INTRODUÇÃO
O agravamento da crise econômica internacional, iniciada em meados do ano 2008, gerou instabilidade no mercado financeiro, afetando, por consequência, as principais instituições financeiras do Brasil e gerando grande oscilação nas taxas de câmbio flutuante, fixadas pelo mercado de câmbio.
Diante da alteração do cenário econômico, as empresas que operam no comércio internacional, por meio de Contratos de Compra e Venda Internacional, os quais parametrizam o pagamento das obrigações contratuais em taxas de câmbio, viram suas operações lucrativas se traduzirem em prejuízos, surgindo então a necessidade de readaptação de seus contratos às novas condições do mercado, visando o equilíbrio econômico-financeiro e a conservação dos Contratos.
A cláusula de hardship ganha então destaque nos Contratos Internacionais, tendo em vista ser ela instrumento contratual automático de readaptação dos contratos, prevendo a possibilidade de renegociação dos termos contratuais previamente fixados.
A presente pesquisa se prestará a estudar a aplicabilidade das cláusulas de hardship como meio de mitigar os danos ocasionados aos contratantes e conservar a execução dos Contratos de Compra e Venda Internacional, viabilizando a retomada do equilíbrio econômico-financeiro destes, respondendo à pergunta se este mecanismo contratual é efetivo para este fim.
A metodologia utilizada para a realização da pesquisa foi doutrinária e empírica, com análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça pátrios, disponibilizadas no site http://www.jusbrasil.com.br/.
A consulta à jurisprudência foi realizada no dia 29 de Agosto de 2016, das 20:00 às 23:00 horas. A busca contemplou a palavra chave “hardship”, sendo excluídos acórdãos os quais tinham sob análise contratos de natureza diversa daqueles estudados neste trabalho, totalizando o montante de 10 (dez) acórdãos excluídos. A amostra final da pesquisa jurisprudencial foi de 01 (um) acórdão.
No primeiro capítulo serão apresentados os conceitos gerais de Contratos de Compra e Venda Internacional e suas principais características, apresentação geral dos principais aspectos da política cambial brasileira, e os impactos causados pela variação cambial nos Contratos Internacionais.
No segundo capítulo da pesquisa serão introduzidos o conceito e objetivo das cláusulas de hardship, bem como analisada a possibilidade de readaptação dos Contratos de Compra e Venda Internacional por meio desta cláusula.
No terceiro e último capítulo serão apresentados o objetivo e os dados da pesquisa jurisprudencial realizada, a qual se presta a responder ao problema central do trabalho, qual seja, se as cláusulas de hardship são instrumentos contratuais eficazes para readaptação dos Contratos de Compra e Venda Internacional, bem como analisar o entendimento dos tribunais pátrios acerca do tema.
Por derradeiro elaborou-se conclusões finais, nas quais foram sintetizados os principais pontos da pesquisa, bem como apresentadas questões futuras a serem estudadas acerca do tema.
1. Contratos de Compra e Venda Internacional e a Política CAMBIAL BRASILEIRA
1.1. O que são os Contratos de Compra e Venda Internacional
Contrato de compra e venda internacional é o meio pelo qual as Partes formalizam a estrutura de uma determinada operação de comércio exterior[1]. O Contrato será considerado como internacional quando estiver presente um elemento de conexão, podendo ser a diferente nacionalidade ou domicílio dos contratantes, entrega de mercadoria ou prestação de serviços além das fronteiras do país negociante ou mesmo quando os locais de celebração e execução das obrigações não coincidam[2].
A doutrina[3] destaca que os Contratos Internacionais do Comércio se definem por suas características, destacando-se como principais a natureza extraterritorial do Contrato, a definição do direito aplicável, a utilização preponderante da Arbitragem Internacional, a utilização de Incoterms, a necessidade de garantias e seguros internacionais e a forma de pagamento baseada em moeda internacional, com a fixação de taxa de câmbio. Assim como nos demais contratos, a fase pré-contratual dos Contratos Internacionais define entre as Partes as condições comerciais do contrato, bem como as questões de direito, que serão fundamentais para execução do negócio no futuro[4].
Uma das principais características de um contrato de compra e venda internacional é seu alcance extraterritorial. Neste aspecto, se considera para determinação do alcance do contrato seus efeitos, e não apenas nacionalidade ou domicílio dos entes contratantes[5].
