Capa da publicação Covid-19 e responsabilidade do Estado pela demissão de empregado: riscos do art. 486 da CLT
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Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT.

Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública

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02/05/2020 às 09:30
Leia nesta página:

Quem espera que o governo pague as indenizações trabalhistas nos casos de demissão durante a pandemia precisa estar ciente dos riscos que corre.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 

A pandemia causada pelo covid-19 e a consequente quarentena, que vem sendo determinada pelos Governos Estaduais e Municipais, trazem uma série de dúvidas e preocupações. Dentre elas pode-se destacar a preocupação dos empregadores com o pagamento do salário dos seus empregados e a dúvida sobre a aplicação do art. 486, da CLT fazendo com que o Governo seja responsabilizado por arcar com verbas trabalhistas.

Esse debate foi fomentado ainda mais após entrevista concedida pelo Presidente da República. Veja-se, por exemplo, notícia veiculada pelo jornal O Globo[1] cuja manchete era: “Bolsonaro defende que governadores e prefeitos paguem encargos trabalhistas por dias parados”.  A partir daí o alvoroço foi imediato, sendo que diversos empregadores Brasil afora passaram a nutrir esperanças de que poderiam simplesmente esperar que o Governo arcasse com os encargos trabalhistas dos empregados pelos dias parados. O dispositivo celetista ao qual se fez referência assim dispõe:

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Entretanto, é preciso ter cuidado.

Logo de início, é preciso estabelecer uma premissa: a pandemia e a consequente quarentena são situações atípicas e bastante novas; logo, não se tem respostas concretas sobre o que vai acontecer daqui pra frente. Isso quer dizer que inclusive as decisões judiciais, no futuro, deverão divergir: deveremos observar o Judiciário dando interpretações diversas para questões semelhantes. Se isso já ocorre atualmente, imagine a proporção que tomará agora, em decorrência desse momento sem precedentes na história do país.

O que se quer dizer é que alguns empregadores irão, de fato, rescindir o contrato de trabalho dos empregados seguindo o entendimento proposto pelo art. 486, CLT, esperando que a Administração Publica seja responsabilizada pelo pagamento da indenização, ao trabalhador, nele prevista; certamente alguns julgados, Brasil afora, considerarão a medida correta e determinarão que o Governo arque com verbas trabalhistas.

Todavia, é preciso ter ciência, desde já, de que aplicar tal artigo também traz riscos uma vez que o pagamento das verbas trabalhistas pelo Governo não é automático e podem existir situações que venham a excluir essa responsabilidade constante no dispositivo celetista. Ou, ainda, pode-se estabelecer sólida fundamentação teórica que culminaria na impossibilidade de a Administração Pública ser condenada ao pagamento da indenização constante no art. 486, CLT, porquanto agiu dentro de suas prerrogativas. Enfim, diversas hipóteses podem ser aventadas, todas elas resultando no mesmo alerta: o risco de se aplicar o dispositivo celetista.

 O objetivo deste artigo não é o de concluir pela aplicação ou não do art. 486, CLT, em meio à pandemia; longe disso, o intuito é tão somente demonstrar que na doutrina e na jurisprudência há exemplos que comprovam a existência dos riscos já mencionados, trazendo um alerta aos que pretender fazer uso de tal medida.

É preciso entender, portanto, que assim como existe a possibilidade de o Governo ser responsabilizado pelo pagamento de algumas verbas trabalhistas, existe também uma grande chance de o Governo não ser responsabilizado e, assim, o empregador ter de arcar com todos os (ou ainda com parte dos) valores.

Desta feita, vamos ao exame do art. 486, da CLT e da responsabilidade da Administração Pública.


2. PAGAMENTO PELOS DIAS PARADOS OU NECESSIDADE DE RESCISÃO CONTRATUAL? 

Antes de se debruçar sobre o exame da possibilidade de responsabilização da Administração Pública pelo pagamento da indenização prevista no art. 486, da CLT, é preciso fazer um esclarecimento no que diz respeito à manchete do veículo de comunicação transcrita no tópico anterior.

Na notícia veiculada pelo jornal já mencionado consta que o Presidente da República teria defendido que Governadores e Prefeitos deveriam pagar os encargos trabalhistas pelos dias parados justamente fazendo referência a tal artigo celetista.

Todavia, deve-se ressaltar que o art. 486, da CLT, está inserido em um capítulo chamado DA RESCISÃO, sendo que tal capítulo traz todos os dispositivos aplicáveis nas hipóteses de rescisão do contrato de trabalho.

Ou seja, em uma primeira análise, percebe-se que a Administração Pública não seria responsabilizada pelo pagamento dos encargos trabalhistas pelos dias parados no caso de os empregados continuarem trabalhando - assim, não adiantaria tentar fazer com que Governadores e Prefeitos pagassem os salários dos trabalhadores quando eles retornassem ao trabalho.

