Nestes dias, o Brasil tem acompanhado a quebra de braço entre o governo federal e os governadores de estado na adoção de medidas mas restritivas no combate à pandemia do Covid-19, adotadas por estes e os sucessivos atos daquele para anular tais medidas, além, é claro, da intensa troca de farpas entre os dois lados.
Apenas para exemplificar, temos a MP 926, que concentra no governo federal o poder para restringir a circulação de pessoas, além do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que define quais serviços públicos e atividades essenciais devem ser mantidos para assegurar a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população diante da pandemia do coronavírus. Essas normas foram editadas depois que Bolsonaro criticou o decreto de Witzel que prevê o isolamento da capital do Rio de Janeiro para os transportes de passageiros, por vias terrestre e aérea[1].
No Maranhão, o governador do estado, Flávio Dino, acusou o presidente por rede social de “impedir que nós (governadores) façamos”, quando o governo federal teria recorrido à Justiça para impedir que o governo do estado faça controle e orientação sanitária no aeroporto.[2]
Ora, é de lição contundente ementa de histórica jurisprudência da Corte Constitucional ao afirmar que “O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. (…). Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo poder público” (ADI 1.458 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 23-5-1996, P, DJ de 29-9-1996, grifo nosso).
Tendo isto em vista, questiona-se: o que deve ser feito ante a omissão inconstitucional do Presidente da República em tornar efetivo o art. 196 da Lei Maior (direito à saúde como dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos) no combate à pademia causada pelo coronavírus (Covid-19)?
Salutar a solução indicada no art. 103, § 2º, da Constituição da República, que diz que “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
É na evolução do Estado Democrático de Direito que percebemos o surgimento de um tipo de inconstitucionalidade proveniente da inércia dos poderes públicos, para o qual nossa ordem constitucional tratou de modelar remédio próprio, qual seja, a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO). Trata-se de mecanismo que compele o Poder Executivo e insta o legislador a fazer aquilo que, embora estipulado no texto da Constituição, não deseja fazer, de forma total ou parcial, protegendo, assim, a força normativa da Constituição, por meio de barreiras contra um não atuar que, sendo produto de uma decisão política, tem consequências jurídicas (a inconstitucionalidade)[3].
Tem-se claro que a Constituição possui mandamento eivado de força ativa, qual seja, o art. 196, que obriga o Poder Público a formular políticas que visem à redução do risco de doenças, como é o caso do coronavírus, o que deve ser feito de maneira efetiva, para que não haja omissão inconstitucional, ainda que parcial. Assim como resta claro que a mesma Constituição possui ação própria para combater tal inércia da Administração perante o guardião constitucional, tendo inclusive o Governador de Estado como um de seus legitimados para intentá-la.
Além disso, a própria formulação empregada pelo constituinte no art. 103, § 2º, como anteriormente transcrito, não deixa dúvidas de que a omissão de atividade tipicamente administrativa também pode, de alguma maneira, afetar a efetividade de norma constitucional, o que leva à conclusão de abertura do remédio para situações de omissão não normativa[4].
Dentre outros requisitos, a Lei 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, informa que petição da ADO indicará a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa, como é o caso em questão.
Ademais, como se trata da omissão de medidas efetivas que precisam ser tomadas urgentemente, tendo em vista o avanço rápido que o coronavírus teve em diversos países da Europa, na China e nos Estados Unidos, a referida lei, em seu art. 12-F, estatui que, em caso de excepcional urgência e relevância da matéria, o Tribunal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá conceder medida cautelar, após a audiência dos órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional, que deverão pronunciar-se no prazo de 5 (cinco) dias.
Importante salientar também que o parágrafo primeiro do mesmo artigo diz que a medida cautelar poderá consistir: a) na suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial; b) na suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos; ou c) em outra providência a ser fixada pelo Tribunal. Nesta última possibilidade, não há qualquer óbice para que o Plenário da Casa, utilizando-se dos meios de aperfeiçoamento da jurisdição, como é o caso do uso de Amici Curiae, possa tomar medidas concretas de prevenção à transmissão do vírus, medidas mais drásticas que precisam ser tomadas o quanto antes para evitar a sua proliferação.
Apesar de haver uma visão mais ou menos consolidada (apesar dos ares de evolução e superação) transcrta na ADI 19, de relatoria do Ministro Aldir Passarinho, de que a ação direta por omissão “não é de ser proposta para que seja praticado determinado ato administrativo em caráter concreto” (ADI 19/AL, rel. Min. Aldir Passarinho, DJ de 14-4-1989), já se percebeu que a mera ciência do Poder Legislativo ou do Executivo pode ser ineficaz, já que estes não estão obrigados a tomar determinadas medidas, vez que não há qualquer penalidade para o não atuar no prazo determinado. Isso não impediria, entretanto, como assevera José Afonso da Silva, que a sentença que reconhecesse a omissão inconstitucional já pudesse dispor normativamente sobre a matéria até que a omissão legislativa fosse suprida, conciliando-se o princípio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo cumprimento das normas constitucionais[5].
Afinal, tem sido exatamente isto que tem acontecido nas decisões mais recentes da Corte, como na ADO 26, na qual se fixou a tese de que até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação do racismo.
Por fim, cabe destacar a crítica de Barroso quanto à resistência do Supremo Tribunal Federal em dar sentido mais abrangente à normatividade constitucional da ADO, sob o fundamento de que não pode se tornar legislador positivo, o que transforma a ação direta de inconstitucionalidade por omissão em um remédio jurídico de baixa eficácia[6], o que não impede uma atuação mais adequada aos anseios constitucionais atuais.
Notas
[1] Fonte: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/22/interna_politica,835848/em-contra-ataque-a-governadores-bolsonaro-define-servicos-essenciais.shtml>.
[2] Fonte: <https://revistaforum.com.br/politica/flavio-dino-acusa-bolsonaro-de-recorrer-a-justica-para-impedir-que-os-governadores-atuem/>.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 564-565.
[4] Mendes, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 2.024.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 37. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 50-51.
[6] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 290.