2 PRINCIPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, DO FEDERALISMO E TEORIA DOS FREIOS E CONTRAPESOS
O Princípio da Separação dos Poderes, desconcentrado da figura de um único governante, foi inicialmente concebido na teoria política de Montesquieu em sua obra “O Espirito das Leis” que serviu de base para a formação da Constituição Norte Americana de 1787, que mais tarde inspirou a Constituição Francesa de 1791 e influenciou sobremaneira a Constituição Brasileira de 1891 em que o Brasil adota a forma de Estado Federado, dando autonomia aos entes federados, se repetindo nas constituições de 1937, 1946, 1967 e 1988.
Pela teoria clássica implantada por Montesquieu, há mecanismos de controle recíproco entre os poderes, os “freios e contrapesos”, portanto, apenas um poder pode controlar outro poder, segundo afirma Norberto Bobbio:
Uma ulterior fase do processo de limitação jurídica do poder político é a que se afirma na teoria e na prática da separação dos poderes. Enquanto a disputa entre estamentos e príncipe diz respeito ao processo de centralização do poder do qual nasceram os grandes Estados territoriais modernos, a disputa sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do poder diz respeito ao processo paralelo de concentração das típicas funções que são de competência de quem detém o supremo poder num determinado território, o poder de fazer as leis, de fazê-las cumpridas e de julgar, com base nelas, o que é justo e o que é injusto. Embora os dois processos corram paralelamente, são mantidos bem diferenciados pois o primeiro tem a sua plena realização na divisão do poder legislativo entre rei e parlamento, como ocorre antes de todos os demais na história constitucional inglesa, e o segundo desemboca na separação e na recíproca independência dos três poderes — legislativo, executivo, judiciário —, que tem sua plena afirmação na constituição escrita dos Estados Unidos da América. Não é um acidente que, para além da célebre exposição da doutrina da separação dos poderes feita por Montesquieu (“Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder” [1748, trad. it. I, p. 274]), a mais límpida e completa exposição da doutrina se encontre em algumas cartas do Federalista atribuídas a Madison, onde se lê que "o concentrar.[1] (grifo nosso)
Conforme dito, o Brasil acolheu como forma de governo o Estado Federado, instrumento político adotado para garantir a forma descentralizada de exercício institucional, devidamente explicitado na Constituição Federal em vigor em seu arts. 1º e 18. O que dá efetividade e harmonia entre as relações institucionais dos entes federados é a repartição das competências estabelecida pelo legislador originário, organizada, autonomamente, em: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Portanto, o Município tem autonomia política e Administrativa, sem que a União e o Estado possam intervir na autonomia político-administrativa no âmbito municipal, com exceção das situais expressamente e taxativamente descritas no texto constitucional; conforme assevera Hely Lopes Meirelles:
(...) Em nenhum outro país se encontra o Município constitucionalmente reconhecido como peça do regime federativo. Dessa posição singular do Município Brasileiro é que resulta a sua ampla autonomia político-administrativa, diversamente do que ocorre nas demais Federações em que o Município é circunscrição territorial meramente.[2]
3 COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO PARA JULGAR AS CONTAS DE PREFEITO
No Brasil o Tribunal de Constas nasce junto com a Republica. A Constituição de 1891 atribuía competência ao Tribunal de Contas para liquidar e verificar a legalidade das contas de receita e despesas antes de serem prestadas ao Congresso Nacional para julgamento, conforme alude o art. 89 nos seguintes termos:
Art 89 - É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso. Os membros deste Tribunal serão nomeados pelo Presidente da República com aprovação do Senado, e somente perderão os seus lugares por sentença.[3]
A Constituição de 1934 ampliou as competências do Tribunal de Contas da União, conferindo a este órgão a função de proceder ao acompanhamento da execução orçamentária, do registro prévio das despesas e dos contratos, proceder ao julgamento das contas dos responsáveis por bens e dinheiro público e oferecer parecer prévio sobre as contas do Presidente da República[4]. A Constituição de 1988 veio a fortalecer o Tribunal de Contas, mas na condição de órgão auxiliar do Poder Legislativo, conforme se pode extrair dos arts. art. 71 caput e 31, §1º do texto Constitucional.
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (grifo nosso)
Art. 31 § 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver. (grifo nosso)
Embora gradativamente o texto constitucional venha ampliando a competência do Tribunal de Contas, atribuindo-lhe maior relevância no controle dos atos administrativo, a Constituição de 1988 reservou parcelar de poder aos poderes devidamente constituídos no controle dos atos administrativos emanados daqueles que exercem a função de Agentes Políticos, legítimos representantes dos anseios populares, conforme se depreende do dos inc. I e II da Constituição Federal, nos seguintes termos:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento; (grifo nosso)
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;(grifo nosso)
Portanto, quando o Tribunal de Contas analisa os atos praticados pelo Servidor Público, stricto sensu, está a analisar os atos praticados pelo servidor no exercício de uma função técnica, sobre esse servidor o Tribunal de Contas tem competência para jugar e aplicar as sanções cabíveis.
Quando o Tribunal de Contas analisa os atos praticados por aquele que exerce a chefia do executivo está a analisar os atos praticados por Agente Político que detém, pela natureza do cargo, o exercício da função política, independente dos atos praticados quando os tem relação com o cargo; atuando como mero auxiliar do Poder Legislativo, na elaboração de relatório técnico. Conforme preceitua a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho quanto aos aspectos do controle político e administrativo, conforme segue:
De um lado, temos o controle político, aquele que tem por base a necessidade de equilíbrio entre os Poderes estruturais da República – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Nesse controle, cujo delineamento se encontra na Constituição, pontifica o sistema de freios e contrapesos, nele se estabelecendo normas que inibem o crescimento de qualquer um deles em detrimento de outro e que permitem a compensação de eventuais pontos de debilidade de um para não deixá-lo sucumbir à força de outro. São realmente freios e contrapesos dos Poderes políticos.
