Resumo: O trabalho aborda a legislação, a doutrina e a jurisprudência referentes à ação por improbidade administrativa, para verificar se é possível aplicar a regra do reexame necessário das sentenças, quando a ação for julgada improcedente, por analogia ao artigo 19 da Lei nº 4.717/1965 (que regula a ação popular). O primeiro capítulo, centrado nas principais características da ação de improbidade administrativa, examina os dispositivos constitucionais e legais pertinentes, além da doutrina e da jurisprudência aplicáveis. O segundo capítulo analisa as interações entre as leis que formam o microssistema de tutela coletiva. Por fim, conclui-se pela possibilidade de aplicação da regra que determina o reexame necessário das sentenças que concluírem pela improcedência da ação, por analogia ao artigo 19 da Lei nº 4.717/1965.
Palavras-chave: Improbidade Administrativa. Reexame necessário. Microssistema de tutela coletiva.
Sumário: Introdução. 1. A ação de improbidade administrativa. 2. O reexame necessário na ação de improbidade. Considerações Finais. Referências.
Introdução
José Afonso da Silva (2007, p. 92) define os princípios jurídicos como “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”. O referido autor, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, prossegue em sua lição afirmando que os princípios jurídicos são:
[...] ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais. Mas, como disseram os mesmos autores, “os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional”.
Segundo Robert Alexy (2007, pp. 67-68), expoente do moralismo jurídico que defende a corrente substancialista das normas-princípio, os princípios são “mandados de otimização”:
O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diferentes graus, sendo que a medida devida de seu cumprimento não apenas depende das possibilidades materiais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas se determina pelos princípios e regras opostos. Ao contrário, as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então se deve fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isso significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 positivou a moralidade como um princípio aplicável à Administração Pública “direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 37, caput), sendo cabível a propositura, por qualquer cidadão, de ação popular que vise a anular ato lesivo à moralidade (art. 5º, LXXIII).
Já a Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê a moralidade como um princípio a ser observado nos processos administrativos, que se materializa através de uma “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” (art. 2º, parágrafo único, IV).
Em sua lição acerca do tema, Odete Medauar (2006, pp. 126-127) aponta que célebres doutrinadores brasileiros relacionam o conteúdo do princípio da moralidade com as ideias de: exação, lisura e fins de interesse público (Manoel de Oliveira Franco Sobrinho); honestidade, conveniência aos interesses gerais e vinculação ao conceito de “bom administrador” (Hely Lopes Meirelles); conjunto de regras de conduta afetas à disciplina geral da Administração (José Afonso da Silva):
Na doutrina pátria, Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, que dedicou obra específica à moralidade administrativa, tece as seguintes considerações: “Muito embora não se cometam faltas legais, a ordem jurídica não justifica no excesso, no desvio, no arbítrio, motivações outras que não encontram garantia no interesse geral, público e necessário; (...) o que se quer defender é a lisura ou a exação nas práticas administrativas; (...) a presunção de fim legal equivale à presunção de moralidade” (O controle da moralidade administrativa, 1974, p. 18, 19, 22, 186). Vê-se, então, que o referido autor ligou moralidade administrativa a exação, lisura e fins de interesse público. Hely Lopes Meirelles, que sempre incluiu a moralidade entre os princípios da Administração, afirma que “ao legal deve se juntar o honesto e o conveniente aos interesses gerais;” e vincula a moralidade administrativa ao conceito de “bom administrador” (op. cit., p. 79 e 80). Por sua vez, José Afonso da Silva parece aceitar a concepção de Hauriou, que vê a moralidade como o conjunto de regras de conduta extraídas da disciplina geral da Administração; menciona como exemplo, o cumprimento imoral da lei, no caso de ser executada com intuito de prejudicar ou favorecer deliberadamente alguém (op. cit., p. 571).
