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O juiz das garantias e o garantismo penal hiperbólico monocular

08/01/2020 às 14:20
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O juiz das garantias consiste em inovação trazida pela Lei 13.964/19. Questiona-se sua eficácia diante da atual realidade das comarcas brasileiras.

1. INTRODUÇÃO

A Lei nº 13.964/19 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto do Juiz das Garantias. Esta nova função separa o magistrado responsável pela condução do inquérito policial daquele que irá realizar a instrução processual.

Todavia, o novo instituto vem causando polêmicas entre os juristas no Brasil. De um lado estão aqueles que defendem a sua implementação por entenderem reforçar o caráter do sistema acusatório no processo penal, como sendo garantia a mais para o cidadão. Por outro lado, existem aqueles que afirmam ser uma manifestação do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular, gerando mais morosidade e dificuldade para o andamento do processo judicial.

Este trabalho irá abordar justamente este último posicionamento, no sentido de verificar se o Juiz das Garantias enquadra-se ou não no conceito do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular.

Para a realização desta análise, primeiramente será feita breve apresentação deste novel instituto, destacando os dispositivos mais pertinentes para o presente trabalho. No tópico seguinte, será feita explanação acerca do Garantismo Penal e das suas variações. Por fim, será abordado se o Juiz das Garantias faz parte ou não do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular, apresentando-se, por oportuno, situações que fundamentam a conclusão apresentada.


2. A LEI Nº 13.964/19 – O JUIZ DAS GARANTIAS

O processo penal, na sistemática atual, é fruto de uma longa evolução doutrinária e estrutural. Numa análise perfunctória, observa-se que o avanço das teorias do processo, no tocante ao reforço do devido processo legal, possuiu como uma de suas primazias, justamente, a participação do magistrado no interregno processual.

Primeiramente o, Juiz era responsável pela acusação, instrução e defesa do réu no mesmo processo. Posteriormente, a autoridade judiciária passou a ter o dever de agir com a maior imparcialidade possível, devendo se afastar, inclusive, da fase inquisitorial, cabendo esta tarefa a outro órgão previamente estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico[2].

Perceba que, com o passar dos tempos, chegou-se a conclusão de que um processo justo somente seria alcançado com a equidistância do magistrado em relação as partes, cabendo ao mesmo somente garantir a lisura do devido processo legal, sendo respeitado as garantias constitucionais previstas no ordenamento pátrio.

Dentro desta perspectiva, nasce a novel figura do Juiz das Garantias, sob a égide da lei nº 13.964/19 que, ao alterar o Código de Processo Penal, buscou reafirmar o sistema acusatório adotado no Brasil. Cabe ao magistrado, como o próprio instituto vem a dizer, a observância das garantias processuais dentro do âmbito do inquérito policial, como se pode observar no art. 3º-A e 3º-B[3].

O art. 3º-C prevê que a competência do Juiz das Garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, sendo cessada no recebimento da denúncia ou queixa. Portanto, observa-se que, não existirá o referido instituto no âmbito do Juizado Especial, em virtude da simplicidade, celeridade e economia processual que rege os juizados especiais.

Ademais, as decisões proferidas pelo Juiz das Garantias, poderão ser revistas pelo Juiz da Instrução e Julgamento (art. 3º-C, §2º), reforçando o caráter garantista do instituto, por ocasião da possível dupla análise da legalidade dos procedimentos adotados na fase do inquérito policial.

O art. 3º-D dispõe que o magistrado que tiver atuado nas competências elencadas no art. 4º e 5º do Código de Processo Penal, ficará impedido de atuar no processo. Portanto, caso o juiz tenha atuado no exercício da polícia judiciária, encontraria o impeditivo legal para assumir a condução do processo penal na figura de magistrado.

Existe certa dubiedade na norma referida, em virtude de não estar clarividente se ela se aplicaria a pessoas que exerceram o cargo de autoridade policial em período anterior a promulgação da lei. Contudo, com a devida vênia aos que entendem diferente, este dispositivo deve ser lido conjuntamente com o art. 2º, do CPP que estabelece a imediatidade da aplicação das normas processuais, sendo aplicado posteriormente ao fim do período do vacatio legis. Dessa forma, os magistrados impedidos de atuarem no processo são aqueles que atuaram na atividade policial após o fim do lapso temporal para a vigência da norma processual.

Outrossim, o legislador ciente do fato de que as comarcas do país são compostas, majoritariamente, por apenas um juiz, criou uma regra de aplicação aos Tribunais dos respectivos entes da Federação. O parágrafo único do art. 3º-D, prevê que nas comarcas em que funcionem apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio sendo designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal (Art. 3º-D, parágrafo único c/c art. 3º-E).


