Capa da publicação Lei do RJ sobre passagens aéreas e pandemia pode contrariar MP da União?
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Lei 8.767/2020 do Estado do Rio de Janeiro e MP 948: como superar a aparente antinomia?

Leia nesta página:

Estudo sobre a possibilidade da lei estadual permanecer em vigor e quais as consequências que sua eficácia pode trazer ao setor turístico.

Introdução

 

     A Lei n. 8.767 de 23 de março de 2020 do Estado do Rio de Janeiro está em vigor desde a data de sua publicação e é mais uma medida do Estado para tentar conter a crise causada pela Pandemia da Covid-19, em decorrência do novo coronavírus (Sars-Cov-2). Ela dispõe sobre o cancelamento e remarcação de passagens aéreas, bem como de pacotes de viagens adquiridos no Estado do Rio de Janeiro. Ocorre que pouco mais de duas semanas depois de sua entrada em vigor, foi editada a Medida Provisória (MP) n. 948, que delibera de maneira diversa sobre os mesmos temas da lei fluminense. Diante dessa antinomia, há incertezas sobre qual norma deve ser aplicada pelo trade turístico e quais são os direitos dos consumidores.

     Por meio de  uma análise jurídico-econômico da lei estadual, este presente artigo científico objetiva solucionar tal conflito entre as normas, esclarecendo o que efetivamente está em vigor em relação ao cancelamento, remarcação e reembolso de valores relativos a serviços turísticos para as relações entre fornecedores e consumidores travadas no estado do Rio de Janeiro. Ao longo do estudo se buscará, especificamente, responder se a lei estadual permanece em vigor e o que ocorrerá se a Medida Provisória não for convertida em lei.

 


1. Do atual estágio da pandemia no Brasil e seus reflexos no trade turístico

 

     A pandemia ocasionou a decretação do Estado de Calamidade Pública por parte do Governo Federal e além de trazer preocupações com a saúde da população vem gerando divergências entre os governantes a respeito de quais políticas preventivas devem ser adotadas e como elas podem afetar a economia do País. Preocupado com a possibilidade de uma enorme recessão, o Governo Federal vem anunciando medidas econômicas de contenção à crise, a maioria delas de auxílio aos mais necessitados e à sociedades empresárias mais afetadas.

     Nesse contexto se destaca a situação de pessoas jurídicas que atuam no trade turístico, as quais vêm sentindo os impactos da crise econômica desde quando as notícias da Covid-19 ainda eram restritas ao que acontecia na China. Isso pode ser comprovado em números com os dados do mercado financeiro: as ações de companhias aéreas e as da CVC foram as que mais caíram na B3 no mês de fevereiro. Pressionados pelas companhias aéreas, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), o Ministério Público Federal e o Ministério da Justiça e Segurança Pública firmaram com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (ABEA) um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) com o objetivo de mitigar os impactos naturais que a pandemia irá causar, concedendo vantagens aos clientes que optarem por deixar como crédito junto à companhia aérea os valores pagos pelas passagens, sem a cobrança de qualquer multa.

 


2. A Lei Estadual 8767 de 2020 e seus impactos econômicos

 

     A 8767 do Estado do Rio de Janeiro foi na contramão das medidas econômicas que vinham sendo adotadas pelo Governo Federal até então. Ela determina que passagens aéreas e pacotes de viagens adquiridos no Estado poderão ser remarcados ou cancelados sem que se possa cobrar qualquer taxa extra ou multa e em caso de cancelamento o valor deverá ser ressarcido imediatamente ao consumidor[1].

     De imediato, salta aos olhos sua inviabilidade material. É notório que o objetivo do legislador estadual foi tutelar os consumidores fluminenses buscando conceder a eles liquidez financeira no período de crise. Contudo, não foram analisadas as peculiaridades dos fornecedores, o que torna essa iniciativa inócua.

     As agências de viagens, de acordo com o que dispõe a Lei Nacional do Turismo (Lei 11.771/08), são meras intermediadoras de atividades econômicas entre o consumidor e fornecedores de serviços turísticos. Elas não dispõem dos valores recebidos pelas vendas realizadas, o valor do seu serviço é apenas o de uma comissão sobre o preço do pacote[2]. Os valores pagos pelos seus clientes são imediatamente remetidos aos que fornecerão o serviço: companhias aéreas, hotéis, receptivos, casas de espetáculo, etc.

