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O interesse público e a publicidade nas notificações de casos da covid-19

16/04/2020 às 10:45
Leia nesta página:

O artigo discute sobre a aplicação do princípio do interesse público no caso específico da crise gerada pela covid-19.

I – O DIREITO À PRIVACIDADE E OS DADOS SENSÍVEIS QUANTO À PESSOA

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O inciso X do artigo 5º da CF oferece guarida ao direito à reserva da intimidade assim como da vida privada. Consiste na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhe o acesso de informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área de manifestação existencial do ser humano. Está então presente um princípios que resguarda a necessária intimidade.

Por certo esta proteção encontra desdobramentos em outros direitos constitucionais que ainda se preocupam com a preservação das coisas íntimas e privadas, como, por exemplo, direitos à inviolabilidade pessoal

Com isso há o que chamamos dados pessoais sensíveis.

Dado pessoal sensível é qualquer dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. Em essência, são dados que podem ensejar algum tipo de discriminação em relação ao seu titular, ou ainda eventuais riscos de danos e ofensas à personalidade do titular, caso indevidamente utilizados, razão pela qual são protegidos de forma mais intensa pelas disposições dos arts. 11 e 12 da Lei Geral de Proteção de Dados.

Os dados pessoais referentes à saúde das pessoas naturais, expressamente considerados como sensíveis, tiveram alguns aspectos de seu tratamento alterados após a sanção da Lei Geral de Proteção de Dados. Essas mudanças ampliaram as possibilidades de tratamento do dado pessoal sensível de saúde, fazendo surgir importantes pontos de atenção para o setor da saúde.

Nessa Lei Geral de Proteção de Dados tem-se que o § 4º do art. 11 originalmente estabelecia que era vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica, exceto nos casos de portabilidade de dados quando consentido pelo titular.

A versão original do texto trazia, portanto, apenas uma possibilidade de controladores comunicarem ou compartilharem entre si dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica: nos casos de portabilidade de dados, com o consentimento do titular.

A nova redação do referido § 4º do art. 11 modificou a parte final do dispositivo, para estabelecer a referida proibição “(…) exceto nas hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, desde que observado o § 5º deste artigo, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, em benefício dos interesses dos titulares de dados, e para permitir: I – a portabilidade de dados quando solicitada pelo titular; ou II – as transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços de que trata este parágrafo.”

A nova versão, por sua vez, manteve a possibilidade de comunicação e compartilhamento de dados pessoais de saúde entre controladores nos casos de portabilidade com o consentimento dos titulares, mas expandiu as possibilidades de comunicação e compartilhamento, sem a necessidade de consentimento, para a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, em benefício dos interesses dos titulares de dados e para as transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços anteriormente mencionados.


II – A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

O que dizer com relação aos efeitos maléficos envolvendo a covid-19?

Como ficaria o princípio da supremacia do interesse público?

De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 99), o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é inerente a qualquer sociedade, sendo “a própria condição de sua existência”. Deste modo, podemos inferir que o princípio em comento é um pressuposto lógico do convívio social.

Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 113) esclareceu que a “primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a”. O autor frisa que essa supremacia “justifica-se pela busca do interesse geral, ou seja, da coletividade; não do Estado ou do aparelhamento do Estado”. Portanto, devemos abstrair interesse estatal e interesse público, aquele dos agentes administrativos, este dos administrados; aquele não tem o direito à primazia que este tem.


III – A COLISÃO DE PRINCÍPIOS

R. Dworkin (Taking Rights Seriously, p. 22) chama de princípio aquele standard que deve ser observado, não por ter em vista uma finalidade econômica, política, ou social, que se possa considerar favorável, mas porque seja uma exigência de justiça, ou equidade, ou alguma outra dimensão de moralidade.

