Capa da publicação As marcas indeléveis do cativeiro judeu na Babilônia à luz da religião, história política e direito
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Marcas indeléveis: considerações sobre o cativeiro judeu na Babilônia à luz das ciências da religião, história política e direito

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4. DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS, JURÍDICOS E CULTURAIS DO CATIVEIRO NA BABILÔNIA E SEUS REFLEXOS NA HISTÓRIA DA RELIGIÃO JUDAICA

Sustenta-se, no presente estudo, que a exploração de mão de obra escrava enquanto fenômeno presente nas civilizações humanas desde a Antiguidade, sofreu profunda alteração paradigmática ao longo dos séculos, desdobramento, contudo, dotado de um mesmo liame, a saber, a cultura dos diversos povos onde a escravidão foi implementada. Desde a Antiguidade meso-oriental até a infeliz experiência brasileira, encerrada apenas em 1888 EC, a exploração de mão de obra escrava serviu aos interesses de sucessivas elites econômicas – no sentido comum e etimológico dado à “economia” - oikos nomos, orçamento doméstico, escravo como bem de consumo de famílias abastadas nas diversas civilizações onde a insidiosa prática fora implementada, até ser atualmente considerada proscrita por violadora das normas de proteção internacional dos direitos humanos.

A consideração dos desdobramentos da exploração de mão de obra escrava sob a ótica da cultura – e, por via de consequência, da História Política nas civilizações em que praticada – explica as razões pelas quais o monarca Nabucodonosor II manteve cativos em seu palácio apenas os judeus nobres e dotados de formação acadêmica compatível com as funções típicas de governo, sendo Daniel um elemento de semelhante grupo social. Havia profundo interesse do rei babilônico em aproximar diante de si aqueles conhecidos à época como “sábios”, para exercerem, a título gratuito, o mister de conselheiros reais (ou recebendo como contraprestação apenas o necessário para sua subsistência, bem como a segurança que o autocrata proporcionava às famílias de cortesãos residentes no palácio)10.

Não obstante a relevância da teoria dos modos de produção econômica e sua divisão metodológico-evolutiva proposta pelo filósofo alemão Karl Marx (primitivismo, escravismo, capitalismo, socialismo e comunismo), já referido no presente estudo, sustenta-se que a escravidão constitui-se mais em fenômeno sociocultural que modo de produção econômica, até mesmo porque praticada essa forma de exploração de mão de obra em sociedades que ainda adotavam pelo viés proposto pela teoria marxista o primitivismo como modo de produção.

Nesse sentido, apreciam-se os desdobramentos da escravidão até sua proscrição formal pela sociedade internacional em 1981 EC11 como um fenômeno de maior interesse dos Estudos Culturais12 que da Economia Política. Inicialmente ligada aos rituais de guerra dos povos que compunham a Antiguidade, de forma gradativa passou a ser formalmente vinculada à política econômica das sociedades onde fora aplicada, como por exemplo a romana (embora tenha sempre exercido influência nas vicissitudes econômicas de tais povos), causando desdobramentos significativos a partir do mercantilismo pós-Idade Média que resultaram na barbárie da escravidão negra africana, praticada até o século XX especialmente pelos países europeus. A mudança paradigmática na percepção sobre este fenômeno sociocultural a partir do século XVIII, com a ética filosófica de matriz iluminista e europeia – paradoxalmente, originada na mesma região que maciçamente explorava mão de obra escrava africana, em especial nas suas colônias americanas – trouxe nova luz à teoria do direito natural em franca expansão desde o período medievo, tendo por significativa influência a Teologia judaico-cristã, considerando que tanto o povo judeu quanto muitos cristãos primitivos foram vítimas da escravidão13.

