No dia 02 de janeiro de 2020 estrará em vigor a famigerada Lei 13.869/19, que trata dos crimes de abuso de autoridade. Destaque-se que o referido diploma normativo vem a lume em um cenário marcado por um embate entre a classe política brasileira e agentes estatais ligados ao sistema de justiça criminal. É inegável, portanto, a relação existente entre a nova lei e eventuais abusos ocorridos no desenvolvimento da denominada “Operação Lava-jato”.
Tal constatação ganha força se analisarmos os diversos tipos penais constantes na proposta legislativa, inclusive alguns que foram objeto de veto por parte do Presidente da República (v.g. artigos 11, 14 e 17). Ao analisarmos os tipos penais da Lei 13.869/19, nós percebemos que, de um modo geral, são punidas condutas ligadas ao excesso na investigação ou instrução processual (arts. 15, 18, 27 e 33), excesso nos atos privativos da liberdade (arts. 9, 12 e 19), ações voltadas a manipulação da verdade (arts. 16, 22 e 23) e a violação da honra, intimidade e imagem das pessoas (arts. 28 e 38).
Particularmente, embora nos pareça impossível não relacionar a publicação dessa nova lei à “Operação Lava-Jato”, fato é que a inovação legislativa apresenta avanços significativos se comparada a Lei 4.898/65, sempre muito criticada pelo conteúdo extremamente vago de seus tipos penais, o que, de acordo com a maioria da doutrina, caracterizava uma ofensa ao princípio da legalidade, especialmente em sua vertente que exige que a lei penal seja certa e taxativa.[1]
Sob tais premissas, acreditamos que a nova Lei de Abuso de Autoridade, se bem aplicada, não coloca em risco a Justiça, “encabrestando” os agentes públicos ligados à persecução penal, pelo contrário. Isto, pois, no seu artigo 1º, §1º, foi inserido um mecanismo de controle aos eventuais abusos cometidos na sua aplicação, exigindo-se, para a caracterização dos crimes, que as condutas sejam praticadas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Não é outro o entendimento de NUCCI ao fazer uma comparação entre os diplomas legais que trataram da matéria:
Seria muito interessante que alguém conseguisse, comparando os artigos da Lei 4.898/65 com os da Lei 13.869/2019, apontar inconstitucionalidades desta última. A verdade é a seguinte: a) a Lei 4.898/65 tem sido inoperante há muitos anos; b) a Lei 13.869/2019 surgiu para blindar, ainda mais, o agente público. O que era inútil, pois a Lei 4.898/65 não era utilizada, passa a ser inútil e, mais, produtora de uma blindagem jamais vista em qualquer outra lei penal aos agentes da autoridade.[2]
Deveras, não se pode cogitar a prática do crime de abuso de autoridade sem que fique devidamente demonstrado o elemento subjetivo específico previsto na lei e que deve pautar a conduta do agente. Registre-se, ademais, que em caso de dúvida esta deve ser interpretada de forma favorável ao imputado, em respeito ao postulado do estado de inocência.
Feita essa introdução ao tema, focamos no ponto principal desse estudo, que abrange uma primeira análise ao artigo 10, da Lei 13.869/19, onde se pune, com pena de detenção de um a quatro anos, a conduta de “decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.
Destaque-se que o artigo em questão, conforme já exposto, está diretamente ligado à “Operação Lava-Jato”, onde o então juiz Sérgio Moro decretou inúmeras conduções coercitivas de investigados, fazendo com que tal procedimento tivesse sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (ADPFs nº 395 e 444). Ao enfrentar a questão a Corte firmou seu posicionamento pela inconstitucionalidade da condução coercitiva de investigados ou réus para interrogatório, uma vez que o imputado não seria legalmente obrigado a participar desse ato. Contudo, é importante frisar que a decisão do STF se refere exclusivamente à adoção deste procedimento para fins de interrogatório, não abrangendo, portanto, a condução coercitiva para outros atos, como a formalização de reconhecimento pessoal de suspeito ou a oitiva de testemunha recalcitrante.
