Capa da publicação Linguagem do auto de infração e imposição de multa tributária: caso do ICMS de SP
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Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa:

análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo

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24/03/2020 às 16:24
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10.  Regra-matriz de incidência do ICMS e norma individual e concreta de exigência do imposto

Em todos os exemplos em que o ICMS deve ser exigido pelo Estado de São Paulo, podemos construir a seguinte regra-matriz de incidência:

Se pessoa natural ou jurídica domiciliada em território paulista ('critério espacial': art. 23, I, ‘a’, da Lei 6.374/1989), de modo habitual ou em volume que caracterize intuito comercial, efetuar operação de circulação de mercadorias tributadas ('critério material': art. 1°, I da lei; art. 155, II, da Constituição Federal), e tendo ocorrido momento escolhido pelo legislador para que o fato irradie efeitos jurídicos ('critério temporal': art. 2°, I, da lei), então essa pessoa, denominada contribuinte (art. 7°, “caput”, da lei, espécie de sujeito passivo – parte do 'critério pessoal'), deverá pagar ao Estado de São Paulo (sujeito ativo: indicado no preâmbulo da lei – parte do 'critério pessoal') ICMS igual ao produto do valor da operação (base de cálculo: art. 24, I, da lei – parte do ‘critério quantitativo’) por alíquota determinada (art. 34 da lei – parte do ‘critério quantitativo’)”.

Em princípio, enunciada na forma de implicação, a norma individual e concreta de exigência do ICMS é:

Dado que a pessoa natural (ou jurídica) acima identificada realizou operação de circulação de mercadorias tributadas no período de ... a ..., então ela ('sujeito passivo' da 'relação jurídica tributária') deve pagar ao Estado de São Paulo ('sujeito ativo' dessa relação) o ICMS de R$ ... (obrigação de referida relação), diferença entre o imposto apurado pelo fisco e o por ela declarado, conforme demonstrativo anexo".

Conforme vimos, o Auto de Infração e Imposição de Multa é veículo introdutor de duas normas individuais e concretas no ordenamento jurídico: a de lançamento, cujo antecedente é o relato de fato lícito e o consequente uma relação jurídica em que se exige tributo; a de imposição de multa, em que o antecedente é a descrição de um ilícito e o consequente uma relação jurídica em que se exige multa.

O ICMS, porém, é imposto sujeito à homologação pela autoridade administrativa, em que a lei atribui ao contribuinte extensa relação de deveres instrumentais para: apurar o valor do “imposto devido” ou do “saldo credor do imposto”, no período; e declarar aquele ou este valor à Fazenda do Estado, em Guia de Informação e Apuração do ICMS. O ato de lançamento seria anulável se, em sua “motivação” (parte da estrutura do ato administrativo e antecedente da norma individual e concreta), não fossem descritos, ainda que de forma sucinta, os “motivos” por que o fisco está a modificar a apuração (ou apurações) do imposto realizada pelo contribuinte no período fiscalizado e a exigir, em auto de infração, valor (ou valores) do imposto que o contribuinte deveria ter declarado e recolhido espontaneamente. Para Carvalho (2008c, p. 443-444), isso é o “pressuposto causal” de validade do lançamento tributário. Quando o lançamento é lavrado em substituição ao ato de linguagem emitido com deficiência pelo sujeito passivo, ou seja, sem traço inovador (relato de relações jurídicas novas), Carvalho (2008a, p. 427), louvando-se em classificação de Ruy Cirne Lima, afirma que o lançamento é ato “modificativo”. Se no lançamento houver relato de relações jurídicas novas, ele será ato “constitutivo”.

Conforme se vê, se o lançamento for “ato modificativo”, não há como dissociá-lo da conduta pretérita do contribuinte. Para que a “motivação” do ato não esteja sujeita à anulação, não deve o agente fiscal referir-se a fato que não possa provar (erro de fato) e, ao relatar conduta pretérita do contribuinte que levou à falta de pagamento do imposto, não deve subsumir o relato a classe típica de infrações descrita em hipótese de norma geral e abstrata sancionadora.