     Pela lógica da Lei Estadual 8767 de 2020 as agências de viagem devem imediatamente ressarcir aos clientes o valor integral do pacote, mas não há essa obrigação por parte daqueles que dispõem do dinheiro (exceto companhias aéreas).

     A obrigação do ressarcimento imediato é apenas de agências e companhias aéreas. Uma análise estritamente jurídica pode não trazer qualquer espanto, em razão da solidariedade que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) impõe aos fornecedores em seu art. 12, mas na prática isso implica em atribuir uma onerosidade extremamente excessiva a um agente em específico do mercado, haja vista que, reitera-se, as agências de viagem faticamente não dispõem dos valores pagos pelos seus clientes.

     Companhias aéreas possuem um valor econômico muito superior ao das agências de viagens e mesmo assim a divulgação dos dados relativos ao balanço do mês de março da Gol e da Azul foi bastante alarmante. Nas agências de viagem a tendência é que os impactos sejam ainda maiores, e a imposição da obrigação legal de ressarcimento imediato pode acarretar a falência de muitas delas.

     É por esse impacto econômico iminente que a incerta eficácia da Lei Estadual está a assombrar consultores de viagens e gestores de agências.

 


3. MP 948 e a eficácia da Lei Estadual

 

     De acordo com o artigo 24, V e VIII, da Constituição (CRFB) os Estados detém competência concorrente para legislarem sobre consumo (o que inclui o ressarcimento), observadas as normas gerais traçadas pela União.

     No que tange ao ressarcimento imediato de valores de serviços turísticos não havia por parte da União norma o impondo ou o proibindo para resoluções contratuais não causadas pelo fornecedor[3]. Era no âmbito dessa omissão legislativa da União quanto a sua competência de editar normas gerais que surgia a possibilidade de os Estados legislarem plenamente sobre o assunto, conforme dispõe a CRFB[4].

     Com a superveniência da Medida Provisória 948 não há mais omissão. A União, observando a relevância e urgência do socorro aos empresários do trade turístico e visando uniformizar o tratamento dado ao ressarcimento dos consumidores pelos serviços turísticos não prestados em razão do caso fortuito/força maior que é a pandemia da Covid-19, editou a Medida, que tem caráter de lei sob condição resolutiva e que surte efeitos imediatos.

     Desde o dia 08 de abril de 2020 há uma norma geral da União dispondo que os fornecedores nãos serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que acordem quanto à remarcação, reembolso ou alguma outra medida. Dispõe também que se tal acordo não for possível o fornecedor deverá restituir o valor integralmente pago no prazo de doze meses, corrigido monetariamente[5].

     Diante da existência de duas normas que tratam do mesmo tema de forma diametralmente oposta, é natural que os consumidores e empresários do setor turístico fluminense se perguntem sobre qual política deve ser adotada para os cancelamentos/reembolsos.

     A resposta para tal questionamento está na própria CRFB, que aponta a solução para o conflito que possa existir entre uma norma estadual que abordava uma temática de forma plena e, supervenientemente, surge norma da União – dentro do seu limite constitucional para dispor sobre normas gerais – normatizando o tema de forma completamente diversa. A norma estadual deve ficar suspensa naquilo que conflitar com a federal.

     Nessas situações a norma estadual não é revogada, porque tanto a União quanto os Estados são entes federativos autônomos e possuem competências legislativas específicas, não há hierarquia entre normas federais ou estaduais. O que há são campos de atuação e uma permissão constitucional para os Estados exerçam a função legislativa plena enquanto a União não exerce sua competência. Editada norma da União essa permissão se esvai e a norma estadual perde sua eficácia nas disposições que forem contrárias às normas gerais[6].

     Como a Lei 8767 do Estado do Rio de Janeiro possui disposições completamente antagônicas à norma geral, ela está com sua eficácia completamente suspensa desde o dia 08 de abril de 2020. Hoje o que deve guiar os cancelamentos, ressarcimentos e remarcações de serviços turísticos são as normas da MP 948.

