2. PROTEÇÃO INTERNACIONAL AOS REFUGIADOS
No âmbito internacional, a preocupação com a situação dos refugiados tem gerado discussões em todos os setores da sociedade, de modo que hoje existe um sistema jurídico de proteção firmado em legislação positivada com fundamento em princípios que norteiam a interpretação e aplicação das regras.
Na esfera global, o instrumento que inaugurou o sistema de proteção foi a Convenção das Nações Unidas de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados. Foi formalmente adotada para resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial.
Além de estabelecer um conceito formal para definir quem são refugiados, seus direitos e deveres na relação com o país recebedor, a Convenção também estipulou padrões básicos para o tratamento de refugiados nos países acolhedores. Tais padrões, no entanto, não retiram dos Estados o poder de desenvolver esse tratamento em seus respectivos ordenamentos jurídicos.
Posteriormente, como mencionado no capítulo anterior, o Protocolo de 1967 trouxe importantes alterações ao sistema de proteção, atualizou e ampliou o conceito de pessoa em situação de refúgio.
Na América Latina, a questão emerge com a Declaração de Cartagena de 1984; a Conferência de São José de 1994, sobre refugiados e pessoas deslocadas; assim como a Conferência Internacional sobre Refugiados Centro-Americanos (CIREFCA).
Vale ressaltar que todos os instrumentos internacionais citados possuem alicerce na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Portanto, é correto afirmar que a evolução das normas de proteção aos refugiados está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. (FREITAS; RIGOLDI, 2018, p. 4).
2.1. PRINCÍPIOS NORTEADORES DA PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS
A partir do texto do Tratado citado, é possível extrair uma gama de princípios informativos da proteção aos refugiados, dentre os quais destaca-se o princípio da não devolução – ou non refoulement - como o alicerce de toda a estrutura, haja vista que a não observância do mesmo poderia comprometer toda a estrutura de proteção internacional aos refugiados.
Previsto no artigo 33 da Convenção de 1951, visa garantir que o indivíduo não seja devolvido ao país que deu origem a essa condição, ou a qualquer outro onde possa sofrer ameaças à sua vida e liberdade em virtude da sua raça, religião, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
Nesse seguimento, encontra-se o princípio in dubio pro refugiado, o qual dispõe que em caso de dúvida acerca da perseguição ou violação de direitos humanos do indivíduo, decidir-se-á sempre em favor do solicitante de refúgio. (SAADEH; EGUCHI, 1998, p.25).
O princípio da unidade da família emerge como uma extensão a proteção conferida a esta instituição em diversos instrumentos jurídicos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ademais, o Estatuto do Refugiado recomenda a manutenção do núcleo familiar e a proteção aos menores. Vale ressaltar que o princípio visa garantir os laços entre os membros da unidade familiar, como forma de manter o equilíbrio nessa situação peculiar e aterradora.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz também o princípio da proteção internacional da pessoa humana, o qual garante a todos o direito às suas liberdades fundamentais.
Em complemento a este, tem-se o primado da cooperação e solidariedade internacional, segundo o qual “o dever de proteção da pessoa humana, visando dar solução, em perspectiva multilateral e mediante comunhão de esforços dos Estados pertencentes à sociedade internacional” à questão dos refugiados. (PEREIRA, 2009,p. 67). Também conhecido como princípio do compartilhamento, a norma consiste em:
[...]uma forma de cooperação internacional, de modo que todos compartilhem o ônus gerado por significativos fluxos de refugiados, principalmente em países subdesenvolvidos, objetivando proporcionalmente melhores condições e consequentemente o respeito pelos direitos humanos (FREITAS; RIGOLDI, 2018, p. 8).
A boa-fé configura-se um princípio essencial para que os Estados signatários do Estatuto possam concretiza-lo com máxima efetividade, cumprindo o compromisso firmado sem desvios. Dessa maneira, a boa-fé manifesta-se crucial “para a segurança das relações jurídicas e bem-estar da sociedade internacional, e para que haja o cumprimento harmonioso das normas acordadas internacionalmente. ” (PEREIRA, 2009, p. 69).