Dizendo de maneira mais simples é o próprio autor quem resume: Princípios são proposições que descrevem direitos; diretrizes (políticas) são proposições que descrevem objetivos. Por isso que, segundo Dworkin, em geral, os argumentos de princípios se predispõem à defesa de direitos do indivíduo, enquanto argumentos políticos se propõem à defesa de interesses da coletividade.  

Enquanto as regras são aplicáveis a partir de um critério de tudo-ou-nada, este critério não vale para os princípios. Assim, ou a regra é válida e, então, se deveriam aceitar os seus efeitos jurídicos, ou a regra não é válida e, por isso, não fundamenta nem pode exigir qualquer consequência jurídica. Como a possibilidade de exceções não pode prejudicar esse resultado, uma formulação completa e a mais adequada de uma regra precisa incluir todas as exceções. Princípios, ao contrário, não determinam, quando verificado um caso de sua aplicação, uma decisão concludente segundo uma formulação pronta e acabada. Diversamente, os princípios veiculam motivos, que falam por uma decisão. Outros princípios que, de seu lado, segundo sua formulação seriam também aplicáveis, podem preceder um outro princípio no caso concreto. Aqui, porém, graças ao seu caráter não concludente, não se mostram necessárias (todas), como nas regras, as exceções que seriam de acolher numa formulação completa desse Princípio.

Princípios são mandamentos de otimização.

De forma geral, Alexy explicou que quando dois princípios fundamentais estão em conflito, é necessário avaliar qual deles que, quando aplicado, fere com menor agressividade e intensidade o outro.

No caso das medidas tomadas com relação a covid-19, sem dúvida, salienta-se o interesse público.

É preciso saber quem está infectado e sobre ele tomar as providências devidas que vão do isolamento até a internação dentro dos parâmetros técnicos que, para tanto, deve ser atendidos. Quando digo parâmetros médicos, recorro às lições da ciência médica que devem ser obedecidas, tudo a partir das recomendações da Organização Mundial de Saúde.

Tudo deve ir da recomendação estatal até a ordem.


IV – TIPOS PENAIS REPORTADOS

Para tanto, o Código Penal tipifica crimes abaixo listados.

Dispõe o artigo 268 do Código Penal:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Tutelam-se penalmente as medidas tendentes a evitar epidemias. No Código Penal da Argentina(artigo 205) pode se encontrar disposição análoga.

Trata-se de crime de menor potencial ofensivo.

O dispositivo protege a incolumidade pública no que concerne à saúde da coletividade. Objetiva-se punir a violação de uma providência de ordem sanitária preventiva, consubstanciada em medidas adotadas pela administração, circunstancialmente em lei ordinária, que vise a introdução ou a propagação de doença contagiosa (RT 390/316).

A conduta típica é infringir determinação do poder público, ou seja, violar, postergar, transgredir, quebrantar prescrição administrativa obrigatória.

Ensinou Magalhães Noronha (Direito Penal, volume IV, pág. 12) que a determinação violada há de ter por fim impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. Na primeira hipótese, cuida-se de impedir que ela entre, penetre em determinado lugar ou para ele venha. Na segunda, impede-se que se espalhe ou difunda no lugar.

O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária foi definido pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que foi modificada pela Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, e pela Medida Provisória nº 2.190 – 34, de 23 de agosto de 2001. Por sua vez, a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, dispõe sobre a vigilância sanitária a que se sujeitam os medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e outros produtos, e foi alterada pela Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999(que ainda estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos, e dá outras providências), pela Lei nº 10.669, de 14 de maio de 2003 e pela Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003. Ainda a Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, alterada pela Medida Provisória nº 2.190 – 34, de 23 de agosto de 2001, definiu infrações à legislação sanitária e deu outras providências. O Decreto nº 3.029, de 16 de abril de 1999, aprovou o Regulamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e deu outras providências e ainda foi alterado pelo Decreto nº 3.571, de 21 de agosto de 2000, e pelo Decreto nº 4.220, de 7 de maio de 2002.