Como o contribuinte deve ser notificado do lançamento do imposto, este pode ser feito da seguinte forma:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por operações de circulação de mercadorias, tributadas, apurado no período de ... a ..., conforme motivos e demonstrativo anexos”.

Os “motivos” do lançamento devem ser relatados sucintamente no antecedente da norma individual e concreta, podendo ser detalhados em demonstrativo anexo ao lançamento.

Suponhamos que, em determinado período, o agente fiscal apurou:

a) operações de circulação de mercadorias, sem emissão de Notas Fiscais;

b) escrituração, no livro Registro de Entradas, de créditos de imposto destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 (documentos inidôneos);

c) escrituração inexata, em livro fiscal próprio, de débitos de ICMS destacados em Notas Fiscais de saídas e de créditos de ICMS destacados em Notas Fiscais de aquisições de mercadorias, de sorte que, nos meses em que isso ocorreu, o contribuinte apurou valores de “imposto a recolher” inferiores aos devidos ou “saldos credores” superiores aos reais.

No caso da letra “a”, haverá o relato de relações jurídicas novas. O lançamento é ato constitutivo. A omissão do contribuinte não precisa constar do relato. Nos casos das letras “b” e “c”, o lançamento modifica apurações que o contribuinte realizou no período fiscalizado. Com efeito, na apuração realizada pelo agente fiscal constarão:

a) nos meses em que houve operações de circulação de mercadorias sem emissão de Notas Fiscais, débitos de ICMS relativos a essas operações;

b) nos meses em que houve escrituração de créditos de ICMS destacados em documentos inidôneos, o estorno desses créditos;

c) nos meses em que houve escrituração, em livro fiscal próprio, de valores diferentes dos valores dos débitos (créditos) de ICMS destacados em Notas Fiscais de saídas (aquisições de mercadorias), as diferenças entre os débitos (créditos) de ICMS destacados (escriturados) e os escriturados (destacados).

Quando, para cada evento tributário (ou conjunto de eventos, no levantamento específico ou contábil) a falta de pagamento do ICMS é demonstrada por vários documentos, o agente fiscal deve agrupá-los por tipo, ordenar os grupos de forma lógica e, em Relatório Circunstanciado, com índice por tipo de documento, explicar como documentos de cada tipo se encadeiam para demonstrar a ocorrência do evento tributário (ou do conjunto de eventos) e a falta de pagamento do ICMS. O Relatório Circunstanciado descreverá a conduta do contribuinte e as providências que o agente fiscal tomou para, após o exame das apurações efetuadas pelo contribuinte, suprir omissões, estornar créditos indevidos, corrigir valores com erro de escrituração e calcular valores de imposto devidos no período fiscalizado. De fato, com o cotejo entre valores das apurações realizadas pelo agente fiscal e das efetuadas pelo contribuinte no período fiscalizado, ou com o confronto entre deveres instrumentais que o contribuinte deveria ter cumprido e os que de fato cumpriu, a “motivação” do ato também poderá ser conhecida pelo contribuinte ou por órgão julgador, caso impugnada a acusação.

Guerra (2004, p. 132-137) propõe sejam enunciadas separadamente, no Auto de Infração e Imposição de Multa, as normas individuais e concretas de exigência do imposto e de exigência da multa, visto que a gênese da primeira é fato lícito, enquanto a da segunda é fato ilícito. Em seu "Esquema da Incidência da Autuação Fiscal", propõe sejam também relatadas a regra-matriz de incidência do imposto e a regra-matriz de multa pelo não pagamento (norma geral e abstrata sancionadora). Afirma a Autora que, para cada infração que tenha causado falta de pagamento do imposto, a apresentação da hipótese e do consequente de cada regra-matriz, e do antecedente (fato jurídico tributário ou fato jurídico tributário ilícito) e do consequente (relação jurídica tributária ou relação jurídica da multa) da respectiva norma individual e concreta permite deixar mais clara a coerência da subsunção, o que muito ajuda no controle da legalidade dos atos praticados pelo agente administrativo.

