Capa da publicação Linguagem do auto de infração e imposição de multa tributária: caso do ICMS de SP
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Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa:

análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo

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24/03/2020 às 16:24
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7. Da escolha da norma geral e abstrata sancionadora a ser aplicada

São muitos os deveres instrumentais atribuídos ao contribuinte do ICMS do Estado de São Paulo. Porque o legislador paulista descreveu minuciosamente o descumprimento de tais deveres em hipóteses de normas gerais e abstratas sancionadoras, ocorre dúvida algumas vezes sobre a norma geral e abstrata sancionadora a ser aplicada a caso concreto. Se a norma escolhida não for a adequada, ocorrerá erro de direito.

Se a conduta do contribuinte for desconforme com a prescrita na lei do imposto ou contrária a esta (ato ilícito) mas não houver norma geral e abstrata sancionadora a cuja hipótese o relato da conduta se subsome, não poderá a autoridade administrativa aplicar sanção ao infrator.[21] O mesmo ocorrerá no caso inverso: existência de norma geral e abstrata sancionadora cuja hipótese descreve infração a que o relato da conduta se subsome, mas inexistência de norma geral e abstrata, obrigatória ou proibitiva, cujo consequente prescreve dever jurídico que é a conduta oposta à descrita na hipótese da norma sancionadora. O preceito decorre do princípio da legalidade[22] e é ratificado pelo fato de, após cada acusação fiscal do auto de infração e antes da respectiva “capitulação da multa”, ser indicada a “infringência”, relação de um ou mais dispositivos onde constam os deveres instrumentais que o contribuinte descumpriu.

Se previsível a infração, seu relato provavelmente se subsumirá ao descrito na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora específica. Se isso não ocorrer, mas a infração implicar falta de pagamento do ICMS ou creditamento indevido do imposto, a descrição da infração se subsumirá à hipótese de norma geral e abstrata sancionadora mais genérica: a da alínea “l” do inciso I ou a da alínea “j” do inciso II, ambas do art. 85 da Lei 6.374/1989.[23]


8. Das normas individuais e concretas de exigência da multa e do imposto, no Auto de Infração

Com a notificação ao contribuinte de Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) são postas geralmente duas normas individuais e concretas no ordenamento: a de exigência da multa e a de exigência do imposto. No entanto, somente o relato do antecedente da primeira norma (a acusação fiscal) está expresso. O relato do evento (ou eventos) tributário cujo imposto não foi pago ou foi pago a menos não está: basta que a ocorrência do evento possa ser inferida da infração fiscal e estar demonstrada pelas provas que instruem o AIIM.

Como exemplo na área do ICMS, consideremos o comerciante que escriturou, no livro Registro de Entradas, em determinado período, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas, com valores de "crédito do imposto" superiores aos destacados nas Notas, deixando, portanto, de pagar imposto.

A norma geral e abstrata sancionadora aplicável pode ser assim enunciada:

Se contribuinte paulista não escriturar regularmente, no livro fiscal próprio, documento fiscal, dando causa a falta de pagamento do ICMS, então ele deverá pagar ao Estado de São Paulo, a partir do momento da escrituração irregular, multa igual a 75% (setenta e cinco por cento) do valor total de imposto que deixou de ser pago”.[24]

Conforme lição de Carvalho (2008a, p. 543-544), na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora temos: o "critério material" (não escriturar regularmente, no livro fiscal próprio, documento fiscal, dando causa a falta de pagamento do ICMS); o "critério espacial" (território do Estado de São Paulo); o "critério temporal" (momento em que ocorrida a escrituração). No consequente da norma sancionadora temos: o “critério pessoal”, formado pelo "sujeito ativo" (pessoa jurídica de direito público interno investida do poder de exigir a multa: o Estado de São Paulo) e pelo "sujeito passivo" (pessoa que deve pagar a multa: o contribuinte infrator); e o "critério quantitativo", formado pela "base de cálculo da multa" (valor total do imposto devido) e pela "percentagem da multa" (de 75% – setenta e cinco por cento).

A norma individual e concreta de exigência da multa, enunciada na forma de implicação, é:

Dado que o contribuinte acima identificado não escriturou regularmente, no livro Registro de Entradas, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas no período de ... a ..., relativas a operações tributadas, dando causa a falta de pagamento do ICMS de R$ ..., então deve pagar ao Estado de São Paulo a multa de R$ ... , apurada conforme demonstrativo anexo”.

No entanto, as normas individuais e concretas de exigência da multa e do imposto são assim enunciadas no auto de infração:

“Deixou de pagar ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., por não haver escriturado regularmente, no livro Registro de Entradas, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas, relativas a operações tributadas, conforme demonstrativo anexo”.

Apenas o inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989 refere-se diretamente a infrações que dão causa ao não-pagamento do imposto. Com efeito, todas as alíneas do inciso são de “falta de pagamento do imposto”. Em seguida é descrita a causa da “falta de pagamento do imposto” (“descumprimento de dever instrumental”), exceto na alínea “a”, que menciona o “meio” pelo qual a “falta” foi apurada, e na alínea “l”, que se refere a causa não prevista nas demais alíneas.