Considerando que o tipo penal em enfoque adota o termo “decretar”, parcela da doutrina pode entender que apenas os magistrados podem figurar como autores desse crime. [3] Em sentido diverso é o escólio de Rogério Sanches e Rogério Greco, destacando que o delegado de polícia e o promotor de justiça, na presidência de investigações criminais, também podem figurar como autores do crime. Nas lições dos renomados penalistas:
O delito se consuma no momento em que é decretada, isto é, determinada formalmente, intra autos, a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo.
A efetiva condução coercitiva, trazendo a testemunha ou o investigado à presença daquele que a determinou, deve ser considerada um mero exaurimento do crime.[4]
Data máxima vênia, embora concordando que os magistrados não são os únicos sujeitos ativos, mas nos parece que o núcleo “decretar” deve ser interpretado de forma abrangente, tendo o mesmo significado de “determinar”, “mandar” ou “ordenar” a medida em questão, alcançando, assim, outros agentes públicos, como os policiais, por exemplo. A decretação pode ser informal e não necessariamente formalizada “intra autos”. Caso contrário, a fim de burlar a legislação, bastaria que as autoridades determinassem verbalmente as conduções, sem documentação do ato para que ocorresse atipicidade.
Note-se que, nesse contexto, a condução coercitiva representa, sem sombra de dúvidas, uma medida privativa da liberdade e, se decretada em desconformidade com o ordenamento jurídico (como na hipótese do interrogatório de investigado, por exemplo), poderia caracterizar a própria infração penal descrita no artigo 9º da Lei 13.869/19. Isso, é claro, se não houvesse um tipo penal específico, como o do artigo 10, ora em estudo.
Dessa forma, cremos que se um policial, após cumprir um mandado de busca e apreensão em domicílio de investigado, conduzi-lo coercitivamente até a Delegacia de Polícia para ser ouvido nos autos do inquérito policial respectivo, ele responde, ao menos em tese, pelo crime previsto no artigo 10, da nova Lei. Só vale lembrar que em todos os casos em que se vislumbre o abuso de autoridade deve ficar demonstrado o elemento subjetivo do tipo (art.1º, §1º).
Destaque-se que o artigo 10 deve ser interpretado como contendo duas condutas, uma em sua primeira parte, que se refere à determinação da condução coercitiva de testemunha ou investigado, claramente voltada com especial escopo para a Autoridade Policial e policiais em geral, já que não há “investigado” em juízo e sim acusado ou réu. Somente na segunda parte é que a referência da lei é feita exclusivamente a magistrados, na medida em que trata da condução indevida porque não houve prévia intimação de comparecimento “juízo”. É preciso ainda notar que a lei, em sua pobreza redacional, utiliza o termo “intimação” quando, na verdade, se trata de “notificação”. As intimações, como de trivial conhecimento, se referem a atos já praticados, enquanto que as notificações se referem a atos que ainda serão praticados, como é o caso do comparecimento de testemunha ou investigado na Delegacia ou em Juízo. Não obstante, esse equívoco é bastante comum em vários textos legais pátrios, inclusive no Código de Processo Penal e até mesmo no Código de Processo Civil, de modo que acaba não gerando maiores problemas práticos. [5]
Marcado nosso posicionamento sobre quem pode figurar como sujeito ativo do crime, passamos a focar nossa atenção no seu sujeito passivo. Nos termos do tipo penal, a conduta punida sempre irá recair sobre “testemunha” ou “investigado”. Com efeito, em respeito ao princípio da legalidade, que veda a analogia in malam partem, é atípica a conduta de decretar a condução coercitiva de acusado, ou seja, pessoa já submetida ao processo. Neste ponto discorda o autor Eduardo Cabette, com o seguinte fundamento:
