Capa da publicação Covid-19 e o atraso na entrega de obras. Incorporadora pode ser perdoada?
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Reflexos da covid-19 nas incorporações imobiliárias:

da exclusão da responsabilidade do devedor que exceder o prazo de tolerância

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Analisa-se o embate jurídico que está a ressurgir com a pandemia da covid-19 quanto à limitação da não responsabilização civil dos incorporadores pela não entrega do imóvel na data estabelecida ao período do prazo de tolerância.

Introdução

A pandemia causada pelo novo Coronavírus (Covid-19) vem suscitando debates acadêmicos a respeito de institutos existentes no direito pátrio que possuíam pouca efetividade, em razão da baixa incidência dos motivos que pudessem atrair a sua aplicação. Com a Covid-19, o caso fortuito/força maior, a teoria da imprevisão e a da onerosidade excessiva tenderão a ser invocados em demandas judiciais e os magistrados terão de enfrentá-los, porque é fato público e notório que se está vivendo uma situação imprevisível[1].

Partindo-se dessa premissa, em uma análise superficial, todos os negócios jurídicos – em tese – podem ser revistos e os inadimplementos não poderão ser imputados àqueles que, em razão da pandemia, não tiveram como cumprir com suas obrigações[2]. Contudo, há pelo menos uma modalidade negocial em que essa conclusão não poderá se dar de forma automática e é sobre ela que se propõe uma reflexão acurada.

 Um ponto específico dos contratos de compromissos de compra e venda decorrentes das atividades de incorporação imobiliária tenderá a ser rediscutido no Judiciário no pós-pandemia e se visualiza grande possibilidade de serem prolatadas decisões conflitantes por juízes singulares e tribunais, ocasionando uma indesejada insegurança jurídica. Trata-se da inclusão das hipóteses extraordinárias (casos fortuitos/força maior) no período da “cláusula de tolerância”.

As incorporações imobiliárias representam um setor importante da economia brasileira[3] e seus desdobramentos legais são objeto de frequentes lides no Judiciário. A temática é de relevo nos Tribunais de Justiça[4] e se destaca no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela consolidação de sua jurisprudência[5], o que juntamente com uma recente alteração legislativa trouxe maior estabilidade às relações entre incorporadores e consumidores finais, contribuindo para o desenvolvimento da economia[6].

A citada “cláusula de tolerância” é uma praxe do mercado, acrescida aos contratos de promessa de compra e venda para mitigar os efeitos de fatores que influenciam no andamento das obras. A fixação de um prazo após a data prevista para a entrega do imóvel, dentro do qual se exclui qualquer responsabilidade do incorporador por atrasos e se impede a resolução por inadimplemento, mitiga a dificuldade da fixação de uma data específica para a entrega do empreendimento.

O STJ e o legislador já se debruçaram sobre os constantes questionamentos a respeito da legalidade dessa cláusula, mas se omitiram quanto à análise de outra praxe do mercado, que era excluir do prazo de tolerância situações extraordinárias. O enfrentamento dessa questão não se fez necessário até que um caso fortuito ou força maior de fato ocorresse.

A atual pandemia ocasionada pela Covid-19 traz novamente à baila o questionamento sobre a limitação absoluta da não responsabilização do incorporador ao período englobado pelo prazo de tolerância. O presente artigo tem por objetivo responder a esse questionamento e para tal se fará necessário estudar, por meio de análise legal e jurisprudencial,  o cenário pré-pandemia da Covid-19 no que tange às incorporações imobiliárias. Mister também promover uma breve incursão doutrinária a fim de encontrar subsídios para responder qual a real adequação das hipóteses de caso fortuito/força nos contratos de promessa de compra e venda.

1 Das Incorporações Imobiliárias

As incorporações imobiliárias não são uma espécie de contrato, apesar de às vezes serem confundidas com os contratos que dela derivam. Trata-se de uma atividade econômica que tem por objetivo a construção de imóveis, residenciais ou comerciais, cujo financiamento é feito pelos próprios adquirentes das unidades imobiliárias que serão construídas. De acordo com Paulo de Tarso Sanseverino, as incorporações imobiliárias constituem “uma modalidade negocial complexa”, têm como finalidade “[...] a venda antecipada de unidades imobiliárias visando obter recursos para construção e entrega no futuro das unidades habitacionais[7]”.