Ademais, de acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro (1991, pp. 110-111), não se faz necessário perquirir a intenção do agente que praticou o ato para verificar se houve atendimento à moralidade administrativa. Isso porque o conteúdo da atuação administrativa deverá atender os deveres de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, dignidade humana, boa-fé, ética e proporcionalidade. Nesse sentido, mesmo que previstos em lei, podem ser considerados imorais, por exemplo, os gastos excessivos de recursos públicos com publicidade ou regalias para autoridades públicas:
O princípio da moralidade tem utilidade na medida em que diz respeito aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração Pública. Muito mais do que em qualquer outro elemento do ato administrativo, a moral é identificável no seu objeto ou conteúdo, ou seja, no efeito jurídico imediato que o ato produz e que, na realidade, expressa o meio de atuação pelo qual opta a administração para atingir cada uma de suas finalidades.
[...]
Não é preciso penetrar na intenção do agente porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir, entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos.
Por isso mesmo, a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna.
Não é preciso, para invalidar despesas desse tipo, entrar na difícil análise dos fins que inspiraram a autoridade; o ato em si, o seu objeto, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrativa.
Nesse contexto, em atenção à importância dos deveres de moralidade e probidade pela Administração Pública, o presente trabalho se propõe a realizar uma abordagem da legislação, da doutrina e da jurisprudência referentes à ação por improbidade administrativa, regulada pela Lei nº 8.429/1992, de modo a verificar a possibilidade de aplicação da regra que determina o reexame necessário das sentenças que concluírem pela improcedência da ação, por analogia ao artigo 19 da Lei nº 4.717/1965, que regula a ação popular.
Para tanto, o trabalho se desenvolverá em dois capítulos. O primeiro deles, centrado nas principais características da ação de improbidade administrativa, examinará os dispositivos constitucionais e legais pertinentes, em cotejo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial mais abalizado.
No segundo capítulo, será feita uma análise das interações existentes entre os diplomas legais que compõem o microssistema de tutela coletiva, no qual se observa a aplicação, por analogia, de determinados mecanismos processuais, para que seja possível concluir sobre o eventual cabimento do reexame necessário no julgamento da ação de improbidade administrativa, também com enfoque na doutrina e nas decisões judiciais.
1. A ação de improbidade administrativa
A probidade administrativa – que pode ser definida como uma forma de moralidade administrativa – recebeu tratamento específico pela Constituição de 1988. Nesse diapasão, José Afonso da Silva (2007, p. 669), citando Marcelo Caetano, afirma que:
A probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial da Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, § 4º). A probidade administrativa consiste no dever de o “funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”. O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.
Em atenção ao dever de probidade do agente público, a Lei Maior estabeleceu consequências decorrentes da prática de atos de improbidade administrativa, quais sejam: i) a sanção de inelegibilidade para qualquer cargo público (art. 14, § 9º); ii) a suspensão dos direitos políticos (art. 15, V); iii) a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário (art. 37, § 4º); iv) a configuração de crime de responsabilidade, quando o ato for praticado pelo Presidente da República (art. 85, V).
Para dar eficácia aos comandos constitucionais citados, foi editada a Lei nº 8.429/1992, que tipifica determinadas condutas como atos de improbidade administrativa (arts. 9º, 10, 10-A e 11) e estabelece as sanções aplicáveis para os atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 12, I), que causam prejuízo ao erário (art. 12, II), que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 12, III) e que decorram de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 12, IV).
Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 892) observa que tal diploma legal, ao sujeitar o agente público ímprobo a uma série de consequências gravosas, possui elevada importância:
De transcendente importância é a Lei 8.429, de 2.6.92, a qual arrola uma cópia de comportamentos qualificados como de “improbidade administrativa”, cuja prática sujeita o agente, de fora parte sanções penais, civis ou administrativas, contempladas na legislação competente, a uma série de consequências gravosas, previstas em seu art. 12, tais as de: ressarcimento integral do dano, se houver; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos; multa civil e proibição, por tempo determinado, de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário. Qualquer pessoa pode representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada à apuração de tais ilícitos, sem prejuízo de representar também ao Ministério Público (arts. 14 e 22).