É crime de perigo abstrato cuja objetividade jurídica é a proteção da incolumidade pública. O perigo é presumido, mas é indispensável que seja pelo menos possível, quando não presumível, como ensinava Manzini, citado por Heleno Cláudio Fragoso(Lições de Direito Penal, volume III, pág. 206).

O objeto da tutela jurídica é a incolumidade pública, envolvendo o perigo comum resultante da propagação de moléstias contagiosas em face da omissão de medidas preventivas.

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Fala-se,ainda, em doença contagiosa, que são aquelas que atingem o ser humano, não contemplando aqui as epizootias e epifitas.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. O sujeito passivo é a sociedade.

O crime é ainda formal, comissivo e excepcionalmente comissivo por omissão, unissubjetivo, plurissubsistente, admitindo tentativa. O crime consuma-se com a infringência da determinação do poder público, que integra o preceito, no que concerne à violação de normas que visem diretamente ao impedimento ou á propagação de doenças contagiosas.

O elemento subjetivo é o dolo genérico de perigo. O dolo deve estender-se ao conhecimento do regulamento e de seus fins, bem como da competência das autoridades e da obrigatoriedade do ato.

Discute-se a questão do erro.

A propósito, ensinou Fabbrini Mirabete(Manual de Direito Penal, volume III, 22ª edição, pág. 109) que a ignorância ou erro a respeito da determinação do poder público constitui erro sobre a ilicitude do fato, excluindo a culpabilidade, nos termos do artigo 21, caput.

Estamos diante de um exemplo de uma norma penal em branco na medida em que sanciona penalmente disposições regulamentares sanitárias. Na expressão de Binding: “A lei penal em branco é um corpo errante em busca de alma”. São os  tipos penais dos artigos 178 e 269 do Código Penal, e art. 2º, VI, da Lei nº 1.521/51, dentre outros exemplos.

Assim há normas penais cuja expressão escrita apresenta-se incompleta, pois o seu tipo incriminador vem a se ressentir de generalidade ou indeterminação.

A norma penal em branco necessita para suprir tal lacuna de buscar auxílio em outras fontes normativas(norma complementar), de hierarquia igual ou inferior. No caso em tela deve-se saber o que é determinação do poder público, ordens de órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado.

Por certo, dir-se-ia que se está diante de discricionariedade(conveniência e oportunidade do ato administrativo) que não poderia ser examinada pelo Judiciário, e ainda da legitimidade do poder de policia. Ensinou Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume IX, pág. 101), que a competência da autoridade de que emana a determinação, bem como a permissibilidade ou legitimidade da determinação(cabimento dos limites do poder de polícia), pode ser examinada pelo juiz, já não sendo assim a conveniência da medida adotada.

Discute-se a questão da revogação da norma complementar.

Entendeu Guilherme de Souza Nucci(obra citada, pág. 961) que caso o poder público revogue a medida, por considerá-la, por exemplo, inócua para o efetivo resultado pretendido, não há razão para punir o agente. No entanto, se a revogação se der porque já foi contida a doença, é preciso aplicar o artigo 3º do Código Penal, considerando ultrativo o complemento, mantendo-se a punição do agente.

Por sua vez, Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 202) considerou que o tipo objetivo consiste em infringir(violar, desobedecer) determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Sendo assim o complemento da norma pode ser constituído por qualquer ato normativo(portaria, decreto, regulamento) ou mesmo por outra lei, destinada à prevenção de moléstia contagiosa, contendo disposições imperativas e obrigatórias. Nessa linha, se entendeu que não visando a determinação, especificamente, à introdução ou propagação de doenças contagiosas transmissíveis por via área, bacilar ou por contato pessoal, e sim apenas a medidas genéricas de higiene, não dá margem à configuração do ilícito penal e sim à sanção de caráter administraivo(RT 389/332, 391/328, dentre outros).

