A judicialização da saúde face ao princípio da separação dos poderes

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10/10/2019 às 15:49

Resumo:


  • O direito à saúde é um direito fundamental assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que impõe ao Estado o dever de garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.

  • A judicialização da saúde surge como um fenômeno decorrente da ineficiência ou inércia do Estado em cumprir suas obrigações constitucionais, levando os cidadãos a buscar no Poder Judiciário a garantia de seu direito à saúde.

  • O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.657.156/RJ, estabeleceu critérios para a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS, exigindo a comprovação da necessidade do medicamento, da hipossuficiência do paciente e da aprovação do medicamento pela ANVISA.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

4.1. A busca pela efetivação de um direito garantido constitucionalmente

O que vem sendo demonstrado neste trabalho é que apesar das inúmeras garantias previstas na norma constitucional e infraconstitucional para o acesso a saúde, ainda existem empecilhos para a sua plena efetivação, conforme abordado no capítulo anterior. Desta forma, torna-se necessário que o paciente, corriqueiramente, tenha que buscar a via judicial para satisfazer o seu direito.

Ensinam Machado e Dain (2012), no cenário acadêmico do Brasil, a utilização do termo judicialização foi inicialmente utilizado nos estudos de Vianna e colaboradores, em 1999, em sua obra “Judicialização da política e das relações sociais no Brasil”, tendo-se a discursão da judicialização através de dois eixos, sendo o eixo procedimentalista e substancialista. No eixo procedimentalista há o entendimento que a concepção de justiça está ligada autonomia e não ao bem-estar, assim, deveriam os cidadãos se enxergarem como autores no seu direito e não como seus destinatários. Referente ao eixo substancialista, explicam os autores que a judicialização é tida como uma extensão da democracia e ampliação da cidadania, garantindo a grupos a margem da sociedade uma possibilidade para a clamarem os seus direitos. Definem ainda que a judicialização é um instrumento hábil para a comunidade encontrar seus propósitos trazidos formalmente na CRFB.

Ribeiro (2013) explana que, um dos motivos determinantes para a incidência do fenômeno da judicialização está ligado ao aumento de complexidade da sociedade, buscando no sistema jurídico soluções para demandas, sejam elas, concretas, abstratas, genéricas. Para Carlini (2014, p. s/n) “a judicialização da saúde é apenas uma das faces do fenômeno global da judicialização plena da vida brasileira. ”.

Com relação a atuação do judiciário no cenário da saúde, explica Mendes (2017, p. 604):

É certo, que não cabe ao Poder Judiciário formular políticas sociais e econômicas na área da saúde, é sua obrigação verificar se as políticas eleitas pelos órgãos competentes atendem aos ditames constitucionais do acesso universal e igualitário.

Sobre o direito à saúde e sua exigibilidade perante a via judicial, ensinam Sarlet et al (2017) que, os Tribunais, mesmo o Superior Tribunal Federal (STF), reconhecem a saúde como direito subjetivo e fundamental, podendo-se exigir o seu cumprimento em juízo, superando a ideia de ser um direito programático.

Ilustrando-se a atuação do STF, têm-se o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 175 Ceará (STA-AgR 175), em março de 2010, onde foram argumentados os critérios do requerimento do direito à saúde como um direito subjetivo. Dentre os argumentos debatidos se pode destacar os seguintes: o direito à saúde possui uma dupla dimensão individual e coletiva, sendo cabível tutela jurisdicional individual mediante ação proposta pelo Ministério Público, tendo em vista se tratar de um direito individual indisponível. Outro ponto debatido foi que a responsabilidade do Estado é solidária, assim, abrange-se todos os entes da Federação. Debateu-se também a questão do dever do Estado em disponibilizar o acesso igualitário e universal a saúde, mesmo que os órgãos legitimados não tenham estabelecido a prestação solicitada pelo requerente. Foi debatido ainda que a alegação da reserva do possível, deverá ser demonstrada cabalmente pelo Poder Público.

Explana o Ministro Gilmar Mendes no seu voto na STA-AgR 175 (2010) que, a judicialização da saúde ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, profissionais da área da saúde e a sociedade civil como um todo, o que acaba gerando tensões entre os elaboradores e executores de políticas públicas, devido terem que cumprir determinações muitas vezes diferentes das estabelecidas pelo governo e com custos superiores dos seus orçamentos.

