PALAVRAS CHAVE: transgressões disciplinares militares, disciplina, hierarquia, Organizações Policiais Militares, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, ditadura, estado democrático de direito, desmilitarização, advogados, prisão, direitos humanos, Estatuto Repressivo Disciplinar, Recolhimento Disciplinar, medida cautelar.
INTRODUÇÃO
Ao apagar das luzes do ano de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, sem vetos, na quinta-feira, dia 26 de dezembro, a Lei 13.967/19, que vedou medida privativa e restritiva de liberdade nos casos de transgressões disciplinares praticadas por policiais militares e bombeiros militares em todo o Brasil, alterando, para tanto, a redação do artigo 18 do Decreto-lei 667, de 1969, que trata da reorganização das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos estados e do Distrito Federal.
Embora tenha sido alardeado pela imprensa tratar-se de uma lei do Presidente da República, em verdade, originou-se de projeto (PL 7645/14) apresentado pelo deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) e pelo ex-deputado Jorginho Mello em 2014.
O texto havia sido aprovado pelo Senado em 11 de dezembro.
Segundo os autores da proposta, os deputados federais Subtenente Gonzaga (PDT-MG) e Jorginho Mello (PL-SC), "a valorização dos policiais e bombeiros militares passa necessariamente pela atualização dos seus regulamentos disciplinares, à luz da Constituição cidadã de 1988, impondo, por consequência, sua definição em lei estadual específica, com fim da pena de prisão para punições de faltas disciplinares, o devido processo legal, o direito à ampla defesa, ao contraditório e o respeito aos direitos humanos" (sic).
Além disso, continuam os parlamentares, “as normas deverão respeitar a dignidade da pessoa humana; a legalidade; a presunção de inocência; o devido processo legal; o contraditório e a ampla defesa; a razoabilidade e a proporcionalidade”.
Estabelece, por fim, a novatio legis, que os estados e o Distrito Federal têm doze meses para regulamentar e implementar a lei.
Na justificativa do projeto, os autores apontam que o Decreto 667/1969 foi editado ainda durante o período da ditadura militar. "No entanto, 25 anos depois, a cidadania ainda não chegou para os policiais e bombeiros militares". (Sic)
Ainda, segundo os mesmos parlamentares, decretos estaduais mantêm a prisão para punir faltas disciplinares, "sem que seja necessário sequer o devido processo legal". "Basta uma ordem verbal do superior hierárquico", completam.
De acordo com os deputados, as faltas disciplinares muitas vezes "não vão além de um uniforme em desalinho, uma continência malfeita, um cabelo em desacordo, um atraso ao serviço, entre tantas aberrações".
Pois bem. Esse o panorama que envolveu o surgimento dessa nova Lei que mudará profundamente a administração das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares em todo o Brasil.
Entrementes, não podemos nos furtar ao dever de oferecer uma visão essencialmente jurídica e desapaixonada em relação ao texto dessa nova lei que nasce, já em meio a uma nuvem de controvérsias.
Por certo, nossos comentários não agradarão a todos, mas também é certo que as opiniões em contrário em muito contribuirão para enriquecimento do debate necessário à melhor aplicação da novatio legis sub lumine.
I – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 SEMPRE RECEPCIONOU ABERTAMENTE A PRISÃO DISCIPLINAR DE MILITARES.
Ao estabelecer o regramento primário acerca da prisão no Brasil, a Carta Política Fundamental de 1999 estabelece, em seu artigo 5º, inciso LXI, que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Embora o texto seja extremamente claro, parece-nos interessante sublinhar que a Constituição Federal, nesse particular, parece haver separado os brasileiros em dois grupos, a saber: civis e militares. Para os primeiros, só caberá prisão (i) em flagrante delito ou (ii) mediante mandado escrito e fundamentado, expedido por juiz competente. Já, em relação ao segundo grupo de brasileiros, os militares, excepcionalmente, a prisão será admitida também nos casos de (i) transgressão militar ou (ii) crime propriamente militar, definidos em lei.