(......)
O controle administrativo tem linhas diversas. Nele não se procede a nenhuma medida para estabilizar poderes políticos, mas, ao contrário, se pretende alvejar os órgãos incumbidos de exercer uma das funções do Estado – a função administrativa. Enquanto o controle político se relaciona com as instituições políticas, o controle administrativo é direcionado às instituições administrativas.
Esse controle administrativo se consuma de vários modos, podendo-se exemplificar com a fiscalização financeira das pessoas da Administração Direta e Indireta; com a verificação de legalidade, ou não, dos atos administrativos; com a conveniência e oportunidade de condutas administrativas etc. Todos os mecanismos de controle neste caso são empregados com vistas à função, aos órgãos e aos agentes administrativos. [5] (grifo nosso)
Podemos verificar a intenção do legislador constituinte originário em distinguir a competência do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas quando da análise dos atos praticados pelo chefe do Poder Executivo, nos seguintes termos:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete
VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; (grifo nosso)
Notadamente, os convênios de repasses voluntários ou de contraprestações mútuas, praticados entre União e Município, se caracterizam como ato complexo e discricionário, a depender da vontade de dois chefes do executivo com finalidade pública, conforme orienta o art. 241 da Constituição Federal, portanto um ato de natureza política sujeito ao controle político (quantos aos aspectos finalísticos objeto do convênio) e de legalidade.
Caso entendamos como órgão competente para julgar as prestações de contas de convênio, entre a União e o Município, o Tribunal de Contas da União por deliberação própria, estaremos atribuindo ao referido órgão de contas status de quarto poder, pois entrará na relação cíclica do sistema Checks and Balances. Caso entendamos como órgão competente o Tribunal de Contas da União para julgar as referidas contas na condição de órgão auxiliar do Poder Legislativo Federal por delegação deste, estaremos diante de uma ruptura com o Federalismo, pois no sistema político adotado historicamente pelo Brasil, o poder delegante (Legislativo Federal) não pode intervir nos atos praticados pelo chefe do Poder Executivo municipal, menos ainda, poderia o órgão delegado o fazer.
Da mesma forma, entender competente o Tribunal de Contas da União para julgamento das referidas prestações de contas de convênio, haveria o rateio da competência para julgamento entre o Tribunal de Contas da União e a Câmara de Vereadores sobre o mesmo fato jurídico, já que a competência do TCU para fiscalização dos referidos repasses restringisse, tão somente, a aplicação dos recursos ao objeto conveniado, por força do art. 71, VI da Constituição Federal; cabendo, a competência para julgamento, conforme dito, quantos aspectos finalísticos e de legalidade a que se destina o convênio, à Câmara Municipal por força do art. 49, X c/c art. 39, II da Constituição Federal; já que o objeto e finalidade específica do convênio são vinculados, conforme alude os dispositivos legais:
Art. § 1º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - convênio - acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação;[6] (grifo nosso)
Art. 52. O convênio deverá ser executado em estrita observância às cláusulas avençadas e às normas pertinentes, inclusive esta Portaria, sendo vedado:
III - alterar o objeto do convênio ou contrato de repasse, exceto no caso de ampliação da execução do objeto pactuado ou para redução ou exclusão de meta, sem prejuízo da funcionalidade do objeto contratado.[7] (grifo nosso)
A análise das contas de convênio firmado entre a União e o Município a partir de um julgamento político pelo Poder Legislativo municipal, encontra amparo no texto constitucional art. 49, X; nos seguintes termos:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional
X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta;
Devendo ser aplicado por simetria aos municípios e com reprodução obrigatória nas Leis Orgânicas, conforme alude a parte final do art. 29 da Constituição Federal.
Ademais a Lei nº 8.443/92 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União), em que elenca a Competência do TCU, em seu art. 1º não traz a possibilidade de julgamento pelo referido órgão de contas do chefe do Poder Executivo municipal, conforme ver-se:
Art. 1° Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta Lei:
I - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos das unidades dos poderes da União e das entidades da administração indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao Erário; (grifo nosso)
Entender de outra forma violaria o Princípio do Juiz Natural aplicado ao Processo Administrativo, pois o Processo Administrativo de prestação de contas de recursos públicos acarreta sanções por demais gravosas ao prestador, tanto de caráter financeiro, quanto civis-patrimoniais, nos direitos políticos e, até mesmo, penais (Decreto-Lei 201/67 Art. 1º XXIII); por estas razões, devem prescindir de ampla defesa e contraditório com normas previamente estipuladas em lei, não podendo lei de caráter sancionatório (Lei nº 8.443/92), revestindo-se de título executivo condenatório, ser aplicada a pessoa estranha ao próprio dispositivo legal, conforme já se manifestou a suprema corte.
Com efeito, o postulado da naturalidade do juízo representa uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório ou da atividade de natureza administrativo-disciplinar, ainda que o domínio natural de sua incidência seja, em princípio, o procedimento de índole judicial.
A essencialidade do princípio do juiz natural impõe, ao Estado, o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários (ou administrativo) investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais ou, como na espécie, das infrações disciplinares.
Na realidade, o princípio do juiz natural reveste-se, em sua projeção político-jurídica, de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em procedimento judicial ou administrativo-disciplinar, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, incide sobre os órgãos do poder incumbidos de promover, judicial ou administrativamente, a repressão penal ou, quando for o caso, a responsabilização disciplinar.;[8] (grifo nosso)