Devido aos inúmeros processos envolvendo questões sobre acesso ao sistema de saúde, em 2009, houve a convocação de uma Audiência Pública. Na abertura da Audiência Pública, o Ministro Gilmar Mendes (2009, p. s/n) esclareceu que,

A audiência objetiva esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas e econômicas envolvidas nas decisões judicias sobre saúde. (...). As considerações que serão apresentadas aqui interessam, de diferentes formas, aos jurisdicionados e a todo o Poder Judiciário de todo o país e poderão ser utilizadas para a instrução de qualquer processo no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Visando um melhor entendimento sobre o assunto, foram ouvidos especialistas sobre saúde pública, entre eles, Gestores Públicos, Magistrados, membros da Advocacia da União, Estados e Municípios, além do Ministério Público, Médicos, Professores, Técnicos de Saúde e Usuários do Sistema Único de Saúde.

Depois de longos debates foi percebido que muitas das vezes a judicialização ocorre não por falta de uma omissão de políticas públicas, mas sim para que fosse dado cumprimento a políticas públicas já estabelecidas. Assim, entenderam que o problema da judicialização da saúde poderia ser evitado caso houvesse o efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.

Uma argumentação frequente sobre a interferência do Judiciário, no tocante à promoção da saúde, diz respeito ao Princípio da Separação de Poderes, conforme estabelece o art. 2° da CRFB. Ensina Mendes (2017) que o princípio da separação dos poderes visa impedir a concentração de poder em uma só esfera do Estado.

Conforme ensinam Sarlet et al (2017), o princípio da separação dos poderes foi enraizado durante as Revoluções francesa e americana, sendo tal teoria elaborada por Montesquieu, onde busca impor uma distinção entre as atribuições dos poderes dos Órgãos.

Segundo Novelino (2016), a separação dos poderes visa garantir o sistema de freios e contrapesos, evitando-se qualquer forma de abuso de poder, além de garantir a harmonia entre o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Desta forma, os Entes Federados entendem que não caberia ao Judiciário formular políticas públicas, pois geraria um desequilíbrio entre os Órgãos e fere o princípio da separação dos poderes. Todavia há entendimento diverso em jurisprudência, veja-se:

EMENTA – APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INQUÉRITO CIVIL – FORNECIMENTO DE MATERIAIS INDISPENSÁVEIS PARA A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE – INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO – VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RESERVA DO POSSÍVEL E DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO OCORRÊNCIA – PEDIDO DE DILAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA DECISÃO – LIMITE TEMPORAL MANTIDO – APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA AOS QUAIS SE NEGA PROVIMENTO. A atuação do Poder Judiciário para que as políticas públicas que envolvam direitos sociais e garantias fundamentais sejam concretizadas não atenta contra o princípio da separação dos poderes. A alegação de déficit orçamentário não serve para escusar o ente público do cumprimento da determinação judicial, tendo em vista que a ação posta em juízo se refere a direitos sociais que, dado o seu caráter de garantia fundamental, sobrepõem ao princípio da reserva legal. O prazo de 90 (noventa) dias disponibilizados para o cumprimento da determinação judicial é suficiente, inclusive para o início do procedimento licitatório, sendo certo que o cumprimento da determinação no tempo correto depende tão somente da celeridade e comprometimento do gestor executivo.

(TJ-MS-APL: 08019562820178120029 MS 0801956-28.2017.8.12.0029, Relator: Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva, Data do Julgamento: 29/01/2019, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 31/01/2019).

Ensinam Sarlet et al (2017), a atuação do Poder Judiciário, ante a inércia do órgão competente, se dá com o fito de preservar a CRFB, desta forma não há usurpação de poder.

Ainda sobe a atuação do Judiciário nas políticas de saúde pública, ensina Masson (2015) que, havendo desempenho deficiente ou omisso do Estado, em relação às políticas públicas de saúde, poderá qualquer pessoa acionar o Judiciário para interferir na causa.

Corroborando com este entendimento, têm-se o voto da Desembargadora Maria Erotides Kneip Baranjak (2018), agindo a Administração de forma omissa e injustificada na efetivação das políticas públicas definidas constitucionalmente a interferência da Poder Judiciário é perfeitamente legítima, servindo como instrumento hábil no restabelecimento da integridade da ordem jurídica violada.

Importa salientar que, em caso de ausência do tratamento pleiteado nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas regulados pelo SUS, deverá haver a diferenciação entre os tratamentos puramente experimentais e os novos tratamentos, conforme estabelecido na Audiência Pública da Saúde, em 2009.