Isto não quer dizer, por outro lado, que a prisão, enquanto sanção disciplinar, possa ser imposta sem os auspícios do due process of law, conforme determina expressamente o texto constitucional, verbis:“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.[1]
Daí, impossível afirmar que, no Brasil pós 1988, ainda possa existir imposição de prisão disciplinar a militares sem a proteção do contraditório e da ampla defesa, que são garantias fundamentais, corolários do devido processo legal. Seria o mesmo que admitir prática criminosa no seio da Administração militar nos tempos de hoje, o que, obviamente, afigura-se difícil de crer.
Em qualquer lugar do nosso país, o Poder Judiciário está atento e vigilante em relação a eventuais práticas abusivas da administração militar, sendo certo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”[2]
Não é crível, neste caminhar, sanção disciplinar de qualquer natureza ou espécie possa ser aplicada hodiernamente a policial militar ou bombeiro militar sem os benefícios do contraditório e da ampla defesa.
Crer no contrário, seria imputar ao Poder Judiciário e ao Ministério Público (fiscal da lei) a pesada pecha da inércia e leniência.
Falacioso é o argumento de que a valorização dos policiais e bombeiros militares passa necessariamente pelo fim da pena de prisão para punições de faltas disciplinares.
Já escrevemos em outra oportunidade que há diferenças profundas que extremam civis e militares. Aqueles convivem dentro de relações de horizontalidade, estes, integram organizações, cujas bases são a hierarquia e a disciplina, ou seja, a verticalidade relacional e o primado do pronto cumprimento do dever.[3]
Sobre esse assunto, são sempre oportunas as palavras de Mario Pimentel Albuquerque, Procurador da República, em alentado parecer ofertado nos autos de uma ação de habeas corpus, ao afirmar que “Princípios democráticos são muito bons onde há relações sociais de coordenação, mas não são em situações específicas, onde a subordinação e a obediência são exigidas daqueles que, por imperativo moral, jurídico ou religioso, as devem aos seus superiores, sejam aqueles, filhos, soldados ou monges. [...] Da mesma forma que a vocação religiosa implica o sacrifício pessoal e do amor próprio – e poucos são os que a têm por temperamento – a militar requer a obediência incontestada e a subordinação confiante às determinações superiores, sem o que vã será a hierarquia, e inócuo o espírito castrense. Seu um indivíduo não está vocacionado á carreira das armas, com o despojamento que ela exige, que procure seus objetivos no amplo domínio da vida civil, onde a liberdade e a livre-iniciativa constituem virtudes.[4]
É necessário dizer; todavia, que, mesmo na vida civil, o acatamento à autoridade legalmente constituída é conduta exigível de todo cidadão; caso contrário, o Código Penal não puniria a desobediência.
Pois bem. Dizendo de outro modo, a vida de caserna impõe aos militares um moto proprio de vida que em muito se difere da administração pública civil, sem que se constitua necessariamente em modo indigno.
Sanções disciplinares privativas de liberdade não deitam raízes no “período da ditadura”, como poderiam imaginar os mais incautos, mas na própria disciplina que Roma impingia no efetivo de suas Legiões.
A propósito, quando um romano se alistava para o serviço militar, fazia um juramento militar conhecido como "sacramentum", originalmente para o Senado e o povo romano e, mais tarde, para o general e para o imperador.
O "sacramentum" afirmava que ele cumpriria as condições de seu serviço sob pena inclusive de morte. A disciplina no exército era extremamente rigorosa para padrões modernos e um general tinha o poder de executar sumariamente qualquer soldado sob seu comando.
Naturalmente, os padrões civilizatórios modernos impõem humanidade no tratamento do militar alistado, devendo ser proibidas penas disciplinares de caráter desumano, como a pena de chibatada, por exemplo, abolida da Marinha do Brasil no início do Século XX.
A pena disciplinar de prisão, no entanto, na ótica constitucional, nunca foi considerada desumana ou atentatória à dignidade humana.
