impossibilidade material que recai sobre uma das partes, à luz da natureza do fato e da sintaxe da norma”.[30]
Para a análise dos requisitos dificuldade ou impossibilidade de produção da prova, e maior facilidade de sua produção pela outra parte, faz-se necessário que a descrição de fatos probandos sejam determinados. Somente assim o juiz pode exercer o dever de fundamentação que exige o § 1º, do art. 373, do CPC.
A decisão que distribui o ônus da prova deve ser fundamentada e racional, levando em consideração a posição dos litigantes diante do direito material e a melhor capacidade de um deles de produzir a prova, permitindo com que a parte sobre a qual recaia o ônus tenha reais condições dele se desincumbir.[31]
A técnica da distribuição dinâmica do ônus da prova “opera-se de uma forma pendular e por atração e repulsão, em que o reposicionamento do ônus decorre de uma repulsa do pêndulo de um lado (por impossibilidade ou excessiva dificuldade) e atratividade de outro lado (por maior facilidade de obtenção da prova pela parte onerada”.[32]
Portanto, a quebra do sistema estático do ônus da prova está sujeita a requisitos legais, que escapam ao subjetivismo do juiz. O juiz deverá fazê-lo em decisão fundamentada, em que demonstre a ocorrência dos requisitos objetivos estabelecidos no § 1º do art. 373 do CPC. Impende destacar que, ainda que presentes tais requisitos, a decisão jamais poderá gerar situação em que a desincumbência do encargo pelo novo destinatário “seja impossível ou excessivamente difícil” (art. 373, § 2º).
Concorda-se com aqueles que entendem que, além das hipóteses traçadas pelo art. 373, § 1º, do CPC, é admissível a alteração dinâmica do ônus da prova, com base no comportamento processual, quando ele se mostre ofensivo ao princípio da boa-fé.[33]Não é admissível a postura de inércia probatória e a omissão proposital de informações aptas a elucidação das questões controvertidas por quem comprovadamente detinha condições de apresentá-las, configurando conduta violadora dos princípios da boa-fé e cooperação em matéria instrutória.[34]
Para o abrandamento da distribuição estática do ônus da prova, é importante que juiz identifique condições particulares no caso concreto, que permitam um juízo mínimo de verossimilhança em torno da versão dos fatos apresentadas por uma das partes, mas que evidencie menos capacidade de esclarecê-la por completo.
Todavia, para que a posição de abrandamento do sistema estático não seja uma arbitrariedade do juiz, é imprescindível que a decisão que aplique a técnica de dinamização seja fundamentada racionalmente. O juiz deverá proferir decisão lógica, capaz de revelar e fazer com que as partes compreendam, por meio da adequada fundamentação, como formou de maneira racional sua convicção e quais os elementos que a conformaram.[35]
Destaca-se que a parte que suporta a redistribuição do ônus não fica adstrita de provar os fatos constitutivos do direito do adversário, mas sim de esclarecer fato controvertido apontado pelo juiz.
A redistribuição do ônus da prova não pode se apresentar como uma surpresa para a parte, de sorte que a deliberação deverá ser tomada pelo juiz, com a intimação do novo encarregado do ônus da prova sobre o fato probando especificado, a tempo de proporcionar-lhe oportunidade de se desincumbir do encargo. Destarte, não é possível que o juiz, de surpresa, aplique a dinamização na sentença, pois infringiria o contraditório e a ampla defesa.
Sendo assim, a técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova não pode ser utilizada como regra de julgamento, pois deve ser oportunizado à parte onerada o direito de se desincumbir do encargo fixado. O CPC não deixa lugar à dúvida: “o juiz deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído” (art. 373, § 1º, in fine).
A técnica da distribuição do ônus da prova não está restrita ao procedimento comum. Pode-se estendê-la aos procedimentos especiais, mesmo porque, por disposição expressa do parágrafo único do art. 318, acha-se previsto que o “procedimento comum” (no qual figura a permissão para a redistribuição judicial do ônus probatório) se aplica subsidiariamente aos demais procedimentos especiais.
Há uma certa convergência no sentido de que o momento adequado para dinamização do ônus é o saneamento. Trata-se de entendimento esposado pelo CPC (art. 357), que trata da distribuição dinâmica no saneamento compartilhado. Contudo, concorda-se com William Santos Ferreira, já que será durante a fase da instrução que muito provavelmente se evidenciarão os requisitos para a distribuição, eis que se descortinarão as condições e até a falta de colaboração.[36] Aqui, mais uma vez se destaca o entendimento segundo o qual a conduta da parte tem o condão de ensejar a dinamização, apesar de não haver regra expressa no CPC. As circunstâncias decorrentes da conduta podem levar o juiz a uma análise crítica em conjunto com as demais provas produzidas.
Como fez o Projeto da nova Lei da Ação Civil Pública (PL 5.139/2009), entende-se que é possível, a todo momento, rever os critérios de distribuição do ônus da prova, desde que observados o contraditório e a ampla defesa.
Urge destacar que a 4ª Câmara de Direito privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do agravo de instrumento 2052963-58.2017.8.26.0000, de relatoria do desembargador Maia da Cunha, decidiu que pode haver a distribuição dinâmica do ônus da prova em momento posterior à fase da decisão de saneamento do processo (art. 357, CPC), desde que não haja violação aos artigos 9º e 10 do CPC, bem como que haja momento processual hábil para a produção da prova.[37]
O importante é que a distribuição judicial do ônus da prova seja anterior à sentença. A garantia constitucional do contraditório deve ser observada, evitando decisões surpresas. Deve-se dar à parte a quem o ônus é distribuído oportunidade para conhecer o objeto da prova, delimitado judicialmente, comportando-se de acordo com ele ou impugnando-o.
Portanto, parece claro que, caso o juízo altere a regra de distribuição do ônus da prova, deve, antes, alertar as partes, em decisão motivada, permitindo que os sujeitos processuais possam ter ciência do regime probatório que será adotado no curso processual.
Apesar de concordar com a posição de que a distribuição dinâmica não pode ser realizada na sentença, há posições em sentido contrário. Segundo Nelson Nery Jr, “as regras sobre a distribuição do ônus da prova são regras de juízo, de sorte que caberá ao juiz, quando do julgamento da causa, agir de acordo com o procedimento autorizador do art. 6º, VIII. Elas orientam o magistrado quando há um non liquet em matéria de fato. Caso haja nos autos prova dos fatos constitutivos do direito do autor, normalmente o juiz deverá julgar a demanda a favor deste. Quando estes fatos não estiverem provados, cumprirá ao juiz verificar se o consumidor é hipossuficiente ou se suas alegações fáticas são verossímeis. Em caso afirmativo, deverá verificar se o fornecedor fez a prova que elide os fatos constitutivos do direito do consumidor. Na ausência desta prova (non liquet), julgará a favor do consumidor”.[38]
No caso acima, ao modificar o ônus na sentença, não é oportunizado ao fornecedor produzir outras provas, privando-o da chance efetiva de se desincumbir do encargo, o que parece constituir em uma decisão surpresa que contraria o contraditório e a ampla defesa.