Característica decorrente do caráter extraterritorial dos contratos de compra e venda internacional, a submissão a diferentes jurisdições faz surgir a necessidade de as partes contratantes definirem contratualmente, por meio das cláusulas de jurisdição, qual será a legislação aplicável ao contrato.
Neste aspecto, as Partes poderão optar pelo direito aplicável ao Contrato[6], bem como pela Corte de julgamento competente para dirimir eventuais conflitos oriundos do Contrato, a qual poderá ser Estatal ou então a Arbitragem Internacional.
É muito comum que, nos contratos de compra e venda internacional, as Partes optem pela Arbitragem Internacional, elegendo Tribunal Arbitral livremente instituído entre elas, tendo em vista (i) a maior tecnicidade dos árbitros que irão apreciar o conflito, uma vez que estes podem ser indicados pelas Partes e possuem especialização nas matérias em litígio; (ii) maior segurança jurídica, tendo em vista que as matérias tem decisões mais uniformes; (iii) maior celeridade com relação aos processos judiciais, ponto este que pode se relativizar a depender da matéria sob análise, a qual poderá requerer maior atenção dos árbitros para melhor solução do conflito[7]; e (iv) e ainda a confidencialidade dos processos arbitrais, o que protege o nome e marca das empresas envolvidas em determinado conflito, poupando-as de eventual debandada comercial eventualmente causados no mercado de capitais.
Note-se que, para que tenha força executória, é necessário que as partes contratantes formalizem a convenção de arbitragem internacional, por meio da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral[8], estabelecendo desde logo a Câmara Arbitral responsável pelo julgamento do processo, bem como o procedimento a ser utilizado por ela[9].
Outro aspecto diferenciador dos Contratos de Compra e Venda Internacional é a utilização de cláusulas nas quais se definem o Incoterms utilizados na operação. Os Incoterms são regras para interpretação das condições comerciais do contrato de comercio internacional, criada em 1936, pela Câmara de Comércio Internacional[10], as quais têm como principal objetivo, de acordo com Irineu Strenger, “harmonizar os negócios internacionais, dando aos seus partícipes maior solidez relativamente aos diferentes entraves que surgem inevitavelmente no processo comercial[11]”.
Pode-se resumir que os Inconterms como regras de caráter internacional que têm como objetivo definir padrões gerais de distribuição de custos inerentes à operação entre importador e exportador
A utilização de Inconterms em contratos de compra e venda internacional de visa suprir as diversas interpretações possíveis que a utilização de leis comerciais de diferentes países pode causar, bem como a insuficiência de dados que eventualmente pode prejudicar uma determinada operação. Ao todo existem 13 Inconterms, divididos em quatro diferentes grupos, sendo eles o Grupo E – Partida (EXW), Grupo F – Transporte Principal Não Pago (FCA, FAS, FOB), Grupo C – Transporte Principal Pago (CFR, CIF, CPT, CIP), Grupo D – Chegada (DAF, DES, DEQ, DDU, DDP)[12].
É comum o oferecimento de garantias bancárias nessa espécie contratual, as quais cobrem o valor da operação e por vezes o risco do negócio, tendo em vista seu caráter amplo.
Dentre as diversas garantias bancárias oferecidas para operações internacionais, dá-se destaque para garantias bancárias, sendo muito comum nestas operações a emissão de Cartas de Crédito[13] e ‘Standby Letters of Credit’, as quais, de acordo com Bruno Ratti, “poderão ser utilizadas para garantir a obrigação do tomador a pagar por mercadorias ou serviços”[14].
A cláusula de seguro internacional é componente comum em um operação de compra venda internacional de mercadorias, tendo em vista a necessidade de se amparar os riscos inerentes ao Contrato. O seguro é responsável por trazer estabilidade ao Contrato, partindo a responsabilidade dos riscos das operações entre as empresas contratantes[15].
Para definição da responsabilidade de contratação de seguro para as mercadorias importadas e/ou exportadas, as partes aplicam também ao contrato os Incoterms, tendo em vista que tais regras de direito comum têm como condão também a definição de tais responsabilidades, como é o caso das cláusulas CIF (Cost Insurance and Freight) e CIP (Carriage and Insurance Paid To), por exemplo.
Existem ainda outras formas de garantias utilizadas nos Contratos de Compra e Venda Internacionais, as quais não serão estudadas no âmbito desta pesquisa, tendo em vista sua alta complexidade técnica e por não serem objeto central deste trabalho.
Outra cláusula característica dessa espécie contratual é a cláusula de Fixação de Preço. Como será melhor analisado no subcapítulo 1.2 abaixo, a fixação do preço das obrigações oriundas destes contratos fica sempre sujeita à variações cambiais.