Durante o debate na Audiência Púbica da Saúde (2009), entendeu-se por tratamento experimental aquele que se realiza em laboratórios ou centro médico de ponta, tendo participações regidas pelas normas reguladoras da pesquisa médica, assim, não cabe ao Estado o fornecimento destes, devido ainda não terem sidos aprovados ou avaliados. Quanto aos novos tratamentos, são aqueles já avaliados e aprovados pelas pesquisas médicas, porém, não estão incorporados às listas do SUS.

Apesar da constante evolução da medicina na criação de novos tratamentos, para que estes incorporem às listas de tratamentos oferecidos pelo SUS, deverá ser observada uma série de estudos para avaliação da real eficácia, passando por uma avaliação extremamente burocrática e morosa. Assim, devido a impossibilidade de a Administração acompanhar a evolução dos novos tratamentos, surgem inúmeros processos judiciais de pessoas pleiteando o fornecimento de um tratamento diverso daquele oferecido pelo Poder Público.

4.2. As decisões judiciais no âmbito da saúde

De início é imperioso dizer que decisões judiciais, segundo Paiva (2017, p.7), “são julgamentos proferidos por magistrados ou por colegiados de instituição judicial”.

Visando uma maior segurança jurídica o art. 93, IX, CRFB, estabeleceu que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”, sendo tal requisito de fundamentação replicado no art. 11. do CPC/15. Assim, conforme ensina Lucca (2016), o requisito da motivação é um dever constitucional e legal que impõe aos membros da magistratura o dever de fundamentar os motivos da sua decisão.

Explana Andreatini (2018), exigir que os membros da magistratura se atentem ao dever de fundamentar suas decisões assegura o caráter democrático das atividades do Poder Judiciário, permitindo um controle externo e difuso dos poderes outorgados aos magistrados. Assim, conforme a autora, o dever de fundamentar garante dupla função, sendo elas: função extraprocessual, garantindo a fiscalização da atuação dos juízes e; função endoprocessual, pois apresenta as partes envolvidas no processo os motivos da sua decisão, garantindo que estas busquem a modificação deste entendimento em instâncias superiores.

Segundo o dever de fundamentar as decisões judiciais, afirma Lucca (2016, p.89):

Qualquer regra que venha a excepciona-lo será inválida, pois inconstitucional. E nenhum caso concreto poderá afastar a sua incidência para dar prevalência a outros valores supostamente mais importantes. A classificação do dever de motivação segundo a sua real natureza acaba por dar-lhe mais força e maior proteção, exatamente o que pretendem aqueles que o têm como princípio.

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Ilustrando-se a necessidade de fundamentação traz-se alguns fundamentos utilizados para a manutenção da concessão de medicamento deferido nos autos n° 1.0433.18.017739-9/002, sendo partes o M.M.C e M.A.S.F, sendo a decisão da Desembargadora Sandra Fonseca. O caso versa sobre a necessidade do fornecimento do medicamento adrenalina auto injetável – EPIPEN, para o tratamento de moléstia determinada como alergia à proteína do leite de vaca, com manifestação de anafilaxia. Devido a gravidade do caso o medicamento fora deferido em primeira instância, porém o M.M.C apresentou recurso, com a finalidade de suspender tal decisão.

Para indeferir o pedido do M.M.C, a Desembargadora utilizou como argumento central os requisitos fixados para concessão de medicamentos não constantes nos atos normativos do SUS, REsp 1.657.156/RJ, argumentando que a paciente, M.A.S.F., preencheu todos os requisitos e que além disso a não concessão imediata do medicamento ferira o princípio da dignidade da pessoa humana, mostrando-se estes fundamentos suficientes que demonstram a imprescindibilidade e urgência do tratamento pleiteado, indeferindo desta forma o pleito do M.M.C., ou seja, manteve a decisão de primeira instância, obrigando o M.M.C. ao fornecimento da medicação pleiteada.

Ilustra-se agora o argumento utilizado para negativa de pedido de medicamento, será utilizado o caso dos autos 5013108-09.2018.8.13.0433 sendo litisconsortes passivos o M.M.C e E.M.G e autor P.V.C.O. Versa a lide sobre a necessidade do uso do medicamento ADALIMUMABE pelo requerente, tendo em vista ser portador da doença Chron. Em sua fundamentação que negou a tutela provisória o juiz alegou que o medicamento pleiteado é fornecido, conforme os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, para pacientes que tenham o IHB superior igual ou superior a 8 e não ter tido resposta clínica significativa aos fármacos corticosteroide, azatiopriona mais alopurinol, metotrexato ou ter contraindicação ou intolerância a corticosteroide e imunopressor. Alegou que, como o requerente não demonstrou atender o protocolo, uma vez que possui o IHB inferior a 8, não faria jus ao medicamento pleiteado.