A atividade possui enorme densidade social, porque está diretamente relacionada ao direito social à moradia[8] e a um dos objetivos da República e princípio da liberdade econômica que é a livre iniciativa[9]. Dela decorrem inúmeras relações jurídicas, como as de trabalho, os contratos de corretagem, de permuta, de promessa de compra e venda, v.g. Por isso o direito confere especial atenção às incorporações, regulamentando-as na Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias (Lei n. 4.591 de 1964).

A lei conceitua incorporador, que é a pessoa física ou jurídica responsável por organizar todos os negócios que envolvem a atividade[10]. O incorporador pode ser o proprietário anterior do terreno ou não, mas ele sempre será o responsável pelo empreendimento[11]. Não deve ser confundido com o empreiteiro, apesar de poderem ser a mesma pessoa, porque a atividade fim do empreiteiro é entregar uma obra; o incorporador realiza algo muito mais complexo: montar o projeto, contratar os executores, realizar a parte de marketing, angariar capital, organizar os aspectos jurídicos, etc.

Por a atividade ter uma influência muito grande na economia do país e na vida das pessoas, a lei impõe formalidades para sua execução, cujo detalhamento não será aqui aprofundado por fugir ao objeto deste estudo, mas podem ser destacadas a necessidade do registro de um Memorial de Incorporação junto ao Registro Geral de Imóveis[12], bem como a possibilidade da criação de um patrimônio de afetação[13], que confere maior segurança aos adquirentes das unidades habitacionais para o caso de falência do incorporador.

Dentre os negócios jurídicos nela envolvidos, o que mais se destaca é a promessa de compra e venda firmada com os adquirentes das unidades imobiliárias. Por mais que a incorporação envolva negócios-meio, o objetivo final do incorporador é promover a compra e venda das unidades habitacionais, é por essa razão que no meio jurídico a atividade de incorporação imobiliária é automaticamente correlacionada com as promessas de compra e venda

Essa espécie do gênero contrato preliminar tem regulamentação expressa na Lei de Condomínios e Incorporações, mas até o ano de 2018 era a jurisprudência do STJ que traçava suas principais diretrizes. Por a lei ser bastante antiga e existir uma relação de consumo entre incorporador e promissário comprador, os embates entre a lei das Incorporações, as normas gerais de direito civil e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) vinham sendo balizadas pelo Tribunal da Cidadania[14].

No final do ano de 2018 foi aprovada a Lei 13.786, que visou solucionar a ineficácia da Lei específica, atualizando-a e prevendo normas gerais de proteção ao consumidor promitente-comprador. Ela trouxe parâmetros para fixação de cláusulas contratuais e esclareceu a aplicação de norma protetivas do consumidor, como a necessidade da previsão de um quadro-resumo, o destaque das cláusulas que tratem do distrato e a possibilidade de aplicação do direito de arrependimento.

Mesmo havendo questionamentos da doutrina quanto à constitucionalidade de algumas disposições trazidas à lei de incorporações, hoje se pode afirmar que há uma previsibilidade jurídica quanto aos temas atinentes aos contratos de promessa de compra e venda envolvendo incorporações imobiliárias, seja pela consolidação da jurisprudência do STJ, seja pela atualização da lei com enfoque específico neste contrato típico, o que estimula o desenvolvimento da atividade e fomenta efetivação do direito à moradia.

2 Do prazo de tolerância

Uma das normas originariamente previstas na Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias é a previsão de prazo de entrega das obras e a possibilidade de sua prorrogação[15]. Era comum nos contratos a previsão, abaixo da data prevista da entrega, de uma cláusula de tolerância – comumente de 180 dias – para a entrega do imóvel, sendo possíveis novas prorrogações em razão de circunstâncias que impedissem ou atrasassem o andamento das obras, como greves, suspensão de transportes e chuvas prolongadas.

Até o advento da Lei 13.786/18 havia questionamentos a respeito da recepção desse dispositivo legal pela atual Constituição e, por consequência, da constitucionalidade das cláusulas insertas nos contratos. Isso porque ficava ao alvedrio dos incorporadores a data da entrega do imóvel o que, notadamente, colocava o consumidor em desvantagem exagerada. Por meio de uma cláusula em um contrato de adesão o incorporador retirava qualquer previsibilidade de entrega da unidade habitacional.