3. O GARANTISMO PENAL HIPERBÓLICO MONOCULAR

O direito penal, dentro das várias concepções existentes acerca da sua função na sociedade, possui a ideia ser uma garantia ao cidadão. Cléber Masson[4] aduz com maestria que o direito penal “funciona como um escudo aos cidadãos, uma vez que só pode haver punição caso sejam praticados os fatos expressamente previstos em lei como infração penal”.

Esta concepção surgiu com os ideários do ilustre doutrinador Luigi Ferrajoli que, dentro de sua obra Direito e Razão, cria um modelo a ser seguido pelos juristas para a aplicação da lei dentro do ordenamento jurídico, sendo utilizado desde a concepção da norma até a aplicação das garantias inerentes à atividade jurisdicional[5].

Dentro desta perspectiva, Ferrajoli elenca dez axiomas fundamentais para o exercício do garantismo penal, são elas: 1) Nulla poena sine crimine: princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) Nullum crimen sine lege: princípio da reserva legal; 3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate: princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) Nulla necessitas sine injuria: princípio da lesividade ou da ofensividade do resultado; 5) Nulla injuria sine actione: princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) Nulla actio sine culpa: princípio da culpabilidade ou da responsabilidade; 7) Nulla culpa sine judicio: princípio da jurisdicionalidade; 8) Nullum judicium sine accusatione: princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) Nulla accusatio sine probatione: princípio do ônus da prova ou da verificabilidade; e 10) Nulla probatio sine defensione: princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.

Com estes dez princípios estaria configurada o modelo-limite para o exercício das garantias no âmbito penal e processual penal. Ademais, a teoria garantista encontra fundamento nos preceitos da proibição da proteção insuficiente, ou seja, o Estado possui o dever de garantir o exercício de determinado direito, contudo, essa garantia não pode ser ínfima/insuficiente para o seu uso. Pensar de outra forma tornaria a norma protetiva inócua e sem finalidade.

Por outro lado, o Estado também não pode cometer excessos na proteção normativa, pois poderia inviabilizar por completo o próprio exercício do poder punitivo estatal gerando o sentimento de impunidade, o que seria prejudicial para a sociedade. Portanto, o garantismo penal encontra sustentáculo no respeito as regras e princípios que regem o direito penal e processo penal, pautando-se no equilíbrio razoável/proporcional entre os direitos e deveres sendo, portanto, uma garantia para o cidadão em face do Estado.

Posto isto, a doutrina moderna vem criando ramificações da teoria garantista elaborada por Ferrajoli, surgindo, em suma, duas derivações: o Garantismo Penal Binocular e o Garantismo Penal Hiperbólico Monocular[6].

O Garantismo Penal Binocular ou Integral encontra fundamento na ideia apresentada acima no tocante a aplicação da proporcionalidade e razoabilidade no direito penal e processual penal. Além disso, utiliza-se a ideia da igualdade entre os sujeitos da relação jurídica-criminal. Dentro desta perspectiva, as garantias e instrumentos existentes e a serem criadas no ordenamento jurídico pátrio deve ser pensada não somente no réu ou na vítima, mas nos dois lados (autor e réu). Neste ponto que está presente a ideia binocular.

Em contrapartida, o Garantismo Penal Hiperbólico Monocular busca resguardar as garantias para somente um dos lados (monocular) do processo criminal, ou seja, o réu. Outrossim, são criados instrumentos protetivos em demasia (hiperbólico) no sistema processual criando um óbice para o próprio trâmite do processo. Observa-se, portanto, que a teoria acaba por violar os princípios da proibição do excesso e de proporcionalidade/razoabilidade, podendo gerar gravames para o devido processo legal.


4. O JUIZ DAS GARANTIAS FAZ PARTE DO GARANTISMO PENAL HIPERBÓLICO MONOCULAR?

Como ficou demonstrado no tópico anterior, as garantias previstas no ordenamento jurídico são em favor do cidadão. Ademais, o caráter protetivo da norma deve pautar-se, dentre outros, nos princípios da proibição do excesso, da proibição da proteção insuficiente e da proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de cercear a efetividade da garantia.

Sob os aspectos dos princípios da proibição do excesso e da proibição insuficiente, não encontramos ofensa do Juiz das Garantias as referidas normas. Ora, o instituto criado pelo legislador vem por reforçar o caráter acusatório do processo penal determinado pela Constituição Federal. O juiz da instrução processual, ao ser afastado do inquérito, reforça a sua imparcialidade e, portanto, estará mais apto para a prolação de decisões justas.