Ainda para Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 202) se ocorrer a revogação das determinações do poder público, de sorte a excluir a ilicitude do fato, entende-se que deverão aproveitar o réu, retroagindo salvo se constituírem lei excepcional ou temporária. Acentua ainda Heleno Cláudio Fragoso: “É sabido que os autores alemães afirmam quase unanimemente a retroatividade no caso de alteração dos complementos das leis penais em branco(cf. Maurach, “Lehrbuch”, AT, § 12, III, A; Mezger, “Tratado”, I, 118), opinião a que se opõem, em geral, nossos autores(Nelson Hungria, I, nº 27). A nós parece que a hipótese não permite solução unitária. Em regra a alteração dos complementos da norma penal em branco, se descriminar a ação ou beneficiar o réu não pode deixar de retroagir. As disposições que complementam as leis penais em branco integram o conteúdo de fato da conduta incriminada e sua alteração representa uma nova valoração jurídica do mesmo. Todavia, essa regra não pode ser aplicada em casos como de tabelamento de preços e de estabelecimento de medidas sanitárias preventivas, em face de calamidade pública ou de outro fato análogo, dado o caráter excepcional dessas medidas(artigo 3º CP)”.

A favor da irretroatividade pronunciam-se: Nelson Hungria, Frederico Marques, Magalhães Noronha, Mirabete e Damásio de Jesus. Contrariamente tem-se as lições de Basileu Garcia e Paulo José da Costa Júnior.

Registra-se o ensinamento de Edilson Pereira Nobre Júnior(Cinco temas controvertidos do direito penal, Separata da Revista de Informação Legislativa, a.28, nº 109, janeiro/março, 1991), quando disse:

“Deve-se observar a natureza estável ou excepcional do complemento, de maneira a permitir a retroação no primeiro caso e vedá-la no último.

É que, possuindo foros de estabilidade, o complemento da norma penal, se modificando, importa em verdadeira alteração da figura abstrata formadora do tipo criminoso, ocasionando a abolitio criminis.

A contrario sensu, na hipótese de o complemento expressar circunstância excepcional, tendente a reger anormalidades efêmeras e passageiras da vida em sociedade, equiparando-se às leis penais previstas no art. 3º do Código Penal, albergando o apanágio da ultra-atividade.

Na situação primeira, a mutação na parte complementar do tipo reflete intensamente na antijuridicidade da conduta praticada, excluindo-a e, por via oblíqua, operando a descriminalização.

Passemos a cotejar a teoria aqui perfilhada com as modalidades em que se subdividem as normas penais em branco.

No que concerne às normas penais em branco em sentido amplo, cujo complemento promana de fonte legislativa da mesma hierarquia do preceito principal, vê sempre naquele o caráter de comando ordinário, visando disciplinar com estabilidade, relações jurídicas por lapso temporal indeterminado. Irrecusável, por conseguinte, a retroatividade in melius. É o que acontece, por exemplo, com os delitos dos arts 178, 184 e 237 do estatuto punitivo.

Doutro pórtico, nas normas penais em branco stricto sensu, complementadas por dispositivo de origem legiferante inferior, frequentemente atos administrativos normativos, a matéria é de ser deslindada por duas vertentes.

Não ostentando o complemento sinais de excepcionalidade, a sua ab-rogação, uma vez ultimada, conserva o condão descriminalizante. Exemplifico com as hipóteses do art. 269 do Código Penal e da Lei de Tóxicos, em que portaria futura poderá retirar o caráter de notificação compulsória da enfermidade, ou tóxico da substância traficada, respectivamente, por verificar que, em nenhum momento, elas apresentaram as características indicadas (vide MiRABETE, Manual de Direito penal, vol. I, Atlas, 1986, p. 74; e TJRS, Emb. Infr. 684.019. 425, RJTJRS 110/60).