O tema foi levado ao STJ e no julgamento do Recurso Especial 1.582.318 a Terceira Turma declarou abusiva a cláusula indiscriminada de tolerância, mas reputou razoável a previsão de até 180 dias da data fixada para a entrega, a título de tolerância, em razão das especificidades da atividade de construção civil, que está sujeita a condições climáticas e a outros fatores de imprevisibilidades. Vejamos um trecho da ementa do julgado:

[...] 6. A cláusula de tolerância, para fins de mora contratual, não constitui desvantagem exagerada em desfavor do consumidor, o que comprometeria o princípio da equivalência das prestações estabelecidas. Tal disposição contratual concorre para a diminuição do preço final da unidade habitacional a ser suportada pelo adquirente, pois ameniza o risco da atividade advindo da dificuldade de se fixar data certa para o término de obra de grande magnitude sujeita a diversos obstáculos e situações imprevisíveis.

7. Deve ser reputada razoável a cláusula que prevê no máximo o lapso de 180 (cento e oitenta) dias de prorrogação, visto que, por analogia, é o prazo de validade do registro da incorporação e da carência para desistir do empreendimento (arts. 33 e 34, § 2º, da Lei nº 4.591/1964 e 12 da Lei nº 4.864/1965) e é o prazo máximo para que o fornecedor sane vício do produto (art. 18, § 2º, do CDC). [...]

Mesmo havendo a previsão contratual da cláusula de tolerância, para o STJ sua incidência fática não pode se dar de forma automática. Em respeito ao princípio da informação, o consumidor deve ser previamente informado a respeito da necessidade da utilização da cláusula de tolerância e dos motivos para sua incidência[16].

Com a alteração legislativa de 2018, essa jurisprudência foi positivada na Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias:

Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador.

§ 1º  Se a entrega do imóvel ultrapassar o prazo estabelecido no caput deste artigo, desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, poderá ser promovida por este a resolução do contrato, sem prejuízo da devolução da integralidade de todos os valores pagos e da multa estabelecida, em até 60 (sessenta) dias corridos contados da resolução, corrigidos nos termos do § 8º do art. 67-A desta Lei. [...]

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Portanto, o que se tem consolidado atualmente é a possibilidade de aplicação desse prazo de tolerância, desde que devidamente pactuado[17]. Caso necessária sua aplicação o consumidor deve ser informado e em razão disso não poderá promover a resolução do contrato em razão do inadimplemento por parte do incorporador, porque os 180 dias se incorporam no prazo de entrega fazendo com que não haja inadimplência a ser reclamada.

O que não ficou claro na alteração legislativa e nem no julgado do STJ foi a possibilidade de exclusão da responsabilidade do incorporador pela não entrega do objeto do contrato em razão de situações imprevistas não diretamente ligadas à atividade. Ela se faz importante porque a nova sistemática legal é no sentido se responsabilizar de forma automática o incorporador pelo inadimplemento após ultrapassados os 180 dias, facultando ao promitente comprador realizar a resolução contratual com a devolução dos valores pagos ou cobrar perdas e danos pelo período de atraso superior ao prazo de tolerância[18].

3 Pandemia da Covid-19 e a sua caracterização como caso fortuito/ força maior

O artigo 393 do Código Civil (CC) enuncia: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes do caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizados”. O caso fortuito e a força maior, nesse sentido, são considerados excludentes da responsabilidade do devedor.

A doutrina há muito se debruça na tarefa de diferenciar os conceitos dos dois institutos. Para Sergio Cavalieri, “a imprevisibilidade é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto a inevitabilidade é o da força maior”[19]. Já a maioria dos doutrinadores relaciona a força maior a um evento da natureza e o caso fortuito ao fato humano não individualizado. Não obstante as divergências conceituais, a previsão legal traz consequências jurídicas idênticas quando da caracterização dos institutos, que é o que importa para o presente trabalho[20].