Sabendo-se da necessidade de fundamentação e a certeza de que as decisões impostas pelo Poder Judiciário acarretam em inúmeros impactos para os gestores e para a sociedade, relevante mencionar a alteração feita pela Lei n. 13.655/2018 nos artigos 20 e 22 do Decreto-Lei n. 4.657/1942, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), trazendo o seguinte teor:

Art. 20. Nas esferas administrativas, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei n° 13.655, de 2018)

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei n° 13.655, de 2018)

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

Com tais modificações foi vedada a motivação em valores jurídicos abstratos, devendo ser considerado o impacto e as reais dificuldades dos gestores em cumprir com a norma estabelecida na decisão judicial. Por um lado, têm-se que tal inovação no artigo poderá funcionar como um retrocesso para as decisões favoráveis a concessão de tratamentos de saúde, pois, conforme Schulze (2018), o juiz não poderá fundamentar apenas no art. 196. da CRFB para deferimento do pleito, deverá analisar questões como a eficácia do tratamento, custo. Deverá o juiz analisar o pleito de forma equânime, ampliando a sua interpretação do caso individual, visando o caso em uma perspectiva coletiva, devendo observar as dificuldades reais dos gestores em cumprir a decisão.

Contrapondo este entendimento, têm-se a posição de Vasconcellos (2018) entendendo que, a saúde não pode ser considerada como um valor jurídico abstrato, tendo em vista possuir normas jurídicas especificas, tanto no âmbito constitucional como no âmbito infraconstitucional.

Sobre as consequências práticas da decisão, ensina Santos (2018, p. s/n): “nada mais contundente e prático do que alegações que fazem antever a morte de alguém por falta de socorro público”. Ou seja, a não concessão do tratamento pleiteado poderá causar severas consequências ao paciente que teve o seu direito universal à saúde negado.

Vasconcellos (2018) faz uma ressalva no sentido que, tomado pela ordem normativa do art. 20. da LINDB, deve-se atentar ao entendimento de solidariedade dos entes, pois há estudos que entendem a solidariedade no tocante a saúde como algo relativo, tendo em vista não haver previsão expressa sobre esta solidariedade e devido a existência de repartições de atribuições dos gestores na Lei n. 8.080/1990.

Depois de toda esta exposição traz-se à baila o posicionamento de Mello (2006, p.1.529):

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição Federal da República (art. 5°, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ética-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúde humanas.

Pode-se afirmar, em síntese, que as decisões proferidas no âmbito da saúde é algo tão complexo que não há atualmente respostas ou soluções prontas e acabadas. Assim, conforme ensinamentos de Oliveira (2015), faz-se necessário avançar no debate sob a ótica teórica, colocando em pauta nos espaços de participação social da política da saúde, buscando proporcionar o diálogo entre os diversos atores sociais envolvidos nessa temática e buscar formas que assegurem uma nova cidadania política.

4.3. Recurso Especial 1.657.156/RJ: obrigação do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados, através de atos normativos, ao Sistema Único de Saúde

Devido ao grande número de ações requerendo o fornecimento de medicamentos não contemplados na Portaria 2.982/09 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais), o Ministro Benedito Gonçalves, em 07/03/2017, decidiu, nos termos do artigo 34, XVI, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (RISTJ), converter o Agravo em Recurso Especial de n° 1.052.276-RJ (2017/0025629-7) em Recurso Especial, para julgamento pelo sistema dos recursos repetitivos.

Importa salientar que, conforme ensinamentos de Neves (2016), para que seja cabível o Recurso Especial deverá ser observado os pressupostos gerais de admissibilidade, pressupostos cumulativos e também pressupostos alternativos. Devendo o recorrente preencher todos os pressupostos cumulativos, elencados no art. 105, III, da CRFB e ao menos um dos pressupostos alternativos, listados nas alíneas do art. 105, III da CRFB, para que seja recebido o Recurso Especial.