Por último, colimando a fração integrante do tipo penal regular situações oscilantes, de elevado cunho excepcional, outra solução não se antepõe ao intérprete, senão a que informa o art. 3º do Código Penal, consagrador da ultra-atividade das leis excepcionais e temporárias. A irretroatividade é a senda a trilhar.

A esse respeito, encontramos os tabelamentos de preços nos crimes contra a economia popular(Lei nº 1.521/50) e as portarias que fixam regras de tráfego nos crimes cometidos no trânsito”.

Tem-se que a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante a sua vigência, dentro do que reza o artigo 3º do Código Penal.

Se o autor do crime for funcionário da saúde pública, médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro, que exercem a profissão, agrava-se especialmente a pena, uma vez que tais pessoas têm a obrigação de evitar a propagação ou introdução de doenças contagiosas pelo dever do cargo ou função que ocupam. Mas tal causa exige uma habitualidade na atividade do médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro. Lembra ainda Flaminio Fávero(Dos crimes contra a saúde pública, RT 338/579), que não incluiu a lei, como deveria, a agravação no caso de parteira e do médico veterinário diante, por exemplo, da peste dita bubônica, epizootia de ratos, sobretudo dos ratos de esgotos, que as pulgas transmitem desses roedores aos homens.

Nos termos do artigo 285 do Código Penal, aplica-se o disposto no artigo 258 do mesmo diploma legal, aos crimes contra a saúde pública, salvo quanto ao definido no artigo 267. Tratando-se de crime doloso, aumenta-se a pena da metade se resulta lesão corporal de natureza grave, e é ela aplicada em dobro se resulta morte. Trata-se, para o caso, de crime preterintencional.

Há, ainda o delito de omissão de notificação de doença.

O tipo penal está exposto no artigo 269 do Código Penal:

Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Trata-se de crime de menor potencial ofensivo.

Autoridade pública é o órgão do Estado encarregado de fazer cumprir as leis ou determinações do Poder Público. Será a autoridade, para o caso, apta a cuidar da saúde pública.

Por sua vez, doença de notificação compulsória é a enfermidade cuja ciência, pelo poder público, é obrigatória. Doença designa em medicina e outras ciências da saúde um distúrbio de um órgão, da psiqué ou do organismo como um todo que está associado a sinais e sintomas específicos. Pode ser causada por fatores externos, como outros organismos (infecções), ou por disfunções ou mal funcionamento interno, como as doenças autoimunes.

 Trata-se de norma penal em branco.

A doutrina ensina que trata-se de ilícito penal que era geralmente previsto em leis estrangeiras como contravenção. Constava ele do Código de 1890(artigo 378) e assim o acolheu o Código italiano(artigo 717). Como contravenção foi previsto no Regulamento Toscano de Polícia Punitiva, de 1853(artigo 144 e 145), quando se referia à varíola e outras enfermidades contagiosas.

É crime de perigo presumido.

O objeto da tutela jurídica é a incolumidade pública, envolvendo o perigo comum resultante da propagação de moléstias contagiosas em face da omissão de medidas preventivas.

Estamos diante de um exemplo de uma norma penal em branco na medida em que sanciona penalmente disposições regulamentares sanitárias. Na expressão de Binding: “A lei penal em branco é um corpo errante em busca de alma”. Tem-se mais um exemplo, que se soma aos tipos penais dos artigos 178 e 269 do Código Penal, e art. 2º, VI, da Lei nº 1.521/51, dentre outros exemplos.

Assim há normas penais cuja expressão escrita apresenta-se incompleta, pois o seu tipo incriminador vem a se ressentir de generalidade ou indeterminação.

A norma penal em branco necessita para suprir tal lacuna de buscar auxílio em outras fontes normativas(norma complementar), de hierarquia igual ou inferior. No caso em tela deve-se saber o que é determinação do poder público, ordens de órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado.