A princípio, seria necessário que o contrato de trabalho fosse extinto e deveria haver a comprovação de que tal extinção decorreu diretamente do ato praticado pela Administração Pública. É certo que há quem pense o contrário; no entanto o objetivo deste artigo é apenas demonstrar os riscos de se aplicar tal artigo, alertando para a existência de diferentes interpretações sobre o mesmo - não tendo, portanto, o objetivo de comprovar que um ou outro posicionamento seja o correto.  

Por fim, vale ainda destacar que até mesmo o valor da indenização referida no artigo traz discussões[2]. Isso porque há quem entenda que o Estado deveria pagar todas as parcelas da rescisão; outros entendem que a indenização corresponderia apenas à multa de 40% do FGTS e outros, ainda, entendem que seria devido apenas metade disso (20% do FGTS) e a outra metade deveria ser arcada pelo empregador.

Ou seja, há insegurança inclusive no que diz respeito ao valor indenizatório, outra questão a ser considerada uma vez que o empregador pode, mesmo que o ente público seja responsabilizado pelo pagamento de parte da indenização, não se desobrigar de todo o pagamento, mais ainda ter de arcar com boa parte das verbas. 


3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELOS DANOS LÍCITOS INDENIZÁVEIS 

Logo de início, deve-se trazer à baila o que preceitua o art. 37 da Constituição Federal de 1988:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Verifica-se, da leitura do dispositivo transcrito acima, que a Carta Magna brasileira consolidou que a responsabilidade civil da Administração Pública é objetiva, ou seja, prescinde da análise de culpa, bastando apenas a existência do ato praticado por agente público, no exercício da função, e do dano por ele causado.

Além disso, a maior parte da doutrina entende que tal responsabilidade objetiva deve ser encarada sob o prisma da Teoria do Risco Administrativo. Segundo Cavalieri Filho[3], para que o Estado responda pelos danos causados pelos seus agentes é preciso que eles tenham atuado nessa qualidade, ou seja, tenham praticado o dano em decorrência de sua atividade administrativa.

Importa dizer, ainda, que como Teoria do Risco que é, a licitude ou ilicitude do ato é irrelevante[4]. Desta feita, na Teoria do Risco Administrativo, inclusive atos lícitos podem ensejar o dever de indenizar por parte da Administração Pública. E é neste ponto que se centra o debate.

Isso porque diversos Estados e Municípios publicaram Decretos que determinaram que a população ficasse de quarentena, determinando ainda que diversas atividades empresariais não pudessem ser executadas com vistas a reduzir aglomerações e conter a disseminação do coronavírus.

Destaque-se que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) preceitua, em seu art. 196, que a “saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença [...]”. Ademais, deve-se ressaltar ainda que a Organização Mundial de Saúde (OMS), onde atuam alguns dos maiores especialistas em saúde pública de todo o mundo, recomendou o isolamento e a quarentena para o combate ao coronavírus.

Ou seja, se os empregadores sofreram danos ao ter a sua atividade restrita, não parece que tais danos tenham sido provocados de forma ilícita pela Administração Pública, uma vez que publicou Decreto que era de sua competência para cumprir um dever imposto pela Carta Primaveril. O fechamento das portas (ainda que temporariamente) de diversos empregadores, impossibilitando a obtenção de renda, fez com que tais empregadores sofressem o que pode ser caracterizado como dano jurídico lícito ou de dano lícito indenizável.  

Daí se extrai o primeiro ponto de debate: é possível que a Administração Pública seja responsabilizada pela indenização constante no art. 486, da CLT, por conta da prática do chamado dano lícito indenizável?

Em sua obra, Carvalho Filho[5] reconhece que moderna doutrina tem reconhecido que, em situações excepcionais, a Administração Pública pode ser responsabilizada civilmente pela ocorrência de danos lícitos decorrentes de seus atos. Argumenta, ainda, que os doutrinadores que assim pensam estabelecem que o dano, para ser indenizável, deveria ser (a) economicamente mensurável, (b) especial e (c) anormal.

Ainda sob esse mesmo enfoque, Gilmar Mendes[6] destaca que o dever de reparar o dano não se define pela licitude ou ilicitude do ato, mas sim pela qualificação da lesão sofrida. Nestes casos, o problema da responsabilidade civil não se analisa no lado ativo, mas sim no lado passivo: para ele, o que importa é que o dano seja ilegítimo, e não que a conduta causadora o seja. Desta feita, não bastaria a mera deterioração patrimonial sofrida por alguém, mas deveriam estar presentes quatro características: “1) o dano deve incidir sobre um direito; 2) o dano tem de ser certo, real; 3) tem de ser um dano especial; e, por último, 4) há de ocorrer um dano anormal”.

Que o dano é certo e real, além de economicamente mensurável, não se tem dúvidas. Que é anormal, também, tendo em vista a situação sem precedentes que o país enfrenta. Agora, quanto aos demais requisitos, há de se fazer uma análise mais profunda.

Sobre o dano dever incidir sobre um direito, Mendes[7] cita Celso Antônio Bandeira de Mello para destacar que tal dano deve ser mais do que simplesmente econômico.