Embora com algumas variações, a lei e a doutrina apresentam dois requisitos que caracterizam o caso fortuito/ força maior: externalidade ou fato necessário, qual seja, o que não é determinado por culpa do devedor; inevitabilidade ou irresistibilidade, o fato deve ser imponderável e atual, que surge de forma avassaladora e seus efeitos são irresistíveis. Segundo Silvio Rodrigues:

[...] a imprevisibilidade do evento não constitui requisito do caso fortuito, pois, embora previsível o fato, não raro a vítima não se pode furtar à ocorrência, nem lhe resistir aos efeitos. A imprevisibilidade pode, contudo, intensificar o elemento irresistibilidade, pois, se o devedor não podia prever o acontecimento, mais difícil lhe seria resistir aos efeitos[21].

Posto o conceito e apresentados os requisitos para sua caracterização, é possível explicar juridicamente o porquê da conclusão feita na introdução de que a pandemia decorrente da infecção por Covid-19 configura situação de caso fortuito ou força maior. As determinações de fechamento do comércio e indústrias, além de restrições de transportes, ocasionaram falta ou falha no abastecimento de produtos em todos os setores. Sem mencionar que a situação em que se encontra o país hoje não poderia sequer ser imaginada há poucos meses. Assim, nos termos do que leciona Sílvio Rodrigues, quanto maior a imprevisibilidade do evento, mais irresistível ele se torna[22]. É fato público e notório que esse é o cenário nacional atual: evento com alto grau de imprevisibilidade e difícil de sofrer resistência por parte do devedor.

Ainda dentro desta temática, cumpre esclarecer os institutos jurídicos do fortuito interno e fortuito externo. O fortuito interno está relacionado com a atividade exercida pelo devedor. Já o fortuito externo é um fato externo a ela.

Em razão do risco da atividade que deve ser suportado pelo empresário, doutrina e jurisprudência só admitem a exclusão da responsabilidade civil quando se tratar de fortuito externo, uma vez que o fortuito interno é considerado um evento evitável por quem desenvolve a atividade. Este é o teor do Enunciado 442, da V Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal: “O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida”.

Pandemias/epidemias de enorme escala devem ser enquadradas como fortuitos externos[23], por serem absolutamente imprevisíveis na realidade pátria até o surto da Covid-19[24], ao passo que os demais fenômenos comumente citados como excludentes de responsabilidade nos contratos, tais como chuvas, escassez de insumos, falta de mão-de-obra, greves e fatos do príncipe, são fortuitos internos, porque previsíveis pelo incorporador.

Esclarecidos os institutos jurídicos pertinentes, cumpre relacioná-los com o objeto principal do presente estudo: a possibilidade de exclusão, ou não, da responsabilidade do devedor (incorporador) caso extrapole o prazo de tolerância estipulado nas relações concernentes a incorporações imobiliárias em decorrência das consequências da Covid-19.

4 O prazo de tolerância e sua aplicação tão somente quanto ao fortuito interno

Como nem Lei nº 4.591/64 – mesmo com as alterações trazidas pela Lei nº 13.786/18 – nem a jurisprudência do STJ mencionam situações que caracterizariam caso fortuito/ força maior e como não se tem conhecimento de insurgências com relação a essa omissão, não se afigura impossível a interpretação de que a não responsabilização do incorporador pelo atraso na entrega se limite ao período do prazo de tolerância.

Pela interpretação literal da Lei de Incorporações Imobiliárias, tem-se que o legislador considerou que os fatos jurídicos naturais e extraordinários estariam abarcados pelo prazo estipulado. Todavia, a hermenêutica, em sua concepção mais moderna, oferece ao intérprete mais aparatos do que a simples interpretação literal do texto da lei. As mudanças sociais tornam-se importantes vetores na análise do texto escrito e seus possíveis significados. Dentro de uma interpretação sistemática dos institutos da parte geral do Direito das Obrigações, detalhados acima, com a disposição da Lei nº 4.591/64, chega-se à conclusão de que o prazo de tolerância diz respeito exclusivamente aos fortuitos internos.

A responsabilização do incorporador pela não entrega de um empreendimento na data contratualmente estabelecida em razão de fortuitos externos seria desarrazoada. Extrapola qualquer limite hermenêutico interpretar que o legislador quisesse fixar um prazo que abarcaria situações inimagináveis em tempos de normalidade. Não é por outra razão que existe previsão legal que fundamenta a teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva (artigos 317 e 478, do CC[25]). Segundo tais teorias, há a inexigibilidade da prestação em razão de alteração superveniente das circunstâncias, desde que essa alteração seja consequência de fatos extraordinários e imprevisíveis, uma vez que se considera subentendida nos contratos a cláusula rebus sic stantibus.