Enfim, o período do cativeiro na Babilônia foi um episódio na trajetória histórica da civilização judaica que marcou profundamente a estrutura de sua religião. A destruição do Templo inaugurado pelo rei Salomão e a transferência forçada do rei Joaquim para a corte de Nabucodonosor II, aliadas à profunda crença monoteísta estabelecida no povo hebreu desde a doutrina do Patriarca Moisés após o Êxodo do Egito, proporcionou à classe sacerdotal judaica cativa no império babilônico fundamentar as bases do culto a Iahweh po meio do sacerdócio nos templos locais conhecidos hoje como Sinagogas.

Crê-se prudente, para maior ilustração sobre a influência do cativeiro babilônico nos aspectos teológicos do Judaísmo – que influenciaria o Cristianismo séculos depois por meio desta tradição tipicamente formada durante o período de escravidão –, apresentar trecho de breve e didático artigo de opinião (LUZA, 2014):

Os sacerdotes não tendo mais preocupações com o templo dedicam-se à escrita, ampliando o material que já existia e reinterpretam a história, segundo a visão sacerdotal. Recolhem material já existente e acrescentam outros escritos, assim surge nova tradição organizada, que é a literatura sacerdotal (representada pela letra P). Essa literatura foi preparada por exilados e para exilados. Os sacerdotes, portanto, exercem um papel importante, apesar de suas limitações, e, longe do templo, procuram unir o povo em torno da palavra de Deus. Com isso, surge a “importância do livro”, nova mentalidade que mudará os rumos de Israel.

Observa-se que o cativeiro judeu no império babilônico trouxe estigmas indeléveis à civilização judaica, influenciando profundamente sua religião, influência que foi transmitida ao futuro Cristianismo e, consequentemente, à sociedade ocidental, pelas vicissitudes que o fenômeno religioso traduz no imaginário sociocultural, com especial destaque para a construção dos mitos e da mitologia (cf. ELIADE, 1998) no seio do Cristianismo ao longo de sua milenar trajetória histórica14. Ademais, verifica-se que a escravidão não enseja abordagem puramente econômica, nem essencialmente filosófica, sob pena de se desnaturar sua natureza deletéria na proteção da dignidade humana.


5. REFLEXÕES FINAIS

Portanto, verifica-se que o cativeiro judeu na Babilônia, fato histórico narrado pelas tradições religiosas do Judaísmo e do Cristianismo, deve ser estudado por uma ótica múltipla, que abranja aportes teóricos da História Política (expansão do poder das Cidades-estado sumérias no Oriente Médio da Antiguidade), História do Direito (estratificação social decorrente da organização jurídica das Cidades-estado sumérias em torno do Código de Hamurabi), História das Religiões (desdobramento da religião judaica com a criação das primeiras sinagogas durante o cativeiro judeu na Babilônia), Economia Política (desdobramento da escravidão de reflexo dos rituais de guerra e débitos civis individuais nas civilizações antigas a partir da Babilônia a modo de produção econômica com a sistemática exploração de mão de obra escrava a partir do mercantilismo europeu do século XV até sua formal proscrição no fim do século XIX) e Filosofia (naturalização do fenômeno sociocultural da escravidão na Babilônia a violação do imperativo categórico na Filosofia Moral de Immanuel Kant nos desdobramentos históricos decorrentes da exploração de mão de obra escrava, especialmente em estudos pós-século XX), considerando que a história do cativeiro judeu envolve diretamente a exploração de mão de obra escrava como prática comum dos povos da Antiguidade que, embora exercesse influência sobre a conjuntura econômica de tais civilizações, era dissociada de fundamentos puramente econômicos ou filosóficos, mas sim ligados aos aspectos socioculturais inerentes ao trajeto histórico das civilizações antigas.