As Partes, por meio dessa cláusula, estabelecem relação entre o valor ajustado e as quantidades de mercadorias que serão adquiridas por meio do Contrato, bem como a moeda de pagamento do preço ajustado e sua forma de conversão para a moeda corrente nacional, no nosso caso, o Real.
A Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas, pensando na variação do preço das mercadorias, elaborou formula matemática, a qual se concretizou nos contratos de Compra e Venda Internacional como cláusula tipo denominada “cláusula de revisão”. Por meio dessa cláusula as Partes ficam autorizadas a revisar o preço previamente ajustado aplicando-se fórmula matemática, a qual traz o valor histórico ao presente, considerando as variações de valor de matéria prima e/ou mão de obra.
Por fim, nos Contratos sob análise dá-se destaque também às cláusulas de hardship e força maior (Force Majeure). Cláusulas de hardship, que serão adiante melhor analisadas, são aquelas que preveem a renegociação das condições contratuais quando ocorrem eventos durante a execução do Contrato os quais afetam o equilíbrio contratual, tornando-o demasiadamente oneroso para uma das partes[16].
Já as cláusulas de força maior tem o condão de suspender a execução ou exonerar uma das Partes da responsabilidade de execução do Contrato, tendo em vista a ocorrência de circunstâncias imprevisíveis, sendo impossível que as Partes não sofram seus efeitos, podendo-se citar como exemplo a existência de guerras, embargos comerciais, interrupção do transporte por tempo indeterminado, ou qualquer outro evento que possa comprometer a execução do Contrato[17].
1.2. Política Cambial Brasileira
Desde o ano de 1999, a política cambial oficial brasileira, é baseada no chamado tripé macroeconômico[18], e adota, em tese, o regime de cambio flutuante que tem como diretriz básica a mínima, ou até nenhuma, intervenção do governo.
No entanto, o Banco Central do Brasil intervém na formação das taxas de câmbio, comprando ou vendendo moeda, caracterizando o “dirty flooting”[19] para impedir grandes variações cambiais, sem, no entanto, estabelecer uma taxa fixa, como ocorre em países como China.
Em decorrência da intervenção do Banco Central Bruno Ratti afirma que “apesar de termos taxas livres de câmbio não temos um mercado livre de câmbio, ou seja, aquele no qual inexistam quaisquer restrições”[20].
De acordo com Pedro Rossi[21], a política cambial brasileira é institucionalizada, o que significa o governo atua ativamente, seja por meio do controle sobre fluxo de capital, intervenções do Banco Central, taxação sobre operação de derivativos ou regulamentação da posição dos bancos, para evitar que a volatilidade cambial seja de tal sorte que possa ocasionar danos imensuráveis aos investidores ou aos negócios que tem o pagamento das obrigações vinculados à taxa de cambio.
No âmbito do comércio exterior de mercadorias e serviços, o impacto da política cambial flutuante adotada pelo Brasil ocorre uma vez que a legislação brasileira[22] determina que os pagamentos das obrigações pecuniárias exequíveis no Brasil deverão ser realizados em moeda corrente nacional (Real).
Nos contratos de comércio internacional comumente os pagamentos das obrigações contratuais são fixados em moeda estrangeira, geralmente em moedas fortes como Dólar, Euro ou Libras, de modo que existem nestes contratos cláusulas que determinam a taxa de câmbio para conversão do valor do pagamento para Reais.
Dessa forma, em uma operação de compra e venda internacional, para ingresso do pagamento objeto de uma operação de exportação em território nacional, é necessário que uma instituição devidamente autorizada pelo Banco Central faça a intermediação da operação de câmbio, por meio de um contrato de câmbio, com a finalidade de transformar a moeda estrangeira em moeda nacional.
Do mesmo modo, em operações de compra e venda internacional, as quais tem como escopo a importação de mercadorias, a flutuação cambial tem implicações no que tange ao pagamento ao exportador estrangeiro, tendo em vista que tais obrigações são contratualmente fixadas em parâmetros cambiais, considerando para cálculo do valor devido ao exportador a taxa auferida no dia útil anterior à emissão da Fatura.
É claro o impacto da variação cambial com relação ao pagamento das obrigações advindas dos Contratos de Compra e Venda Internacional, conforme veremos a seguir.