Possuem legitimidade ativa concorrente para a propositura da ação o Ministério Público e a pessoa jurídica interessada (art. 17, caput), ao passo que poderão figurar no polo passivo da demanda quaisquer agentes públicos, servidores ou não que tenham praticado atos de improbidade (art. 1º), bem como particulares que concorreram, induziram ou se beneficiaram, direta ou indiretamente, com a conduta ímproba (art. 3º).
No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal, através do julgamento do Agravo Regimental na Petição 3240 / DF[1], decidiu que, à exceção do Presidente da República, os agentes políticos estão sujeitos a um duplo regime sancionatório, isto é: submetem-se tanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade, quanto à responsabilização civil pela prática de atos de improbidade administrativa.
No referido julgamento, também foi decidido que o foro especial por prerrogativa de função, previsto constitucionalmente para o julgamento de infrações penais comuns, não se estende às ações de improbidade administrativa, que possuem natureza civil.
Segundo a Constituição da República: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento” (art. 37, § 5º).
A respeito de tal dispositivo, o STF, através do julgamento Recurso Extraordinário 852.475 / SP[2], também realizado no ano de 2018, fixou a seguinte tese: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.
A doutrina e a jurisprudência entendem que a ação judicial voltada à apuração de atos de improbidade administrativa tem a natureza jurídica de ação civil pública, sendo aplicáveis, no que couber, as normas constantes da Lei nº 7.347/1985.
Isso porque a Constituição da República prevê como função institucional do Ministério Público promover “a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III), ao passo que a Lei nº 7.347/1985 admite a propositura de ação civil pública para obter a responsabilização por danos morais e patrimoniais causados a qualquer interesse difuso ou coletivo (art. 1º, IV, incluído pela Lei nº 8.078/1990).
A propósito, vêm a calhar os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro (2014, p. 924):
Vem se firmando o entendimento de que a ação judicial cabível para apurar e punir os atos de improbidade tem a natureza de ação civil pública, sendo-lhe cabível, no que não contrariar disposições específicas da lei de improbidade, a Lei nº 7.347, de 24-7-85. É sob essa forma que o Ministério Público tem proposto as ações de improbidade administrativa, com aceitação pela jurisprudência [...].
Essa conclusão encontra fundamento no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, que ampliou os objetivos da ação civil pública, em relação à redação original da Lei 7.347, que somente a previa em caso de dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. O dispositivo constitucional fala em ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Em consequência, o artigo 1º da Lei nº 7.347/85 foi acrescido de um inciso, para abranger as ações de responsabilidade por danos causados “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.
Aplicam-se, portanto, as normas da Lei nº 7.347/85, no que não contrariarem dispositivos expressos da lei de improbidade.
Portanto, é possível concluir que a ação de improbidade administrativa possui natureza de ação civil pública, podendo ser aplicadas, subsidiariamente e no que couber, as disposições da Lei nº 7.347/1985.
Contudo, devem ser observadas as peculiaridades procedimentais da Lei nº 8.429/1992, dentre as quais podem ser destacadas: i) o sequestro dos bens do agente ou do terceiro que enriqueceu ilicitamente ou causou dano ao patrimônio público (art. 16); ii) a propositura da ação principal após a efetivação da medida cautelar (art. 17, caput); iii) a notificação do requerido para a apresentação de defesa prévia, sem prejuízo da contestação, antes da rejeição ou do recebimento da petição inicial (art. 17, §§ 7º e 9º); iv) o cabimento de agravo de instrumento em face da decisão que receber a inicial (art. 17, § 10); v) o pagamento ou a reversão dos bens em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito, quando a ação for julgada procedente (art. 18).