Conforme Neves (2016), existe ainda o pressuposto do pré-questionamento, que apesar de alguns entenderem como pressuposto genérico de cabimento, possui fundamental importância de impedir que seja utilizado o Recurso Especial para análise de matéria que não tenha sido objeto de decisão prévia, vedando-se que seja analisada a matéria de forma originária pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ensina Theodoro (2016) que, em 2003 ao alterar o seu Regimento Interno o STF instituiu um mecanismo para o julgamento dos recursos extraordinários repetitivos, criando a expressão “julgamento por amostragem”. Em 2008 esta sistemática passou a ser adota também nos recursos especiais.

Theodoro (2016, p.1.137) esclarece que:

A expressão (julgamento por amostragem) retrata muito bem a dinâmica dos recursos repetitivos, que consiste – diante da constatação de uma mesma questão de direito figurar numa série numerosa de recursos -, na possibilidade de selecionar-se um ou alguns deles para seu julgamento servir de padrão ou paradigma. Dessa maneira, julgado o caso padrão, a tese nele assentada prevalecerá para todos os demais de idêntico objeto.

Faz-se mister dizer que, conforme Câmara (2017), a técnica dos julgamentos por amostragem poderá ser empregada pelo tribunal de origem. Verificando o Presidente ou o Vice-Presidente a existência de multiplicidade de recursos versando sobre a mesma questão direito, selecionará dois ou mais destes recursos, e os encaminharão para afetação realizada pelo STJ ou STF, devendo ser determinada a suspensão de todos os processos, na área de atuação do tribunal, que versem sobre o assunto afetado.

Após a decisão de afetação, deverá o relator determinar a suspensão em todo o território nacional. Ocorrendo mais de uma afetação sobre o mesmo tema, define o § 3° do art. 1.037. do Código de Processo Civil (CPC), que será prevento aquele que proferiu a primeira decisão de afetação. A partir da decisão pela afetação começará a correr o prazo de um ano para o julgamento do recurso.

A parte que teve o processo suspenso, devido ao julgamento do recurso repetitivo, poderá requerer o prosseguimento do feito, comprovando a ausência de nexo entre a matéria discutida no recurso repetitivo e a sua demanda.

O relator do recurso especial na Suprema Corte terá poderes especiais, como ensina o art. 1.038. do CPC. Poderá admitir a intervenção de terceiros na controvérsia, ou seja, o amicus curiae, ensina Theodoro (2016, p. 1.148) que, tal intervenção é justificável, devido a “multiplicidade de interessados na tese a ser definida pelo STJ ou STF e pela repercussão que o julgado virá a ter sobre os recursos de estranhos à causa a ser decidida como paradigma.

Realizados todos esses procedimentos cabe ao relator a elaboração do seu relatório e envio de uma cópia aos demais ministros. Enviada a cópia será incluído o recurso em pauta para julgamento, devendo o julgamento, conforme ensina o art. 1.038, § 2° do CPC, ocorrer preferencialmente, salvo os casos que envolvam réu preso e pedidos de habeas corpus. O conteúdo do acórdão deverá ser o mais amplo possível, devendo abranger todos os fundamentos debatidos na tese jurídica posta em análise.

Findada essa breve exposição sobre o procedimento do recurso especial, passa-se a análise do recurso especial 1.657.156/RJ. Trata-se de recurso interposto pelo Estado do Rio de Janeiro, onde alega que os medicamentos, para tratamento de Glaucoma Crônico Bilateral, requeridos pela parte autora não estão previstos nos Protocolos Clínicos incorporados pelo Ministério da Saúde, ou nas listas de dispensação dos entes públicos, entende, por isso, não ser obrigação do Estado do Rio de Janeiro obrigado a fornecê-los.

Devido ser questão de caráter representativo de controvérsia, devido a multiplicidade de recursos a respeito do tema, houve-se a indicação de afetação do recurso, conforme o art. 1.036. do CPC. Sendo a questão controvertida delimitada como: “obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamento não contemplado na portaria n. 2982/2009 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais). Ocorrendo: a suspensão em âmbito nacional dos processos que versem sobre a questão afetada; comunicação aos Ministros integrantes da Primeira Seção e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça; além da abertura de vista ao Ministério Público Federal.

Após análise da delimitação inicialmente proposta, percebeu-se que delimitar o tema vinculado a uma portaria resultaria em um estreitamento indesejável, inviabilizando posterior aplicação dos efeitos do julgamento, tendo em vista a Portaria ser um ato normativo infralegal, tendo sua vigência corriqueiramente extinta, substituída por um ato normativo mais atualizado. Destarte foi proposta a alteração da delimitação, sendo a seguinte redação, “Obrigação do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados, através de atos normativos, ao Sistema Único de Saúde”.