Em sequência, tem-se o princípio da supremacia do direito de refúgio, positivado no art. 1º da Convenção sobre Asilo Territorial de 1954, o qual estabelece “que a concessão de asilo ou o reconhecimento do refúgio não podem ser compreendidos pelo Estado de origem do asilado/refugiado como um ato de ofensa ou de estremecimento das relações diplomáticas entre este e o Estado de acolhida. ” (PEREIRA, 2009, p. 69).
Por fim, o artigo 3º da Convenção de 1951 estabelece o princípio da não discriminação, com a finalidade de proteger os refugiados contra qualquer tipo de exclusão no país acolhedor.
Para o real cumprimento desses postulados é necessário que os Estados desenvolvam efetivas políticas públicas de acolhida aos refugiados que os possibilitem abrigo e condições dignas de trabalho, de modo que possam ser inseridos na sociedade e não sejam marginalizados.
Faz-se necessário ainda uma ampla ação educativa voltada para a população nativa com a finalidade de instruir as pessoas acerca da situação singular e não desejada na qual se encontram os indivíduos em situação de refúgio. Infelizmente, a ignorância acaba gerando ondas de ódio e discriminação contra as pessoas que buscam abrigo.
2.2. DIREITOS SOCIAIS E TRABALHO COMO GARANTIA DA DIGNIDADE HUMANA
A Constituição Federal trouxe incluído em seu título denominado Dos Direitos e Garantias Fundamentais os direitos sociais, pela primeira vez de forma conjunta e não de forma diluída em meio aos dispositivos que versam sobre a ordem social e econômica, como fizeram as Cartas anteriores.
Isso conferiu mais força às ações destinadas a promover sua concretização, haja vista que agora eles fazem parte do rol de direitos fundamentais sobrelevado pela Constituição.
Segundo Gilmar Mendes e Paulo Branco (2015, p. 157), a partir da teoria dos quatro status de Jellineck, pode-se extrair três espécies de direitos fundamentais: direitos de defesa, direitos à prestação e direitos de participação. Os primeiros são os utilizados pelo indivíduo face ao Estado, têm caráter negativo (pressupõem uma abstenção do Estado).
Os segundos estão ligados à igualdade material e tem caráter positivo (requerem uma ação do Estado). Os terceiros garantem a participação do indivíduo na vida política, têm caráter positivo e negativo ao mesmo tempo.
Os direitos sociais identificam-se como direitos prestacionais em sentido estrito, pois demandam uma prestação material do Estado, uma atuação positiva, com vistas a atenuar as desigualdades de fato que existem na sociedade.
Conforme ensinam os autores, “os direitos fundamentais contêm, além de uma proibição de intervenção, um postulado de proteção” (2015, p.631). Assim, diz-se que não há apenas uma proibição de excesso, mas também uma proibição de proteção insuficiente.
Nesse sentido, pode-se afirmar, principalmente no âmbito dos direitos sociais, que o Estado tem o dever de tomar todas as providências necessárias para que seja garantida a efetividade dos direitos fundamentais. É nesse quadro que se insere o direito do trabalho: um direito social fundamental que demanda a atuação do Estado, o qual está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana.
A própria Constituição elegeu o trabalho como um de seus fundamentos, ao lado da livre iniciativa e da dignidade humana. Além disso, a erradicação das desigualdades e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária constituem seus objetivos.
É nesse sentido que Ledur (1998, p. 86) afirma que só é possível consolidar a dignidade da pessoa humana se a pessoa for livre e possuir meios materiais para garantir a própria existência. Conforme elucida Maurício Godinho Delgado (2007, p. 26):
Tudo isso significa que a ideia de dignidade não se reduz, hoje, a uma dimensão estritamente particular, atada a valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. Ao contrário, o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser humano. A dignidade da pessoa física, pois, lesada, caso ela se encontre em uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social. Na medida dessa afirmação social é que desponta o trabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade mais elaborada, o emprego.
E continua:
A valorização do trabalho está repetidamente enfatizada pela Carta Constitucional de 1988. Desde seu “Preâmbulo” essa afirmação desponta.