A consequência desses fatores para as teorias é a revisão contratual ou resolução contratual, lembrando que, mesmo para a teoria da onerosidade excessiva, há a opção de revisão (art. 479, do CC[26]). Segundo a doutrina há quatro princípios que orientam a teoria contratual contemporânea: autonomia privada, boa-fé objetiva, função social do contrato e justiça (ou equilíbrio) contratual[27]. E as previsões legais que embasam tanto a teoria da imprevisão, quanto a da onerosidade excessiva pautam-se justamente na justiça contratual. A revisão, como opção quando da caracterização da teria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, norteia o presente estudo ao possibilitar que incorporador e consumidor repactuem o negócio à luz da nova realidade fática, em oposição a uma potestade do consumidor quanto à resolução.

A situação vivenciada no país e no mundo durante a pandemia da Covid-19 não diz respeito só aos cuidados e investimentos na área da saúde, mas tem graves reflexos no plano econômico. O setor produtivo deve ser preservado, mas sem desvirtuar a proteção que o ordenamento oferece ao consumidor. Porém, a proteção ao consumidor deve também ser pautada sob a luz do princípio da harmonia dos interesses[28], mantendo o equilíbrio entre ela e o desenvolvimento econômico.

Apesar de adequada a reflexão, as premissas aqui apresentadas não se baseiam estritamente em uma análise econômica do direito (AED). Os magistrados devem sim se preocupar com as consequências de suas decisões[29] e no momento em que as atividades econômicas sofrem grandes impactos em razão da pandemia, o consequencialismo deve pesar quando da aplicação do citado princípio da harmonia, não podendo relações consumeristas serem julgadas da mesma forma que no período pré-pandemia, sob pena de agravamento da crise. A AED não foi o cerne deste estudo, porque não se fez necessária uma interpretação extrajurídica para se chegar as conclusões apresentadas, não obstante também deve ser considerada. O fortuito externo não está inserido no prazo de tolerância por questões estritamente jurídicas, alcançadas por meio de uma interpretação à luz da hermenêutica moderna.

Conclusão

Mesmo sem o respeito ao “prazo de tolerância”, pode sim o incorporador se eximir da responsabilidade civil prevista em lei, mas apenas quando ocorridos eventos que se enquadram como fortuito externo. O prazo legal diz respeito tão somente às hipóteses inerentes ao risco da atividade (fortuito interno).

Sob a perspectiva da construção civil, a pandemia decorrente das infecções causadas pela Covid-19 tem um grau de imprevisibilidade muito maior que chuvas ou falta de mão-de-obra, o que aumenta o grau de irresistibilidade do incorporador.

Assim, considerando todas as peculiaridades da pandemia, a necessidade de fortalecimento da atividade econômica nacional, a harmonização entre a defesa do consumidor e o desenvolvimento econômico, deve-se admitir a exclusão da responsabilidade do devedor quando extrapolar o “prazo de tolerância” por infortúnios provocados direta ou indiretamente pelas ações governamentais de diminuição dos impactos da Covid-19 no país. Isso porque está caracterizada, neste caso, a teoria da imprevisão/onerosidade excessiva, segundo a forma prevista nos artigos 317, 478 e 479, do CC. São justamente essas teorias que não permitem a responsabilização do empreendedor quando sobrevenha evento absolutamente imprevisível e sem ligação alguma com a sua atividade (fortuito externo), como é a pandemia da Covid-19.

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Sobre os autores
Daniel Rodrigues Thomazelli

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Direito com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal Fluminense.

Juana Rizzatti Mendes

Analista Judiciária na Justiça Federal da 1ª Região. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMAZELLI, Daniel Rodrigues ; MENDES, Juana Rizzatti. Reflexos da covid-19 nas incorporações imobiliárias:: da exclusão da responsabilidade do devedor que exceder o prazo de tolerância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6173, 26 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81880. Acesso em: 26 abr. 2024.

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