Entretanto, sob a ótica do princípio da proporcionalidade e razoabilidade podemos encontrar o Juiz das Garantias dentro da ideia do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular. Neste panorama, observa-se que alguns meios criados para instrumentalizar o referido instituto pode vim a criar mais dificuldades para o trâmite processual.

Podemos perceber isso, por exemplo, na implementação do rodízio de magistrados nas comarcas onde possui apenas um juiz. Com a novel lei, o Juiz das Garantias será determinado através de uma lista de rodízio pré-estabelecida pelo respectivo Tribunal. Contudo, o Código de Processo Penal prevê que a Competência para julgar o processo é definida, dentre outras, pelo lugar da infração (art. 69, I). Tal razão para isso está no fato da proximidade do magistrado ao local do crime, o que facilita a apreciação dos fatos, da produção de provas e do exercício da ampla defesa e do contraditório (as partes estariam próximas do magistrado).

Para solucionar este conflito aparente, o Juiz de Garantias deverá ser aquele fora do local da infração, permanecendo o juiz do local da infração como competente para julgar o processo. Por exemplo: Um crime ocorrido em Itaituba/PA poderá ter o Juiz de Garantias de Novo Progresso/PA na condução do INQUÉRITO, mas será JULGADO pelo juiz de Itaituba (local da infração).

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Assim, pode-se chegar a alguns problemas que atingirão o próprio réu, pois o Juiz das Garantias que irá acompanhar o inquérito estará em comarca diversa do local da infração, dificultando o acesso do réu ao inquérito, em virtude da distância. Dessa forma, diferentemente da atual aplicação, poderá acontecer a situação do acusado ter conhecimento do conteúdo do inquérito somente na fase judicial. Perceba, que a garantia criada pelo legislador pode ter o efeito revés ao pretendido, prejudicando aquele que devia ser o beneficiado.

Outro exemplo da implementação desproporcional/desarrazoada do instituto, está afeta ao Poder Judiciário. O art. 20, da Lei nº 13.964/19, estabelece que, dentre outros, o Juiz das Garantias deve ser implementado em até 30 (trinta) dias. Não se pode vislumbrar neste dispositivo legal que houve razoabilidade na sua edição. A criação desta nova garantia irá modificar substancialmente a estrutura e composição do Poder Judiciário no país, sendo necessário uma adoção estratégica para a reorganização do poder estatal.

Considerado a realidade brasileira, no tocante aos órgãos do Judiciário no interior, onde por muitas vezes nem sequer existem magistrados nas comarcas, o prazo estabelecido para a introdução do Juiz das Garantias no sistema processual é demasiadamente exíguo, não sendo, portanto, razoável.

Outro ponto controvertido na lei está no fato de um dos poderes concedidos ao Juiz das Garantias para o procedimento do inquérito policial. O art. 3º-B, XIV, introduzido no Código de Processo Penal, estabelece que cabe ao Juiz das Garantias decidir sobre o recebimento da denúncia. O legislador buscou, com a criação do instituto, afastar o magistrado que conduziu o inquérito, em virtude de ele estar, teoricamente, mais propenso a condenar pela "contaminação" dos elementos probatórios produzidos na fase inquisitorial.

Portanto, mostra-se contraditório o dispositivo acima mencionado em relação ao fim delineado pelo legislador infraconstitucional. Ora, se a ideia era tornar o processo mais justo e imparcial, deveria caber ao Juiz da Instrução decidir pelo recebimento ou não da denúncia e não ao Juiz das Garantias. O Poder Legislativo acabou por trocar, neste ponto, “seis por meia dúzia”.

Esses são alguns pontos em que podem encaixar o Juiz das Garantias como manifestação do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular no ordenamento jurídico brasileiro.


5. CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que o Juiz das Garantias possui importância e deve ser bem recebido pelo sistema processual brasileiro. Entretanto, a instrumentalização criada pelo legislador pátrio não foi a mais adequada, o que viola a proporcionalidade/razoabilidade no trâmite processual sendo, portanto, uma manifestação do Garantismo Penal Hiperbólico Monocular. A ideia foi excelente, mas a sua materialização, nem tanto.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 03 de janeiro de 2020;

_____. Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 03 de janeiro de 2020;

FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Disponível em: <https://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html>. Acesso em: 03 de janeiro de 2020;

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal: volume único. 4.ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016;

MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. vol.1. 11.ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Método, 2017.


Notas

[2] LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal: volume único. 4.ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016.

[3]“ Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:”

[4] MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. vol.1. 11.ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Método, 2017.

[5] FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Disponível em: <https://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html>. Acesso em: 03 de janeiro de 2020.

[6] MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. vol.1. 11.ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Método, 2017.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Felipe Castro. O juiz das garantias e o garantismo penal hiperbólico monocular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6034, 8 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78814. Acesso em: 22 dez. 2024.

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