Cada um dos demais incisos do art. 85 refere-se a determinado tipo de “descumprimento de dever instrumental” – infrações relativas ao crédito do imposto (inc. II); infrações relativas a documentação fiscal na entrega, remessa, ... (inc. III); infrações relativas a documentos fiscais e impressos fiscais (inc. IV) etc. – que pode ser causa ou não da “falta de pagamento do imposto”. Quando o “descumprimento de dever instrumental” for causa do “não-pagamento do imposto”, a capitulação da multa (alínea e inciso do art. 85, em que está a norma geral e abstrata sancionadora aplicada) deverá ser combinada com o § 1º do art. 85. De acordo com a primeira parte do § 1°, a aplicação das penalidades previstas nesse artigo deve ser feita sem prejuízo da exigência do imposto em auto de infração. Após o relato da infração, são apresentados os cálculos da multa e do imposto.

Em casos previstos a partir do inc. II do art. 85, descreve-se a infração e exige-se o imposto não-pago dela decorrente, o que condiciona a validade da relação jurídica de exigência do imposto à da norma individual e concreta de exigência da multa, que requer relatos da infração e da relação jurídica dessa norma de acordo com as provas e subsunção desses relatos ao do evento hipotético descrito no antecedente e ao da relação jurídica prescrita no consequente, respectivamente, da norma geral e abstrata sancionadora aplicada.

Suponhamos que a análise de controles paralelos elaborados pelo contribuinte e apreendidos pelo fisco permitisse inferir que, em determinado período, operações de saída de mercadorias não foram declaradas à Fazenda Pública.

Se construída separadamente, a norma individual e concreta de exigência do imposto poderia ser:

Dado que, no período de ... a ..., o contribuinte acima identificado efetuou operações de saída de mercadorias, inferidas por documentos anexos, então deve pagar ao Estado de São Paulo o imposto de R$ ..., diferença entre o imposto apurado e o declarado, conforme documentos e demonstrativo anexos".

Se a exigência do imposto for feita na forma utilizada no auto de infração, mesmo que demonstrada a falta de pagamento do imposto, este não poderá ser exigido em caso de acusação fiscal incorreta. É o que ocorreria se o contribuinte tivesse sido acusado de “deixar de emitir documentos fiscais no período de ... a ..., conforme documentos e demonstrativo anexos”, mas os controles paralelos elaborados pelo contribuinte não permitissem identificar os dados essenciais das operações de saída sem emissão de documento fiscal.[25] Nesse caso, o contribuinte deveria ter sido acusado de “deixar de pagar o imposto de R$ ..., apurado por meio de levantamento fiscal”.

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No auto de infração, a infração praticada (ou o evento tributário) é “motivo” do ato administrativo de exigência da multa (ou do imposto). No que concerne aos vícios relativos ao “motivo” do ato administrativo, seguimos lições de Di Pietro (2003, p. 3).[26] Se a ocorrência da infração (ou do evento tributário) não estiver demonstrada pelas provas juntadas ao auto de infração, haverá vício no “motivo”, por inexistente a matéria “de fato” (“pressuposto de fato”); se estiver demonstrada, mas o relato da infração (ou do evento tributário) não se subsumir ao que está descrito no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora (ou na hipótese da regra-matriz de incidência) aplicada, haverá vício no “motivo”, por juridicamente inadequada a matéria “de direito” (“pressuposto de direito”, “fundamento legal” ou “motivo legal”). Num ou noutro caso haverá vício na “motivação” (que é a descrição dos motivos) do ato administrativo de exigência da multa (ou de lançamento do imposto), o que torna o ato “anulável”.

Atos administrativos de exigência da multa e de lançamento do imposto são anulados quando a norma individual e concreta de exigência de multa perde sua validade. A perda da validade ocorre quando, impugnada a norma, o órgão julgador, administrativo ou judicial, singular ou colegiado, a retira do sistema do direito positivo por meio da introdução de outra norma individual e concreta (a decisão), com aquela incompatível. A norma introdutora dessa norma individual e concreta, porém, é concreta e geral. É “concreta”, porque, em local e momento determinados, o órgão julgador exerceu sua competência legal de acordo com procedimento prescrito em norma de produção normativa; é “geral”, porque todos devem respeitar o disposto na norma introduzida.


9. Dos limites objetivos para a revisão do lançamento

Na revisão do lançamento há o conflito entre o "sobreprincípio da segurança jurídica" e o "princípio da legalidade" (CAMPILONGO, 2005, p. 188). O princípio rege a atuação da Administração Pública. Em muitos casos, porém, o sobreprincípio limita tal atuação, ao buscar a previsibilidade e a estabilidade das relações jurídicas entre Administração e administrados.

"A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública" (parágrafo único do art. 149 do CTN).[27] Logo, é o mesmo o termo final dos prazos para efetuar o lançamento original e para fazer a revisão desse lançamento. No primeiro caso, o prazo é de decadência; no segundo, de preclusão, visto que já instaurada a relação processual.

A maioria dos autores entende taxativa ("numerus clausus") a enumeração apresentada nos incisos do art. 149. Como apenas o "erro de fato" está previsto ("quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior" – inc. VIII), concluem que o legislador não autorizou a revisão de lançamento com "erro de direito".[28] Pela regra do inc. I do art. 149, o lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa "quando a lei assim o determine." Interpretação mais restritiva da regra, porém, é de que ela se aplica apenas aos tributos em que o lançamento (e não a revisão) é de ofício, como o IPTU.

Alguns autores, porém, admitem a revisão de lançamento tanto com "erro de fato" quanto com "erro de direito", desde que observado o prazo do parágrafo único do art. 149.[29]

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Sobre o autor
Wagner Pechi

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa:: análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6110, 24 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77851. Acesso em: 25 abr. 2024.

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