Daí, por que a nova ordem constitucional fundada em 1988, chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, não repudiou a prisão de militares em razão de transgressões disciplinares previstas em lei.
II – DA VIGÊNCIA E APLICAÇÃO DA LEI Nº 13.967/19
De acordo com a Lei de introdução às normas do direito brasileiro (Art. 1º), “Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.
Ocorre que a Lei nº 13.967/19 estabelece em seu artigo 4º vigência a partir da data da publicação, ou seja, 26 de dezembro de 2019.
Isto quer dizer muito porque, dando nova redação ao artigo 18 do Decreto 667/19, está vedada, desde aquela data, medida privativa e restritiva de liberdade a policiais militares e bombeiros militares em todo o Brasil, muito embora os Estados e o Distrito Federal tenham o prazo de 12 (doze) meses para regulamentar e implementar essa Lei.
Há inúmeras implicações jurídicas neste sentido. A primeira delas diz respeito aos Procedimentos Disciplinares já decididos, cuja solução aplicou ao militar estadual ou bombeiro militar sanção privativa de liberdade e da qual já não caiba mais recurso, mas que não tenha havido o cumprimento do corretivo. Seria, pari passu com o processo penal, o mesmo que a execução da sanção imposta. Poderia o militar ser posto a cumprir o corretivo de privação ou restrição de liberdade? Entendemos que se impõe a resposta negativa em razão da vigência da Lei proibitiva da medida.
Situação semelhante é aquela que se refere aos casos em que o militar já tenha iniciado o cumprimento de corretivo antes do início da vigência da lei sob comento. Nesse caso, o ato sancionatório imposto se aperfeiçoou completamente antes do início da vigência da lei e, portanto, deve prevalecer até o final, vez que não se afigura inconstitucional, como já dissemos alhures.
Muito embora os Estados e o Distrito Federal tenham 12 (meses) para regulamentação e implementação dessa Lei, é certo que tal providência deverá ser adotada com a urgência que o caso requer, já que, sem ela, afigura-se virtualmente impossível punir transgressões de natureza média e grave, sem os apenamentos disciplinares agora legalmente vedados.
Pior. A Administração Militar não poderá sancionar policiais militares e bombeiros militares com punições disciplinares que não estejam previstas nos respectivos estatutos repressivos, como, por exemplo, suspensões e multas.
Surpreendentemente, acaba de ser prolatada decisão nos autos do habeas corpus nº. 0000020-33.2020.8.16.0013, impetrado perante a Vara da Auditoria da Justiça Militar Cível de Curitiba/PR, ainda enquanto estava sendo concluído o presente artigo, concedendo medida liminar para determinar a imediata colocação em liberdade de policial militar que havia sido posto para cumprir punição disciplinar privativa de liberdade, logo após a publicação da Lei 13.967/2019. A decisão data de 03 de janeiro de 2020.
Cremos que muitas outras decisões judiciais neste mesmo sentido seguirão a esta porque a partir de 26 de dezembro de 2019 policiais militares e bombeiros militares não poderão mais ser punidos disciplinarmente com privação de liberdade.
III – DO RECOLHIMENTO DISCIPLINAR EM FACE DA NOVEL VEDAÇÃO LEGAL DE MEDIDAS DE PRIVAÇÃO OU RESTRIÇÃO DE LIBERDADE DOS MILITARES DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL.
Em alguns Estados, como São Paulo, por exemplo, o Estatuto Repressivo Disciplinar da Polícia Militar prevê a hipótese de “recolhimento de qualquer transgressor à prisão, sem nota de punição publicada em boletim quando houver indício de autoria de infração penal e for necessário ao bom andamento das investigações para sua apuração ou quando for necessário para a preservação da ordem e da disciplina policial militar, especialmente se o militar do Estado mostrar-se agressivo, embriagado ou sob ação de substância entorpecente”[5].
O enfrentamento de tal questão exige uma acurada leitura do caput do artigo 18 do Decreto nº 667/69, porque ali reside o mens legis da norma, que é definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares.