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Nestes termos, sustenta-se que a escravidão ostenta muito mais a natureza de um fenômeno sociocultural do que uma matéria privilegiada de estudo da Filosofia ou da Economia Política. Nada obstante, a importância dada na época em que foi produzida e os desdobramentos resultantes no pensamento científico subsequente, crê-se na insuficiência da mera classificação do escravismo como modo de produção econômica para se definir a natureza do fenômeno à luz da contemporânea perspectiva dos Estudos Culturais. Em razão de sua pluralidade, a escravidão merece ser compreendida como fenômeno sociocultural, produtor de vicissitudes diversas nas civilizações onde incidiu, sendo proscrita apenas no século XX como reflexo do desenvolvimento das políticas de proteção internacional dos direitos humanos, influenciadas sobremaneira pelos desdobramentos do Direito Natural a partir do século XVI, enquanto reflexos, por sua vez, da Ética de matriz judaico-cristã objeto de estudos filosóficos no meio acadêmico europeu desde a Idade Média.

Os desdobramentos do nefasto período de cativeiro judeu no império babilônico, no âmbito da História das Religiões, transcenderam as eras e se tornaram de fundamental importância para a influência que a ética filosófica de matriz judaico-cristã trouxe ao Direito Natural a partir do século XVI, à proteção internacional dos direitos humanos a partir do século XX, e ao relevante desdobramento sociocultural ocorrido nas sociedades ocidentais que proporcionou a gradual proscrição da escravidão como forma de exploração de trabalhos forçados, em consonância ao processo de internacionalização da economia e da divisão do trabalho estabelecidas pela atuação de organismos intergovernamentais de relevo no tabuleiro da política internacional, como a Organização Internacional do Trabalho e Organização das Nações Unidas, com inegáveis repercussões nos espectros teóricos da História Política, da História do Direito, da História das Religiões, da Economia Política e da Filosofia, sob a perspectiva do movimento intelectual dos Cultural Studies, de larga tradição no estudo contemporâneo de Humanidades.

Logo, é possível a promoção da multidisciplinaridade e interdisciplinaridade com a proposta de transdisciplinaridade no estudo da escravidão e seus reflexos nos desdobramentos socioculturais da civilização judaica, mormente no tocante à teologia de suas crenças e a seus ritos religiosos. Neste sentido, a origem das sinagogas enquanto templos religiosos comuns em todas as comunidades judaicas do mundo revela o profundo significado da compreensão da exploração de mão de obra escrava na formação histórica de uma classe social, povo ou mesmo civilização.

Formalmente proscrita na atualidade, reflexo de violação sistemática dos direitos humanos, na Antiguidade a escravidão era naturalizada no interior das sociedades organizadas, ensejando uma abordagem compreensiva de suas vicissitudes no território e no recorte temporal considerado na pesquisa histórica. As histórias da civilização judaica e do judaísmo são significativamente marcadas pela escravidão dos hebreus na Antiguidade, seja no Egito, na Babilônia ou mesmo na exploração romana que, embora não tenha sido caracterizada pela escravidão, era desenvolvida sob o signo da dependência econômica no âmbito da História Política do povo judeu.

Sob a perspectiva sistêmica proporcionada pelo movimento intelectual dos Cultural Studies no panorama das Humanidades, focadas em sua produção acadêmica no Brasil, o relativo ineditismo deste estudo augura o estímulo ao debate da escravidão como fenômeno sociocultural plural desprovido de vínculos exclusivos ou com pretensão de exclusividade seja da Economia, seja da Filosofia.

Não se pode tomar a etiologia de dado fenômeno por suas consequências, o que se observa nos estudos hoje existentes sobre a escravidão à luz da Ciência da História e outras províncias organizadas das Humanidades, ou mesmo em ramos das Ciências Sociais Aplicadas como o Direito e a Economia Política. Proporcionou-se, desta forma, uma abordagem crítica à definição tradicional de escravidão e seus desdobramentos no episódio histórico do cativeiro judeu na Babilônia, com inevitáveis reflexos na história do judaísmo e suas crenças a esse segmento populacional mundial.

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Sobre os autores
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Maria Cristina Nunes Ferreira Neto

Graduada em Historia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto ; FERREIRA NETO, Maria Cristina Nunes. Marcas indeléveis: considerações sobre o cativeiro judeu na Babilônia à luz das ciências da religião, história política e direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6106, 20 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79130. Acesso em: 25 abr. 2024.

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