1.3. Os Impactos da Variação Cambial nos Contratos de Compra e Venda Internacional
Nos contratos de compra e venda internacional se faz necessária a troca de moeda para pagamento das obrigações pecuniárias assumidas pelas partes, troca essa que é feita com base em uma taxa de câmbio pré-fixada contratualmente[23].
De acordo com Bruno Ratti, muitas vezes a moeda perde a paridade do poder de compra[24] sem que haja a variação dos preços nos países envolvidos na negociação, seja por fatores políticos ou fatores de natureza psicológica, fazendo com que a taxa cambial sofra alterações bruscas, sujeitando as operações internacionais a um aumento de custo de execução que não existe no mercado interno. Como consequência da variação cambial podem resultar alterações no lucro das partes contratantes, ou até a conversão de operações deveras lucrativas em perdas inestimáveis[25].
Diante deste cenário de desequilíbrio das obrigações contratuais originalmente pactuadas, surge o dever das partes de renegociar o contrato, visando à retomada do equilíbrio contratual, pautada no princípio da boa-fé contratual, o qual nasce na fase inicial de negociação do contrato e permeia a relação dos contratantes até o fim da relação jurídica entre eles[26].
Neste aspecto, importante ressaltar que, por muitas vezes, um grande prejuízo de uma das partes se traduz em grande ganho para a outra parte, o que gera uma certa recusa da parte privilegiada em renegociar o contrato para que o equilíbrio vislumbrado inicialmente seja retomado.
Por isso é de suma importância que as partes ajam sempre com probidade, pautadas na boa-fé recíproca e com plena ciência de que em uma negociação, seja ela internacional ou não, deve-se vislumbrar além do lucro, colaborando as partes para a perfeita execução do contrato, já que ambas pretendem um fim comum, que é o objeto contratual.
Segundo ensinamento de Francesco Galano[27], a renegociação contratual deve ser pautada no princípio da boa-fé uma vez que durante a execução dos contratos as partes devem agir em cooperação, visando proteger os interesses uma da outra, bem como minimizar os danos eventualmente oriundos da relação contratual.
De acordo com Nelson Nery Junior e Thiago Rodovalho dos Santos a obrigação de renegociar o contrato surge quando se vislumbram perturbações na fase de cumprimento deste, afastando-o daquilo que fora previamente estipulado, devendo tais perturbações ser supervenientes à celebração do contrato[28].
A necessidade de equilíbrio das relações contratuais encontra-se inserida no conceito de justiça contratual[29], uma vez que atingida a justiça contratual, por obvio que será alcançado o equilíbrio contratual, sendo certo também que a justiça contratual somente será alcançada quando a relação contratual basear-se no princípio da boa-fé.
As cláusulas contratuais são redigidas com constante tentativa de prever o futuro, vez que o contrato não é escrito no mesmo momento de sua execução, mas não é possível abarcar todas futuras hipóteses capazes de ocorrer. Deste modo, quando um evento futuro inesperado e impossível de ser previstos pelas partes no momento de celebração do contrato ocorrer, será necessária a utilização de mecanismos para renegociação contratual.
No âmbito dos contratos internacionais o mecanismo de renegociação dos contratos encontra guarida nas cláusulas de hardship. Tais cláusulas nada mais são do que mecanismos de renegociação contratual originárias da autonomia de vontade das partes contratantes[30], previstas nos contratos de compra e venda internacional com grande frequência.
Júlio Gomes[31] conceitua as cláusulas de hardship como sendo aquelas que preveem a renegociação dos contratos quando da mudança brusca das circunstâncias originárias, de modo a afetar o equilíbrio global dos contratos.
A cláusula de hardship, tais quais todas as demais cláusulas contratuais, têm caráter vinculativo entre as partes contratantes, de modo deve ser acionada sua aplicação quando se concretizar uma situação de desequilíbrio contratual, cumprindo com aquilo que fora livremente estipulado entre elas no momento de celebração do contrato.
A cláusula de hardship foi incluída nos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, elaborado pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit) em sua primeira edição (1994), nos artigos 6.2.1 a 6.2.3, sendo mantido nas edições posteriores[32].
Deste modo, resta clara a necessidade de aplicação das cláusulas de hardship para renegociação dos contratos de compra e venda internacional em cenários em que a variação cambial seja de tal ordem a promover um desequilíbrio contratual, tornando as obrigações previamente estipuladas inexequíveis ou desproporcionais, de modo que a retomada do equilíbrio contratual seja imprescindível para que o objeto do contrato seja cumprido pelos contratantes.