Demarca-se, de modo irreversível, no anúncio dos “Princípios Fundamentais” da República Federativa do Brasil e da própria Constituição (Título I). Especifica-se, de maneira didática, ao tratar dos “direitos sociais” (art. 6º e 7º)
– quem sabe para repelir a tendência abstracionista e excludente da cultura juspolítica do País. Concretiza-se, por fim, no plano da Economia e da Sociedade, ao buscar reger a “Ordem Econômica e Financeira” (Título VII), com seus “Princípios Gerais da Atividade Econômica” (art. 170), ao lado da “Ordem Social” (Título VIII) e sua “Disposição Geral” (art. 193). A Constituição não quer deixar dúvidas, pois conhece, há séculos, os olhos e ouvidos excludentes das elites políticas, econômicas e sociais brasileiras: o trabalho traduz-se em princípio, fundamento, valor e direito social (DELGADO, 2007, p. 16).
Portanto, é seguro afirmar que é dever do Estado oferecer condições mínimas para que os refugiados possam ingressar no mercado de trabalho e exercer suas atividades laborais legalmente. Essa atuação estatal deve buscar garantir a eles os meios para a reconstrução de uma vida digna, haja vista a atmosfera de exclusão que os cerca desde a entrada (muitas vezes irregular) em outro país. Conforme corrobora Gustavo Henrique Paschoal (2012, p. 113):
Para este estrangeiro, que se encontra em um país, não raras vezes desconhecido, em condições especiais, ou seja, fugindo de sua pátria por temer a perda de sua própria vida ou a de seus familiares por razões as mais variadas possíveis, num ambiente estranho, cercado por pessoas estranhas, que sequer falam sua língua, o trabalho é de suma importância para que este indivíduo possa adaptar-se, ainda que temporariamente, ao local em que, forçadamente, passou a viver. O trabalho, certamente, auxiliaria o refugiado a superar (ou tentar superar) as dores da perseguição sofrida, bem como as saudades de casa, além de colaborar no processo de adaptação ao ambiente, conhecendo novas pessoas e fazendo novos amigos.
É neste contexto que a expressão do senso comum “o trabalho dignifica o homem” ganha um significado, mais forte e impactante, como uma verdade global. Ora, o trabalho não garante apenas o sustento das famílias, mas também se constitui como um instrumento de integração social ao conferir ao trabalhador uma posição importante na estrutura da sociedade. Além disso, é fato que o trabalho é uma forma de realização pessoal.
2.3. DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO
Atrelado à temática deste trabalho, como meio de estudo e desenvolvimento da proteção internacional ao trabalho em geral, e em especial dos migrantes, está o Direito Internacional do Trabalho (DIT). O DIT é um ramo das ciências jurídicas que decorre naturalmente do Direito Internacional Público cujo objeto é a proteção dos trabalhadores migrantes, principalmente no que concerne às garantias trabalhistas adquiridas no País de origem. Segundo Portela (2013), consiste em um ramo do direito que visa estabelecer padrões internacionais mínimos nas relações trabalhistas.
O fundamento da existência do DIT apoia-se sobre motivos de ordem econômica, de caráter técnico e de índole social. Atualmente, o último ganha mais destaque, “já que o trabalhador passou a ser concebido com fulcro na dignidade da pessoa humana e na universalização dos princípios de justiça social, fundamentos primordiais para a atual definição de Estado Democrático de Direito” (MEDEIROS, 2016, p. 55).
No que tange às razões de caráter econômico, necessário mencionar a prática
– conhecida como dumping social - de introduzir produtos de um país no mercado de outro país, por um valor abaixo do normal. São práticas abusivas em que os Estados que não cumprem (ou não possuem) as normas trabalhistas têm condições de expor no mercado produtos por um menor preço, em detrimento dos produtos provenientes de países atendem respeitam os direitos trabalhistas de forma a garantir dignidade aos seus trabalhadores.
O dumping social consiste na redução dos preços de bens e de serviços por conta da prática de padrões trabalhistas inferiores aos internacionais, ou seja, da produção de mercadorias em condições de trabalho prejudiciais à dignidade humana e que contribuem para a redução dos custos de produção e, por conseguinte, do preço final dos produtos, permitindo que estes ganhem mercado […] O tratamento da matéria deve ser feito à luz da necessidade de evitar que o combate ao dumping social mascare o protecionismo de Estados que, na realidade, estejam enfrentando problemas com a competitividade de suas exportações no mercado internacional. (PORTELA, 2013, p. 508-509).