No entanto, ao relatar, no antecedente da norma individual e concreta de lançamento do imposto, evento (ou eventos) jurídico tributário declarado defeituosamente pelo contribuinte (lançamento modificativo), não deixa a Autora de mencionar a falta (ou faltas) cometida pelo contribuinte. Nem poderia ser de outro modo, visto que essa falta é “motivo” do ato administrativo de lançamento. Não descrito o motivo (ou motivos) do ato administrativo, este poderá ser anulado. Somente em relação a evento (ou eventos) não declarado pelo contribuinte (lançamento constitutivo) é que se pode relatar o evento lícito sem ter de mencionar a omissão do contribuinte, que evidentemente está implícita.


11.  Construção de normas individuais e concretas de exigência do ICMS para exemplos anteriores

Para o exemplo da letra “c” do subitem 6.1, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., em razão do estorno, pelo fisco, de créditos de ICMS correspondentes a valores de imposto destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989”.

Observações:

Provas:

a) documentos com destaques de ICMS (motivo do ato administrativo de lançamento: ocorrência de operações de circulação de mercadorias);

b) folhas do livro Registro de Entradas com escrituração dos créditos (motivo do ato administrativo de lançamento: apropriação dos créditos de ICMS);

c) cópias do Relatório de Apuração de Inidoneidade dos Documentos e da Ficha-Resumo (motivo do ato administrativo de lançamento: o suposto vendedor simulava sua existência).

O não-atendimento às condições do item 3 do § 1° do art. 36 da Lei 6.374/1989 é “pressuposto de direito” de motivo do ato administrativo de lançamento. Se o agente fiscal estornou créditos do ICMS destacados em documentos que não atendem àquelas condições, é porque o contribuinte apropriou-se de créditos indevidos.

Antes de julgado o REsp 1148444/MG,[30] em casos de escrituração de créditos de imposto destacados em documentos que não atendiam às condições do item 3 do § 1° do art. 36 da Lei 6.374/1989, teria sido conveniente que o fisco relatasse os eventos jurídicos tributários ocorridos no período, “modificados” por estornos de crédito de imposto por ele efetuados, no antecedente de norma individual e concreta de exigência do imposto. Assim, a procedência da exigência dos valores de ICMS assim apurados e exigidos dependeria apenas de haver provas concludentes[31] de que, no período em que os documentos foram emitidos, o suposto fornecedor simulava sua existência. Se na impugnação ao auto de infração, o contribuinte demonstrasse ter agido de boa-fé,[32] poderia o órgão julgador considerar improcedente a acusação fiscal, mas procedente a exigência do imposto, já que a boa-fé do adquirente não legitima crédito de ICMS destacado em documento que indica local de onde as mercadorias seguramente não saíram. Se a exação fiscal fosse reduzida ao total dos créditos estornados e respectivos juros de mora, talvez o contribuinte quitasse o débito fiscal.

Para o exemplo da letra “a” do subitem 6.2, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por remessa de mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, com suspensão do pagamento do imposto, mas que, no prazo de 60 (sessenta) dias, não retornou ao estabelecimento de origem nem foi realizada a transmissão de sua propriedade (cf. dispõe o § 1° do art. 319 do RICMS/2000)”.

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Observações:

Provas:

Nota Fiscal n° ..., Série ..., emitida em __ / __ / ___: (motivos do ato administrativo de lançamento: saída de mercadoria para demonstração, com suspensão do pagamento do imposto; mercadoria não retornada ao estabelecimento de origem no prazo de 60 dias; transmissão de propriedade da mercadoria não realizada nesse prazo).