A legislação brasileira tratou da matéria como se lê do Regulamento do Departamento Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto 16.300, de 31 de dezembro de 1923(febre amarela; peste; cólera e doenças coleiformes; tifo exantemático; varíola e alastrim; difteria; infecção puerperal; oftalmia dos recém-nascidos; infecções do grupo tífico-parasítico; lebra; tuberculose aberta; impaludismo, nas zonas em que existem focos de anofelinos; sarampo e outros exantemas febris; disenterias; meningite cérebro – espinhal epidêmica; paralisia infantil ou moléstia de Heide-Médin; tracoma; leishmaniose; coqueluche; parotidite epidêmica; gripe(influenza); angina epidêmica; diarréias infantis; envenenamentos alimentares(artigo 445). Somam-se a isso o Regulamento Sanitário do Distrito Federal(Decreto Municipal 9.761, de 21 de maio de 1945 ) e atos administrativos estaduais. Ainda tem-se em vista o artigo 169 da Consolidação das Leis do Trabalho); o Decreto-lei nº 891, de 25 de novembro de 1938(artigo 27), dentre outros diplomas normativos.

A lista de doenças de notificação compulsória é a contida na Portaria nº 5, de 21 de fevereiro de 2006, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, que ainda especifica entre aquelas as que são de notificação imediata, que deve ocorrer no prazo de 24 horas a partir da suspeita inicial da doença. A matéria é ainda regulada pelas Leis nº 6.259, de 30 de outubro de 1975 e ainda 6.437, de 20 de outubro de 1977, com alterações ditadas pela Lei nº 9.695, de 20 de agosto de 1998, pela Medida Provisória nº 2.190 – 34, de 2001, e pelo Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976.

Trata-se de crime próprio, pois o sujeito ativo somente pode ser um médico, não podendo praticá-lo o farmacêutico(RT 492/355). Como disse Heleno Cláudio Fragoso(Lições de Direito Penal, volume III, 5ª edição, pág. 205) a lei penal brasileira não exige(de forma diferente da lei italiana) que o agente tenha assistido ou examinado a pessoa enferma e conclui: “mas é evidente que o médico somente poderia fazer a comunicação, com a seriedade e responsabilidade exigidas, tendo-se certificado pessoalmente da existência da doença”. Há no tipo penal uma exceção ao dever de segredo que tem o médico dentro do que é inserido no artigo 154 do Código Penal. Ainda Guilherme de Souza Nucci(Código Penal comentado, 8ª edição, pág. 961) ensina que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. O sujeito passivo é a sociedade.


V - CONCLUSÕES

Pela prevalência do interesse público, deve ser divulgado o resultado dos exames das pessoas que, porventura, estejam infectadas pela covid-19. Essa prova é essencial para a investigação com relação a condutas nos crimes acima listados. Aqui não cabe a privacidade, mas os legítimos interesses da sociedade na defesa da propagação da doença e na censura a atos que possam trazer o perigo de dano à sociedade.

Mesmo o assintomático poderá transmitir a doença. Necessário que se saiba quem são esses assintomáticos.

Segundo um recente estudo publicado na revista Science, pessoas assintomáticas com Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV2), são responsáveis por dois terços das infecções. Essas transmissões enfatizam a importância de medidas de distanciamento social que estão sendo adotadas em comunidades americanas e europeias.

O alerta vem de um grupo de cientistas coordenado pelo médico Jeffrey Shaman, da Escola de Saúde Pública da Universidade Columbia, de Nova York, nos Estados Unidos.

O estudo mostra que, apesar de os pacientes que desenvolvem a doença serem duas vezes mais contagiosos, os assintomáticos chegam a ser seis vezes mais numerosos. Mesmo com propensão menor a infectar outros, tornam-se o motor dessa epidemia.

É preciso combater a atitude de pessoas infectadas que agem como se não estivessem. Será necessária a ampla publicidade dos casos julgados positivos para acabar essa triste praga.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O interesse público e a publicidade nas notificações de casos da covid-19. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6133, 16 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81067. Acesso em: 23 nov. 2024.

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