Nesse contexto, os países que possuem uma legislação mais garantista acabam sem ter condições de competir igualmente no mercado com os produtos de países que possuem “mão de obra barata”. Corrobora Mazzuoli (2012, p. 1010):
Em outras palavras, a alegação dos países desenvolvidos é a que de seu mercado “sofre” com a competitividade desleal de produtos mais baratos provenientes de países que mal remuneram seus trabalhadores e não lhes asseguram um mínimo de direitos sociais, fato que faz com o que os produtos dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento vendam mais que aqueles dos países mais ricos. A tal prática convencionou-se chamar de dumping social, que seria ocasionado pela violação de direitos fundamentais no trabalho e que estaria a explicar o porquê de determinados países conseguirem produzir certo produto a um preço bem inferior do que outro (industrializado e desenvolvido) conseguiria, caso respeitasse todas as normas trabalhistas (nacionais e internacionais) que ali se encontram em vigor.
Daí a necessidade de existirem padrões internacionais mínimos que garantam a efetividade do princípio da dignidade humana, os quais podem constar de tratados em matéria comercial que vinculam o desenvolvimento do comércio internacional entre suas partes ao respeito aos padrões mencionados. Caso necessário, o instrumento pode prever a aplicação de sanções comerciais em geral aos países que desrespeitarem os padrões definidos no tratado.
O terceiro alicerce do DIT refere-se ao caráter técnico, que positivam as normas desse ramo do direito em tratados e convenções, “promovendo a justiça social entre as nações de forma equitativa e de modo que seja eliminada a concorrência desleal” (MEDEIROS, 2016, p. 57). A elaboração desses instrumentos fica a cargo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituição permanente e autônoma com personalidade jurídica de Direito Internacional Público.
A OIT tem sede na Suíça e foi instituída pelo Tratado de Versalhes após a Primeira Guerra Mundial em 1919, atualmente constitui um organismo da ONU. O principal objetivo da Organização é estabelecer padrões internacionais mínimos para as relações trabalhistas e garantir melhores condições de trabalho em todo o mundo.
No que tange à sua organização interna, a OIT possui como grande diferencial o seu caráter tripartite formado pela presença dos três principais atores sociais interessados nas relações laborais: os Estados, entidades representativas dos trabalhadores e entidades representativas dos empregadores. Os mesmos formam os principais órgãos da Instituição, quais sejam: Conferência Internacional do Trabalho, Conselho de Administração e Repartição Internacional do Trabalho.
A OIT segue princípios, alguns deles instituídos por meio da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, elaborada pelos Estados- membros. Entre os princípios destacam-se: liberdade sindical; eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; eliminação de discriminação em matéria de emprego e ocupação.
No que concerne ao tema central do presente estudo, a Convenção nº 97 da OIT traz em seu art. 11. o dever do País acolhedor de buscar meios para assegurar que os refugiados obtenham um emprego conveniente e em condições dignas, de modo que não prejudique os trabalhadores nacionais. Segue o dispositivo na íntegra:
Artigo 11
Se um trabalhador migrante possuindo a qualidade de refugiado ou de pessoa deslocada está excedentário num emprego qualquer no território de imigração onde tenha entrado em conformidade com o artigo 3.º do presente anexo, a autoridade competente deste território deverá fazer todos os esforços para o pôr em posição de obter um emprego conveniente que não prejudique os trabalhadores nacionais e tomará medidas para assegurar a sua manutenção, aguardando a sua colocação num emprego conveniente ou a sua reinstalação noutro local.
Outro importante instrumento da OIT na proteção aos refugiados é o art. 10. da Convenção nº 118, sobre igualdade de tratamento dos nacionais e não nacionais em matéria de previdência social. Segundo o dispositivo citado, todas as disposições da Convenção devem ser aplicadas aos refugiados e aos apátridas sem condição de reciprocidade.
A partir do estudo das noções e premissas básicas atinentes ao Direito Internacional do Trabalho, que, através de uma interpretação extensiva e atual, tem como objetivo a proteção aos direitos trabalhistas dos trabalhadores refugiados, cabe agora adentrar na análise de como se dá essa proteção no âmbito nacional.