Valor da mercadoria: R$ ... ;

Alíquota: ... ;

Valor do imposto: R$ ... ;

Juros de mora calculados a partir do mês de saída da mercadoria.

O “pressuposto de direito” de dois fatos (ou motivos) do ato administrativo de lançamento está na regra do § 1º do art. 319.

Conforme se vê, o relato não menciona o descumprimento de dois deveres do contribuinte: recolher o imposto devido, por meio de guia de recolhimentos especiais, com atualização monetária e acréscimos legais (cf. item 1 do § 1° do art. 320); emitir, no 61° (sexagésimo primeiro) dia contado da saída da mercadoria, a Nota Fiscal a que se referem os §§ 1°, 2° e 3° do art. 320 do RICMS/2000.

Para o exemplo da letra “c” do subitem 6.2, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por emissão, no período de ... a ..., de Notas Fiscais de vendas de mercadorias para outro Estado, sem que, após notificado, conseguisse comprovar a realização das operações, conforme o demonstrativo anexo”.

Observações:

Transporte por conta do remetente das mercadorias;

Provas:

a) Notas Fiscais de vendas de mercadorias com destinatário de outro Estado e com alíquota interestadual (representam operações de circulação de mercadorias: motivo do ato administrativo de lançamento);

b) declaração, de preposto do suposto destinatário das mercadorias, de que essa empresa não celebrou negócio jurídico com o contribuinte paulista;

c) notificação ao contribuinte paulista para a apresentação de documentos que comprovassem a realização das operações;

d) resposta à notificação sem que fosse demonstrada a realização das operações.

Documentos descritos nas letras “b”, “c” e “d” mostram que o contribuinte não comprovou a ocorrência das operações, embora instado a fazê-lo: fato que é motivo do ato administrativo de lançamento. A presunção relativa do § 3° do art. 23 da Lei 6.374/1989 é “motivo legal” da não-ocorrência de operações interestaduais (motivo do ato administrativo de lançamento). O dispositivo não precisa constar da motivação do ato, já que, “nos atos vinculados, por tratar-se de tipo normativo estrito, a breve descrição do motivo do ato é suficiente para identificação do motivo legal” (SANTI, 2001, p. 110).

O demonstrativo de cálculo do imposto devido poderá ser planilha com dados de Nota Fiscal de venda preenchidos em cada linha, por ordem de data de emissão, e com as seguintes colunas: número da Nota Fiscal, Série, data de emissão, valor total da Nota, base de cálculo do ICMS, valor do ICMS destacado com alíquota de 7% (sete por cento), valor de ICMS calculado com alíquota de 18% (dezoito por cento), valor do ICMS devido (diferença entre o valor do ICMS calculado e o destacado). No final de cada mês do período fiscalizado será inserida linha para cálculo do subtotal do ICMS devido no mês. O valor do ICMS exigido no lançamento será a soma daqueles subtotais.

Em todos os exemplos, a norma individual e concreta de exigência do imposto não será invalidada se a norma individual e concreta de exigência de multa (enunciada separadamente) o for, por:

a) “erro de fato” em seu antecedente (relato da infração em desacordo com as provas);

b) “erro de direito” em seu antecedente (subsunção de relato de infração conforme às provas a classe típica de infrações – descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora – em que o relato não se enquadra);

c) “erro de fato” em seu consequente (erro na “base de cálculo da multa”, elemento quantitativo do consequente) (CARVALHO, 2008a, p. 451);

d) “erro de direito” em seu consequente (erro na “percentagem da multa”, que, assim como o “sujeito ativo” da relação jurídica tributária, é fator compositivo da estrutura normativa que não pode ser encontrado na contextura do ilícito tributário) (CARVALHO, 2008a, p. 452).

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Sobre o autor
Wagner Pechi

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa:: análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6110, 24 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77851. Acesso em: 25 abr. 2024.

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