O réu também poderá ser vítima do magistrado se conduzido ilegalmente, por exemplo, para o ato de interrogatório, pois nos parece que, embora a redação legal seja sofrível, também o magistrado deve responder por uma condução coercitiva decretada de forma “manifestamente descabida”. Ademais, nesse caso do interrogatório, por exemplo, mesmo a prévia intimação do acusado não servirá para justificar sua condução por ordem judicial. Ocorre que a lei disse menos do que pretendia (“lex minus dixit quam voluit”). É mais do que claro que não poderia ser fato atípico uma condução coercitiva de acusado ou réu no bojo do processo, enquanto seria aquela realizada durante o Inquérito Policial ou outra forma de investigação. A palavra “investigado” há que ser, neste caso, interpretada de forma ampla, tal como já se decidiu em precedente do STJ quanto ao crime de obstrução da justiça nos casos de crime organizado, quando a Lei 12.850/13 faz menção apenas à “investigação”, mas deve abranger também a obstrução do processo (STJ, HC 487.962, 5ª. Turma). [6] No mesmo diapasão a palavra “testemunha” deve ser interpretada no sentido amplo de “prova oral”, abrangendo também eventual condução coercitiva manifestamente ilegal da vítima. Seria absurdo que a condução abusiva de testemunha fosse incriminada e a vitimização secundária do sujeito passivo do crime passasse em brancas nuvens. Portanto, entende-se que o legislador quis se referir à “testemunha” em sua ampla acepção que se refere à prova oral em geral. Para além de justa e coerente, essa interpretação do “testemunho” abrangendo a palavra do ofendido em um sentido amplo é comum a autores clássicos que se debruçaram sobre o tema das provas no processo penal, tais como Malatesta e Mittermaier, os quais tratam explicitamente em suas obras do “testemunho do ofendido”. [7]
Retomando a questão da partição do artigo sob comento, para a melhor compreensão do alcance da norma, devemos dividi-la em duas partes. Isso porque o tipo penal estabelece duas condições alternativas para a sua incidência. Pune-se, destarte, a condução coercitiva de investigado ou testemunha: a-) manifestamente descabida; e b-) sem prévia intimação de comparecimento em juízo.
Na primeira hipótese a condução coercitiva é decretada em desacordo com o ordenamento jurídico (elemento normativo do tipo), como, por exemplo, nos casos em que sua adoção objetiva a formalização do interrogatório, o que, conforme exposto, vai frontalmente de encontro com a jurisprudência do STF.
Já a segunda condição de incidência do tipo exige que a condução coercitiva seja determinada “sem prévia intimação de comparecimento em juízo” (grifamos). Aqui, por uma evidente falha legislativa, o dispositivo se torna praticamente inaplicável ao investigado por fazer menção expressa à necessidade de prévia intimação de comparecimento “em juízo”.
Explica-se! Conforme sustentamos acima, somente o “investigado” e a “testemunha” podem ser alvo de condução coercitiva criminosa. Ocorre que o “investigado”, ao menos em regra, não é intimado para comparecer perante o juiz na fase de investigação. Logo, diante desta condicionante, só se pode concluir que o investigado só será vítima do crime do artigo 10 se a condução coercitiva for manifestamente descabida.
É evidente que em se tratando do “investigado” em uma interpretação restritiva, ou seja, referindo-se somente àquele objeto de uma investigação criminal na sua fase pré – processual, conforme entende o coautor desse texto, Francisco Sannini. Agora, em se tratando, no caso de uma interpretação mais ampla, do acusado ou réu, como já visto, no entendimento de Eduardo Cabette, poderá ocorrer o crime perpetrado por Juiz de Direito, em casos onde seja cabível a condução, como para fins de reconhecimento, exame de corpo de delito etc., caso não haja prévia intimação desobedecida. Já no caso de interrogatório judicial, em qualquer situação, já que o réu tem direito ao silêncio e à não autoincriminação. Exatamente o fato de que a interpretação restritiva do que seja o “investigado” leva a uma lacuna certamente indesejada pelo legislador, está a alicerçar a indicação de cabimento de uma interpretação mais ampla.