No decorrer do julgamento alguns órgãos solicitaram o seu ingresso no feito, todavia sem sucesso, pois, o relator entendeu que apesar dos órgãos guardarem pertinência quanto ao tema, não possuíam presença de representatividade suficiente para ingresso no feito. Dentre os órgãos que tiveram seu pedido para integrar a lide como amicus curiae negado, pode-se citar o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, o Grupo de Amparo aos Doentes de Aids, Associação Nacional dos Defensores Públicos.

Dos órgãos que integraram a feito como amicus curiae, pode-se citar a Defensoria Pública da União, Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do Distrito Federal, Conselho Federal de Medicina, Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Em seus votos os Ministros lembraram que a CRFB garantiu a todos os indivíduos o direito à saúde, estipulando o dever do Estado em prestá-la, conforme estabelecido no art. 196. da CRFB, cabendo ao Estado a prestação dos serviços de saúde de forma rápida e eficiente, garantindo-se respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Trouxeram também argumentos utilizados no julgamento da STA-AgR 175, que entende o cabimento do fornecimento de medicamento que não sejam fornecidos pelo SUS, desde que seja comprovada a ineficácia do medicamento fornecido na rede pública de saúde.

Por fim, dá análise da tese repetitiva, concluiu-se que esta trata exclusivamente do fornecimento de medicamento e, assim, devido a ampla jurisprudência sobre o assunto, ficou entendido que existe a possibilidade de fornecimento de medicamento que não esteja inserido nos atos normativos do SUS.

Porém, para que seja deferido o pedido, deverão ser observados três requisitos. Primeiro requisito, deverá haver a demonstração da imprescindibilidade ou a necessidade do medicamento no tratamento, sendo tal requisito provado através de laudo médico circunstanciado e fundamentado, que deverá ser expedido por médico que assista o paciente, devendo ser demonstrado a ineficácia dos fármacos fornecidos na rede de saúde pública. O segundo requisito diz respeito a prova de hipossuficiência da pessoa que requer o medicamento, devendo demonstrar que a aquisição implica em comprometimento da sua subsistência e/ou do seu grupo familiar. Faz-se mister esclarecer que não será necessário comprovação de pobreza ou miserabilidade, sendo, tão somente necessário a comprovação da incapacidade de arcar com os custos para aquisição do medicamento prescrito. O terceiro requisito é que o medicamento seja aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Tendo em vista tal imposição decorrer da Lei n. 8.080/1991, em seu art. 19-T, II.

Imperioso mencionar que a Corte Superior decidiu modular os efeitos da decisão, conforme ensinamentos do art. 927, § 3° do CPC, atribuindo-se os requisitos e critérios, estabelecidos no julgamento, apenas a processos que forem distribuídos após a conclusão do julgamento.

No julgamento do caso concreto, julgou-se improcedente o recurso especial interposto pelo Estado do Rio de Janeiro e, por se tratar de recurso representativo foi determinada a comunicação à Presidência do STJ, aos Ministros da Primeira Seção, aos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados, para que seja os processos que versem sobre o tema julgados com a aplicação da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Desta forma, após o longo e rico debate, ficou fixada a tese que obriga o órgão público a fornecer medicamentos não incorporados nos atos normativos do SUS, sempre que estiverem presentes, de forma cumulativa, os três requisitos estabelecidos no julgamento do recurso especial 1.657.156 – RJ.

Referente aos medicamentos sem registro na ANVISA, importa mencionar a recentíssima decisão do STF no julgamento do RE 657718/MG, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, onde foi decidido, em 22/05/2019, que não poderá o Estado fornecer medicamentos experimentais e que o medicamento que não tenha registro na ANVISA, via de regra, não poderá ser fornecido por decisão judicial, excetuando essa regra quando o houver pedido de registro do medicamento no Brasil, seja o medicamento registrado em renomadas agências de regulação no exterior e inexista substituto do medicamento com registro no Brasil. Além disso, decidiu-se que deverá necessariamente figurar no polo passivo da lide a União, quando o medicamento solicitado não for registrado na ANVISA.

Assim, pode-se notar que apesar de não ser papel do Poder Judiciário a criação de políticas sociais, para o cumprimento e efetivação do direito à saúde, esta interferência ainda se faz necessária devido a inação do Poder Executivo.

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