Para demonstrar o entendimento jurisprudencial sobre o tema, pode ser citado o julgamento do Recurso Especial 510.150 / MA[3], realizado em 2004 pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, com destaque para o voto do Ministro Luiz Fux, relator do caso:
A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e dos Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se.
No mesmo sentido foi o julgamento do Recurso Especial 1.015.498 / SC[4], no ano de 2008, pela Segunda Turma do STJ, no qual o relator Ministro Castro Meira fez constar a seguinte conclusão em seu voto:
Quanto ao mérito, a jurisprudência e a doutrina pátria entendem pelo cabimento da ação civil pública que tenha como objeto a improbidade administrativa.
A ação de improbidade se insere no contexto da legislação pátria como uma espécie própria de ação civil pública e, desse modo, deve ser aplicada subsidiariamente, no que couber e não se contrapuser à legislação de regência.
2. O reexame necessário nas ações de improbidade
No período compreendido após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade ocidental experimentou considerável desenvolvimento econômico e social, em um cenário marcado pela multiplicidade de relações jurídicas e por conflitos transindividuais que demandavam regulamentação pelo Poder Público.
Assim, verificou-se um aumento na quantidade de leis especiais criadas pelo Estado, voltadas a conferir equilíbrio ao quadro social e econômico e a assegurar direitos de segunda e de terceira geração, que não encontravam suporte na estrutura jurídica das codificações, marcada pelo individualismo.
Conforme ensina Rodrigo Mazzei (2011, p. 260), foi esse o contexto no qual surgiram os microssistemas legais:
Com o passar do tempo, a intensificação da atividade legislativa não foi detida, especialmente com a evolução das relações transindividuais, ultrassubjetivas, relações essas que não possuíam o mínimo espaço dentro da codificação civil existente, ainda baseada no individualismo da Era Liberal. Fez-se necessária, portanto, a edição de leis especiais que não se limitam apenas à complementação das regras gerais impostas no Código, mas, sim, regulam plenamente setores da sociedade não abarcados pela codificação.
A Lei nº 8.429/1992, que regula a ação por improbidade administrativa, compõe um microssistema de tutela coletiva, integrado por leis que estabelecem variados tipos de ações coletivas, com regras processuais próprias ao direito coletivo.
Dentre os referidos diplomas, podem ser citadas as seguintes leis: Lei nº 4.717/1965 (ação popular), Lei nº 7.347/1985 (ação civil pública), Lei nº 7.853/1989 (tutela coletiva das pessoas com deficiência), Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), Lei nº 9.507/1997 (habeas data), Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), Lei nº 12.016/2009 (mandado de segurança coletivo), Lei nº 13.300/2016 (mandado de injunção coletivo).
Embora as respectivas ações judiciais apresentem características específicas com relação ao seu objeto, à legitimidade e ao procedimento, todas elas são voltadas, de alguma forma, para a proteção de direitos coletivos em sentido amplo. Destarte, resguardadas as peculiaridades, as leis se inter-relacionam de modo a conferir organicidade ao microssistema da tutela coletiva.
Assim, pode-se afirmar que as regras constantes da Lei nº 4.717/1965 (ação popular) e da Lei nº 7.347/1985 (ação civil pública), que ostentam função de destaque nos processos coletivos, aplicam-se às ações coletivas em geral, dentre elas a ação por improbidade administrativa.
Nesse sentido, a Lei nº 7.347/1985 é expressa ao determinar que: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor” (art. 21, incluído pela Lei nº 8.078/1990).
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), por sua vez, prescreve que:
Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela
[...]
Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
Destarte, os dispositivos supracitados demonstram a existência do microssistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos em sentido amplo, conclusão expressamente consignada no julgamento do Recurso Especial 1.098.669 / GO[5], realizado em 2010 pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos termos do voto do Ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do caso:
Os arts. 21 da Lei da Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilitaram o surgimento do denominado Microssistema ou Minissistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, com o qual se comunicam outras normas, como os Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Administrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma que os instrumentos e institutos podem ser utilizados com o escopo "propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 do CDC).