Para o autor Francisco Sannini, de maneira ilustrativa, valendo -se do mesmo exemplo do cumprimento de mandado de busca e apreensão, se o investigado for conduzido coercitivamente até a Delegacia de Polícia para participar do procedimento de reconhecimento pessoal, independentemente de prévia intimação, não há que se falar no crime em questão, uma vez que a parte final do dispositivo só pune a condução coercitiva adotada sem prévia intimação de comparecimento em juízo. Anote-se, nesse caso, nova discordância do autor Eduardo Cabette. Na verdade, o tipo penal prevê duas condutas criminosas, a condução sem prévia intimação em juízo e aquela manifestamente descabida. Ora, é também manifestamente descabida e abusiva a condução coercitiva imediata do suspeito à Delegacia, sem prévia intimação para o ato de reconhecimento ou qualquer outro, salvo em casos, por exemplo, de prisão em flagrante. É claro que se o suspeito acompanhar voluntariamente os policiais para a prática do ato, não há falar em crime, assim como em não havendo o elemento subjetivo específico previsto no artigo 1º., § 1º., da legislação em comentário.
Pelas mesmas razões, é entendimento de Francisco Sannini que se o acusado – que, vale lembrar, não é “investigado” – for conduzido coercitivamente perante o juiz para o mesmo procedimento de reconhecimento pessoal, independentemente de intimação prévia, não restará caracterizada a infração penal. Neste ponto reitera-se que, segundo entendimento divergente do coautor Eduardo Cabette, haveria sim a tipificação do abuso se não houver prévia intimação desobedecida, já que o acusado ou réu não deixa de, num sentido amplo, ser considerado um “investigado” durante a instrução criminal. Lembremos que a “persecução criminal” tem duas fases e em ambas o que se procura é apurar os fatos, reconstruir a micro – história do crime. Como já reconheceu o STJ (vide supra), em todo esse percurso há uma “investigação”.
Conclui-se, pois, que para evitar esse tipo de discussão e aclarar o âmbito de incidência da norma, bastaria que o legislador punisse a condução coercitiva de imputados em geral, vítimas ou testemunhas, em desacordo com o ordenamento jurídico. Sob tais premissas, não temos dúvidas, o bem jurídico tutelado, qual seja, o regular funcionamento da Administração Pública e da Justiça e, secundariamente, a liberdade de locomoção, estariam devidamente resguardados.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
CRIME de embaraçar investigação previsto na lei do crime organizado não é restrito à fase do inquérito. Disponível em http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Crime-de-embaracar-investigacao-previsto-na-Lei-do-Crime-Organizado-nao-e-restrito-a-fase-do-inquerito.aspx , acesso em 24.11.2019.
CUNHA, Rogério Sanches. GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade: Lei 13.869/2019 – Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2019.
FERRAJOLI, Luigi.Direito e Razão. Trad. Paula Zomer, et. al. São Paulo: RT, 2002.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da Prova em Matéria Criminal. Trad. Herbert Wüntzel Heinrich. Campinas: Bookseller, 1997.
NUCCI, Guilherme de Souza. Lei de Direito e Razão. Trad. Ana abuso de autoridade blinda ainda mais o agente público. Disponível: http://www.guilhermenucci.com.br/artigo/lei-de-abuso-de-autoridade-blinda-ainda-mais-o-agente-publico . Acesso em 21.11.2019.
[1] Nesse sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 25. E por todos: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Paula Zomer, et. al. São Paulo: RT, 2002, p. 305.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Lei de Direito e Razão. Trad. Ana abuso de autoridade blinda ainda mais o agente público. Disponível: http://www.guilhermenucci.com.br/artigo/lei-de-abuso-de-autoridade-blinda-ainda-mais-o-agente-publico . Acesso em 21.11.2019.
[3] MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 79.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade: Lei 13.869/2019 – Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 101.
[5] Expondo as distinções doutrinárias ente intimação e notificação e concluindo pela ausência de prejuízo ante a inobservância desse detalhe: Cf. MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 895 – 896.
[6] CRIME de embaraçar investigação previsto na lei do crime organizado não é restrito à fase do inquérito. Disponível em http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Crime-de-embaracar-investigacao-previsto-na-Lei-do-Crime-Organizado-nao-e-restrito-a-fase-do-inquerito.aspx , acesso em 24.11.2019.
[7][7] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 403. MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da Prova em Matéria Criminal. Trad. Herbert Wüntzel Heinrich. Campinas: Bookseller, 1997, p. 257.