 


4. Da hipotética retomada de eficácia da Lei Estadual e dos seus efeitos pretéritos

 

     Compreendido que a Lei Estadual está com sua eficácia suspensa, cumpre indagar quais podem ser os cenários futuros para o caso de a Medida Provisória não ser convertida em lei e o que ocorre com as relações jurídicas firmadas antes da entrada em vigor da MP.

     Aqui não se pode fazer um exercício de futurologia, porque muitas variáveis podem ocorrer no período em que a medida tramita no Congresso Nacional. Apenas exemplificando algumas, a MP pode: ser aprovada integralmente; ter seu texto alterado; caducar; ou ser rejeitada.

     Se ela for aprovada é mantido o cenário atual. Caso venha a ser alterada, devem ser utilizados os mesmos parâmetros utilizados no capítulo anterior e se com as mudanças alguma disposição da Lei Estadual passar a ser compatível, voltará a ter eficácia.

     Se ela caducar ou for rejeitada surgem outras duas variáveis: Congresso deve editar Decreto Legislativo disciplinando o que irá ocorrer com as relações jurídicas constituídas na vigência da MP[7]; em não sendo editado tal decreto tais relações seguem sendo por ela regidas[8].

     Portanto, os acordos firmados durante o período em que a MP esteve em vigor ou serão regidos por disposições específicas elaboradas pelo Congresso, ou continuarão seguindo a MP, mesmo que ela tenha sua eficácia exaurida.

     O que ainda pode suscitar questionamentos é a volta da eficácia da Lei Estadual caso a MP caduque ou seja rejeitada. É o que irá ocorrer de forma automática, pois o Estado tornará a ter a competência legislativa plena e as preocupações com a solidez financeira dos fornecedores do setor turístico fluminense retornarão.

     Para essa hipotética situação e também para os casos de reembolsos já efetuados segundo a lei fluminense no período em que esteve vigente (de 23/03 a 08/04 de 2020) a solução deve ser a arguição de inconstitucionalidade da lei.

 

4.1 Inconstitucionalidade da Lei Estadual

 

     Há interesse dos empresários do setor de aviação e de agenciamento turístico do Estado do Rio de Janeiro em pleitearem a inconstitucionalidade da Lei Estadual 8767/2020, seja porque ela já pode ter sido utilizada para fundamentar um reembolso integral, seja porque há a possibilidade de ela voltar a ter eficácia.

     O Judiciário deve ser provocado para se manifestar sobre até que ponto essa disposição do legislador fluminense não ultrapassa as questões consumeristas e interfere diretamente na livre iniciativa, um dos fundamentos da República e princípios da ordem econômica[9].

     Pelo que já foi comentado aqui, impor a agências de viagens e companhias aéreas o imediato reembolso e sem cobrança de multas, de forma diversa com o que dispõe a legislação civil, consumerista e até mesmo TAC firmado por diversos órgãos federais, extrapola o âmbito da defesa do consumidor – até porque, na prática os consumidores teriam muita dificuldade em receberem de forma imediata esses valores – e atinge a liberdade dos empresários de gerirem seus negócios, especialmente em tempos de crise. A ordem econômica no Brasil é capitalista, o que requer intervenções pontuais do Estado na economia[10] e esta intervenção proposta pelo Rio de Janeiro não é pontual.

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     O STF já analisou situações em que esses temas estão em conflito e vem decidindo pela inconstitucionalidade das normas estaduais. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5158 o Pretório Excelso reconheceu a inconstitucionalidade formal de lei do Estado de Pernambuco que determinava às montadoras e concessionárias fornecimento de carro reserva aos consumidores em casos de reparos superiores a quinze dias em automóveis que ainda estivessem no período de garantia. Entendeu a Corte Superior pela violação da competência concorrente e dos princípios da isonomia, livre iniciativa, e livre concorrência. Destaca-se a citação da criação de um ônus que atingiria apenas a fornecedores de determinada localidade. A situação do julgado em muito se amolda a que se está a analisar.

     Na ADI 3623, o voto vencedor do Ministro relator Ricardo Lewandowski indicou que uma lei do Distrito Federal violou competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de proteção ao consumidor (uma forma diferente de se analisar o art. 24, V e VIII da CRFB à luz do seu §1º). Ainda segundo o relator, não seria razoável que uma lei estadual estabelecesse “restrições sobre os débitos que não podem ser inscritos” e criasse “privilégios ou situações não isonômicas em determinada região”.