[...]
Logo, entende-se pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil nas ações de improbidade administrativa, apesar da ausência de norma expressa na Lei 8.429/92, nos termos dos arts. 19 da Lei 7.347/85 e 90 da Lei 8.078/90.
Outro exemplo de interação entre as normas do microssistema de tutela coletiva consiste no mecanismo de inversão da legitimidade na ação popular, através do qual a pessoa jurídica que figura inicialmente no polo passivo da demanda pode passar a integrar o polo ativo da relação processual, caso demonstre interesse processual e se tal providência for útil ao interesse público, nos termos da na Lei nº 4.717/1965:
Art. 6º [...]
§ 3º A pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.
A Lei nº 8.429/1992 faz menção expressa ao referido dispositivo, possibilitando a sua aplicação nos casos em que a ação por improbidade administrativa for proposta pelo Ministério Público (art. 17, § 3º, com redação dada pela Lei nº 9.366/1996).
Ao comentar a aplicação dessa regra nas ações de improbidade administrativa, José dos Santos Carvalho Filho (2014, p. 1120) faz a ressalva de que tal mecanismo, para tanto, deverá se adequar às peculiaridades da ação regida pela Lei nº 8.429/1992, na qual somente a pessoa física pode figurar como ré:
Diz a Lei nº 8.429/1992 que, sendo parte o Ministério Público, será aplicável, no que couber, o sistema adotado no art. 6º, § 3º, da Lei nº 4.717/1965 (que regula a ação popular), segundo o qual se permite à pessoa jurídica cujo ato seja objeto de impugnação abster-se de contestar o pedido ou atuar ao lado do autor, desde que tal providência atenda ao interesse público. Trata-se pois, como já observamos antes, de inversão da legitimidade, em que a pessoa jurídica inicia o processo com legitimidade passiva, mas que, invertido o interesse processual, inverte-se também a legitimidade, passando a mesma pessoa a integrar o polo ativo da relação processual. O sistema adotado na lei popular, contudo, tem que adequar-se à ação de improbidade; daí a expressão no que couber prevista na Lei de Improbidade. Assim, não haverá ensejo para a “abstenção de contestar o pedido”, já que na ação de improbidade apenas a pessoa física pode figurar como ré. Restar-lhe-á, pois, atuar ao lado do Ministério Público para reforçar o pedido de reconhecimento da improbidade e de aplicação das sanções.
A Lei nº 4.717 determina que a sentença que julgar improcedente a ação popular deverá ser submetida ao reexame necessário. Também conhecido como “duplo grau de jurisdição necessário”, “remessa necessária” ou “remessa ex officio”, tal mecanismo faz com que a produção dos efeitos decorrentes do julgamento e a formação da coisa julgada só ocorram a partir da confirmação da sentença pelo tribunal, observado o esgotamento dos recursos voluntários pelas partes:
Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo. (Redação dada pela Lei nº 6.014, de 1973)
Ao dispor sobre a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos das pessoas com deficiência, a Lei nº 7.853/1989 também determina o reexame necessário das sentenças que concluírem pela improcedência da ação:
Art. 4º [...]
§ 1º A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação fica sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal.
No julgamento do Recurso Especial 1.108.542 / SC[6], realizado em 2009, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que as sentenças de improcedência de ação civil pública também se sujeitam ao reexame necessário, sendo legítima a aplicação, por analogia, do artigo 19 da Lei nº 4.717/1965 como norma de integração do microssistema processual da tutela coletiva. A propósito, mostra-se elucidativo o voto do Ministro Castro Meira, relator do caso:
Isto porque a primeira parte do dispositivo legal em tela [...], embora refira-se imediatamente à ação popular, tem seu âmbito de aplicação estendido às ações civis públicas diante das funções assemelhadas a que se destinam - proteção do patrimônio público em sentido lato - e do microssistema processual da tutela coletiva, de maneira que as sentenças de improcedência devem se sujeitar indistintamente à remessa necessária.