Quanto ao fato de ter de ser um dano especial, leciona Mendes[8] que “é aquele que onera, de modo particular, o direito do indivíduo, pois um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não pode ser acobertado pela responsabilidade objetiva do Estado”. Ademais, Carvalho Filho[9] afirma que pode ser que uma lei nova contrarie os interesses de um grupo de indivíduos, mas esse fato, por si só, não enseja a responsabilização do Estado.

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Pois bem, diante de tal fundamentação teórica, tem-se que o dano deve ser mais do que simplesmente econômico, bem como que não interessa que o dano venha a atingir apenas um certo grupo de indivíduos; assim, se o ato causa um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não haverá o dever de indenizar.

Embora possa haver controvérsias, os danos sofridos pelos empregadores são eminentemente econômicos, uma vez que os Decretos não os impediram, de forma definitiva, de desempenhar suas atividades, mas tão somente determinaram a proibição de sua execução durante um período de tempo, o que provavelmente ensejará prejuízos eminentemente financeiros a eles.

Além disso, não restam dúvidas de que, muito embora os Decretos tenham atingido diretamente um determinado grupo da sociedade (no caso, os empregadores), os prejuízos daí advindos foram disseminados e atingiram a sociedade como um todo, causando um inquestionável prejuízo genérico de forma que todos - e não apenas um grupo restrito de empregadores - sofrerão com tais danos.

Fica claro, portanto, que o prejuízo, como dito, é compartilhado: o que dizer dos trabalhadores autônomos que ficaram impossibilitados de obter fonte de renda? Aqueles que vendem bala no trem, pipoca na rua, água no semáforo (...), todos ficaram igualmente prejudicados após a publicação de tais Decretos uma vez que, com a restrição para circulação de pessoas e da prática de atividades, também ficaram sem fonte de renda.

E o que dizer dos trabalhadores intermitentes que passaram a não ser mais convocados para o trabalho e, por conseguinte, também não puderam mais obter renda? E dos prestadores de serviços que perderam contratos? E daqueles trabalhadores que precisavam comprar insumos para produzir seus próprios produtos para vender mas não o puderam fazer porquanto as lojas estavam fechadas? Enfim, a lista daqueles que sofreram os danos seria interminável.

Ainda no que diz respeito ao critério da especialidade, veja-se que não foi um ou outro empregador que acabou por ser prejudicado pela medida; longe disso, os Decretos atingiram todos os empregadores que desempenhavam atividades não essenciais de forma genérica e impessoal. Todos compartilharam do prejuízo. Não restam, portanto, preenchidos os requisitos para que haja a responsabilização estatal.

Novamente citando Mendes[10], é preciso haver uma singularidade para que possa ser reconhecido o dever de o Poder Público indenizar em virtude de danos ou prejuízos sob pena de, se isso não ocorrer, os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos tornarem-se instrumentos protetores de privilégios e interesses corporativos. O que demanda atenção é que quando se fala em responsabilidade civil do Estado, se está falando da responsabilidade civil de toda a sociedade pelo ato praticado por um agente público. Prossegue o doutrinador afirmando que:

“Não se revela condizente com o Estado constitucional garantidor de direitos fundamentais impor à sociedade como um todo o ônus de arcar com vultosas indenizações decorrentes de danos causados pelo Estado, sem que isso seja objeto de uma investigação mais precisa e adequada às circunstâncias em que ocorreu o suposto fato danoso.

[...]

Direito a formação do interesse público calcado em interesses universalizáveis e publicamente justificáveis. As razões e os interesses forjados em um discurso e uma prática corporativos, sempre no sentido de impor à União ônus a que não deu causa, parecem forjar interesses unilaterais, sectários, e, frequentemente, obscurantistas, o que obviamente não se pode tolerar”.

 Destarte, percebe-se que aplicar o art. 486, da CLT, e esperar que a Administração Pública seja responsabilizada pelo pagamento da indenização ali prevista traz consigo um risco bastante grande de o Estado não vir a ser responsabilizado e, por conseguinte, de o empregador restar em mora para com o empregado que teve seu contrato rescindido, tendo em vista o não pagamento das verbas rescisórias.

Nesse caso em específico, faz-se absolutamente necessário analisar os fatos que deram origem à necessidade de a Administração Pública proceder da forma como procedeu. Conforme já visto, vive-se em meio a uma pandemia causada por um inimigo invisível - inimigo esse que é comum a todos, empregados e empregadores. Os atos praticados pela Administração Pública se deram no intuito de cumprir seu dever constitucional de prover saúde à população e evitar a proliferação de doenças; assim, optou-se por resguardar o interesse público em detrimento do particular, consolidando um princípio basilar do Direito. 

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Sobre o autor
Luiz Fernando Calegari

Advogado, OAB/SC 49886, sócio do escritório Fontes, Philippi, Calegari Advogados, graduado em Direito (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC), Especialista em Direito Civil (Rede LFG) e em Compliance Contratual (LFG), Mestrando em Direito (UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALEGARI, Luiz Fernando. Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT.: Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6149, 2 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80836. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Este artigo é uma atualização e um aprofundamento no estudo do artigo "Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT: rescindir o contrato de trabalho e esperar que o Governo pague a indenização? Não é bem assim!".

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