 


Conclusão

 

     Conforme analisado no decorrer do estudo, o conflito entre a norma estadual e a federal é meramente aparente. Ficou demonstrado que a Lei Estadual 8767/2020 do Rio de Janeiro está com sua eficácia suspensa desde que foi editada a MP 948 e, em razão disso, as discussões a respeito do conteúdo e aplicação da lei fluminense ficam restritas ao curto período anterior à edição da MP e para um cenário de não aprovação da Medida no Congresso Nacional. Ainda assim, há interesse de que seja levado ao Judiciário questionamento a respeito de sua constitucionalidade.

     Pelo que fora analisado e de acordo com a jurisprudência do STF, a recém sancionada Lei 8767 do Estado do Rio de Janeiro padece de evidente inconstitucionalidade material, ao interferir diretamente na livre iniciativa, ferindo a isonomia existente no mercado e impondo ônus excessivos a determinados setores do trade turístico. Portanto, é imperioso que um dos legitimados constitucionais leve de imediato esta temática à análise do STF, ante as consequências graves que sua posterior vigência pode vir a ocasionar. Para as situações pretéritas, cabe àquele que se sentiu prejudicado questionar incidentalmente a inconstitucionalidade da lei em uma ação ordinária.

 


Referências

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm >. Acesso em: 17 abr. 2020.

 

BRASIL. Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 18 abr. 2020.

 

BRASIL. Medida Provisória nº 948, de 08 de abril de 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv948.htm >. Acesso em: 17 abr. 2020.

 

______. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3623. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000265140&base=baseAcordaos>. Acesso em: 16 abr. 2020.

 

______. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 5158. Relator: Ministro Roberto Barroso. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000266859&base=baseAcordaos>. Acesso em: 16 abr. 2020.

 

RIO DE JANEIRO. Lei Estadual 8767, de 23 de março de 2020. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391475 >. Acesso em: 10 abr. 2020.

 

THOMAZELLI, D.R.; LIMA, L.G. Primeiras impressões a respeito da MP 948. Disponível em: < https://www.panrotas.com.br/mercado/opiniao/2020/04/advogado-e-turismologa-analisam-as-medidas-da-mp-948_172717.html>. Acesso em 15. abr. 2020.

 


Notas

[1] Artigo 1º da Lei 8767 de 2020 do Estado do Rio de Janeiro.

[2] Art. 27, §2º da Lei do Turismo.

[3] O artigo 53 do CDC e sua interpretação dada pelo verbete de número 543 da súmula do Superior Tribunal de Justiça falam de restituição imediata para resolução causada por culpa do fornecedor. O que se tem no cenário atual é uma desistência por parte do consumidor ou a impossibilidade da realização da viagem em razão do caso fortuito/força maior, o que isenta o fornecedor de culpa.

[4] Art. 24, §3º, CRFB.

[5] Artigo de nossa autoria publicado originariamente no Panrotas analisa a constitucionalidade das disposições da MP 948: https://jus.com.br/artigos/81305/primeiras-impressoes-a-respeito-da-mp-948.

[6] Art. 24, §4º, CRFB.

[7] Art. 62, §3º, CRFB.

[8] Art. 62, §11º, CRFB.

[9] Art. 1º, IV e 170, IV da CRFB.

[10] De acordo com o que dispõe o art. 174 da Carta Política, a intervenção deve ser apenas para normatizar e regular, fiscalizando, incentivando e planejando. A norma estadual nada incentiva e ajuda no planejamento das agências de viagens e companhias aéreas.

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Sobre os autores
Daniel Rodrigues Thomazelli

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Direito com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal Fluminense.

Laísa Galvão de Lima

Turismóloga. MBA em Gestão de Empreendimentos Turísticos pela Universidade Federal Fluminense. Consultora de Viagens.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMAZELLI, Daniel Rodrigues ; LIMA, Laísa Galvão. Lei 8.767/2020 do Estado do Rio de Janeiro e MP 948: como superar a aparente antinomia?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6138, 21 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81376. Acesso em: 3 dez. 2024.

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