[...]
A título de reforço, excerto pinçado do parecer ministerial firmado pelo ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. José Eduardo de Santana:
"Todavia, deve ser reformado o acórdão recorrido, a fim de que a remessa oficial seja apreciada. Com efeito, não há falar-se em aplicação do art. 475, § 2º, do CPC, no âmbito da ação civil pública. Ao revés, na ausência de regulamentação da matéria pela Lei nº 7.347/85, deve ser observado o disposto no art. 19, da Lei nº 4.717/65, que regula a ação popular, haja vista a semelhança entre as finalidades de ambas" [...].
O mesmo Órgão Julgador, no ano 2011, através do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.219.033 / RJ[7], relatado pelo Ministro Herman Benjamin, decidiu que "Por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário".
Em 2017, em razão da existência de decisões conflitantes sobre o tema, a Primeira Seção do STJ, deu provimento aos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.220.667 / MG[8], sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, fazendo prevalecer a tese de cabimento do reexame necessário nas ações de improbidade administrativa:
Portanto, é cabível o reexame necessário na Ação de Improbidade Administrativa, nos termos do artigo 475 do CPC.
Ademais, por "aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário" (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira, j. 19.5.2009, DJe 29.5.2009).
[...]
Por fim, ressalta-se, que não se desconhece que há decisões em sentido contrário. A propósito: REsp 1115586/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 22/08/2016, e REsp 1220667/MG, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 20/10/2014.
Diante do exposto, dou provimento aos Embargos de Divergência para que prevaleça a tese do v. acórdão paradigma de que é cabível o reexame necessário na Ação de Improbidade Administrativa, nos termos do artigo 475 do CPC/1973, e determino o retorno dos autos para o Tribunal de origem a fim de prosseguir no julgamento.
É como voto.
No mesmo ano, a Segunda Turma do STJ deu provimento ao Recurso Especial 1.605.572 / MG[9], entendendo mais uma vez pela aplicação do reexame necessário nas ações de improbidade, nos termos do voto do relator, Ministro Francisco Falcão:
Verifica-se, assim, que, seja pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (art. 475 do CPC/1973), seja pela aplicação analógica da Lei da Ação Popular (art. 19 da Lei n. 4.717/65), as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário.
Ante o exposto, conheço e dou provimento ao recurso especial para anular o acórdão recorrido e determinar a devolução dos autos ao Tribunal de origem, a fim de prosseguir no julgamento para proceder ao reexame necessário da sentença.
É o voto.
Contudo, no ano de 2019, a Primeira Seção do STJ afetou quatro processos[10] para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (previsto no artigo 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil) para definir se há ou não a aplicação do reexame necessário nas ações de improbidade administrativa julgadas improcedentes em primeira instância, cadastrando o assunto como Tema 1.042 no sistema de repetitivos.
Ao apreciarem a proposta de afetação, os Ministros integrantes do referido órgão colegiado decidiram, por unanimidade, pela afetação dos processos representativos da controvérsia ao rito dos recursos repetitivos, ao passo que, por maioria de votos, decidiram suspender a tramitação de processos em todo o território nacional que versem sobre a matéria.
Destarte, nos termos do voto do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator dos casos, a questão submetida a julgamento é a seguinte:
[...] definir se há – ou não – aplicação da figura do reexame necessário nas ações típicas de improbidade administrativa, ajuizadas com esteio na alegada prática de condutas previstas na Lei 8.429/1992, cuja pretensão é julgada improcedente em primeiro grau; discutir se há remessa de ofício nas referidas ações típicas, ou se deve ser reservado ao autor da ação, na postura de órgão acusador – frequentemente o Ministério Público – exercer a prerrogativa de recorrer ou não do desfecho de improcedência da pretensão sancionadora.