Em se tratando de recolhimento disciplinar, que é medida cautelar incidente sobre a pessoa do militar do Estado, prescinde do devido processo legal porque sua natureza é de urgência.
Ao contrário da prisão pena, cuja finalidade essencial é repressiva, essa modalidade tem aplicação durante a persecução penal ou administrativa, podendo ser decretado o cerceamento da liberdade do indiciado ou réu (ou militar investigado) antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória ou da apuração da responsabilidade administrativa, em situações excepcionais descritas em lei.
Constitui, sua decretação exceção ao princípio constitucional da presunção de inocência, daí a demonstração da sua real necessidade durante o inquérito policial militar ou a instrução processual.
Não se trata, portanto, o Recolhimento Disciplinar, de apenamento de uma transgressão disciplinar, mas uma tutela de urgência em relação a uma investigação em curso ou no caso do militar apresentar comportamento potencialmente nocivo à disciplina e hierarquia, além do caso de se encontrar embriagado o militar do Estado.
Na seara administrativa se assemelha, pois, à própria prisão preventiva.
Sendo assim, respeitando-se doutas opiniões em contrário, entendemos que a alteração legislativa promovida no artigo 18 do Decreto 667/69 que veda medidas de privação de liberdade de policiais militares e bombeiros militares não alcança o Recolhimento Disciplinar.
IV – CONCLUSÃO
Estados que já possuem um Estatuto Disciplinar consentâneo com a Constituição Federal de 1988 terão pela frente o único desafio de substituir as sanções disciplinares de natureza privativa ou restritiva de liberdade por outras pecuniárias ou suspensão funcional, a exemplo do que se vê nos Estatutos de Funcionários Públicos Civis.
Nesse caminhar, policiais militares e bombeiros militares terão de conviver, doravante, com as punições disciplinares de multa e suspensão.
Será estranho, mas é a lei e, como diziam os romanos e nos lembra frequentemente o eminente professor doutor Romeu[6], dura lex, sed lex: querendo dizer que a lei é dura, mas é a lei.
Sondam alguns se tal iniciativa legislativa seria o passo inicial para a desmilitarização das Polícias Militares. A nosso ver, absolutamente não.
Com ou sem medidas de privação de liberdade, as Polícias Militares, assim como as Forças Armadas, estão organizadas com base na hierarquia e na disciplina, conforme estabelece o artigo 42 da Carta Política Fundamental.
À guisa de arremate, parece-nos justo pontuar que não há, no Brasil, um único Estado cujo Estatuto Disciplinar da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiro Militar, bem como sua processualística, não sejam pautados pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à legalidade, à presunção de inocência, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, à razoabilidade e à proporcionalidade.
Inobservâncias pontuais podem ocorrer e certamente ocorrem, mas está aí o Poder Judiciário em cujas portas todos podem bater. Até mesmo os militares bombeiros militares do Distrito Federal e dos Estados.
Notas
[1] Artigo 5º , inciso LIV, da Constituição Federal.
[2] Artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federa.
[3] ROCHA, Abelardo Julio da. O Princípio da Colegialidade e o Imperativo de Sessão Pública no Julgamento dos Conselhos de Disciplina. Florianópolis: AMAJME, 2016, nov/dez, pp. 23/26.
[4] Parecer lançado nos autos do HC 2.217/RJ – TRF/2ª Região – Rel. Des. Federal Sérgio Correa Feltrin – j. em 25.04.2001.
[5] Lei Complementar Estadual nº 893, de 9 de março de 2001 – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
[6] ROMEU AGOSTINHO SANTOMAURO é Advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo – USP no ano de 1973. Licenciado em Língua Portuguesa, lecionada desde o final da década de 1970 em cursos preparatórios às Escolas Militares. Foi o revisor deste trabalho oferecendo seus préstimos generosamente, emprestando sua autoridade acadêmica ao progresso da pesquisa jurídica no Brasil.