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Um caso concreto de ilícito para a cura contra a covid-19

21/05/2020 às 11:00
Leia nesta página:

O MPF solicitou que o YouTube retire do ar vídeos nos quais o pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, anuncia falsa cura para a covid-19 por meio da venda de sementes de feijão.

I – O FATO

O MPF (Ministério Público Federal) solicitou que o YouTube retire do ar vídeos nos quais o pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, anuncia uma falsa cura para o novo coronavírus por meio da venda de sementes de feijão. O órgão deu prazo de cinco dias para a empresa tomar as devidas providências. Não há cura ou mesmo vacina para a covid-19 confirmada até o momento pela OMS (Organização Mundial da Saúde). A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) também afirma que não há remédio aprovado para a doença no momento, e que propagandear falsas curas pode ser passível de punição.


II – CURANDEIRISMO  

Art. 284 - Exercer o curandeirismo:

- prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;

II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;

III - fazendo diagnósticos:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Mais um crime de menor potencial ofensivo sob o qual pode ser utilizado o benefício da transação penal.

O Código Penal de 1890 dispunha que “Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, assim, o oficio denominado curandeiro”. A pena era de prisão celular, por um a sete meses, e multa.

Na lição de Nelson Hungria (Obra citada volume IX, pág. 154) enquanto o exercente ilegal da medicina tem conhecimentos médicos, embora  não esteja devidamente habilitado para praticar a arte de curar, o charlatão pode ser o próprio médico que abastarda a sua profissão com falsas promessas de cura, o curandeiro é o ignorante, sem elementares conhecimentos da medicina, que se arvora em debelador de males corpóreos.

O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, porém, não o médico, nem pessoa que tenha conhecimentos médicos, embora não legalmente habilitada. O crime é sempre praticado por curandeiro, pessoa ignorante, rude, sem conhecimento médico qualquer e que se cuida à  cura de doenças por meios extravagantes e grosseiros, como ensinava Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 269).

A habitualidade é elemento constitutivo do crime, nela residindo o perigo para a saúde pública. Não se admite a tentativa.

O curandeirismo é crime de perigo abstrato, formal, não se exigindo dano concreto.

Trata-se de crime habitual.

A ação criminosa consiste em:

a) Prescrever (receitar, recomendar, ministrar ou aplicar qualquer substância vegetal (vegetal, animal, mineral), pertença ou não a qualquer farmacopeia oficial, tenha ou não virtudes medicinais;

b) Usar palavras, gestos ou qualquer outro modo para contemplar a atividade misteriosa e o recurso à magia;

c) Fazendo diagnósticos, não se exigindo qualquer ação de cura, pois o simples diagnóstico se configura em crime (RT 516/345).

Discute-se a confusão entre o curandeirismo e a prática religiosa. A esse respeito, mister que se lembre a lição de Nelson Hungria (obra citada, volume VI, pág. 155-156):

“Sem dúvida alguma, há de tolerar-se o espiritismo como religião ou como filosofia. Não se pode vedar a crença nos seus postulados (existência de Deus, da alma e do “corpo etéreo”, imortalidade do espírito e sua evolução por estágios sucessivos, comunicação entre este mundo e dos espíritos, reencarnação, etc); mas o que é de todo inadmissível é por certos fenômenos, já explicados pela ciência e que nada têm a ver com o sobrenatural, sejam empiricamente provocados, quando não simulados, por meio de truques já completamente desacreditados para o fim de tratamento de enfermidades”.

Há o entendimento de que se deve distinguir “o que é feito por devoção religiosa daquelas práticas que infringem a disposição penal”. Desta forma se a cura é pedida comunitariamente, através de orações, pura questão de fé, a prática não configura o delito de curandeirismo, em respeito à liberdade de culto que é assegurada pela Constituição (RT 446/414, 452/406, 577/384, 642/314). Os chamados “ passes”, que fazem parte do ritual e são espécie de benção para fins espirituais, não propriamente para fins curativos, não constituem o curandeirismo (RT 340/274, 404/282). Por certo, não constitui crime a prática do espiritismo como religião, como disse Antonio Motta Neto (Curandeirismo. Justitia 91/385).

Já se entendeu que é crime de curandeirismo o uso de passe ou a indicação ou doação de remédio aos doentes chamados benzedores, ainda que gratuitamente, não excluindo o ilícito a circunstância de ser o infrator um místico, um idealista, um caridoso (RT 205/704).

O tipo subjetivo é o dolo genérico, consistente na vontade conscientemente dirigida ao exercício do curandeirismo. Se houver fim de lucro, haverá aplicação adicional de pena de multa. Se ocorrer morte ou lesão corporal, de natureza grave, que ocorrerão como eventos  preterdolosos, aplica-se o artigo 258 do Código penal. 


III – ESTELIONATO

Poder-se-ia dizer que há ainda o crime de estelionato.

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.

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São seus elementos:

  1. Adquirir vantagem ilícita sobre o patrimônio da vítima
  2. Causar danos à vítima
  3. Que seja ardiloso, fraudulento, enganoso.
  4. Levar a vítima a cometer erro.

O elemento normativo é o prejuízo (perda ou dano) alheio (de outro). A vantagem indevida deve significar uma perda para a vítima.

Tem-se então:

  1. O erro: a falsa percepção da realidade, em que o agente mantém a vítima numa situação enganosa;
  2. Artifício: é astúcia, esperteza, manobra que implica em uma engenhosidade;
  3. Ardil: que é o artifício na forma de armadilha, cilada ou estratagema;
  4. Qualquer outro elemento fraudulento: é qualquer situação que possa trazer ardil ou artifício que venha a prejudicar a vítima.  

O estelionato é crime material que exige dolo como elemento do tipo. Trata-se de crime de dano e que admite a tentativa.


IV – A QUESTÃO DO CONCURSO ENTRE OS CRIMES DE CURANDEIRISMO E ESTELIONATO

O curandeirismo é crime na qual o agente prescreve, ministra ou aplica a substancia, etc.

Caso haja intuito lucrativo, em concurso formal, tem-se o crime de estelionato. Vem-se considerando o charlatanismo crime-meio, absorvido pelo estelionato.

Já se entendeu pelo concurso formal entre o crime de curandeirismo e o estelionato (JTACrimSP 9:514). Só estelionato (JTACrimSP 44:359; 95:181; RF 141:425; RT 698:357). Se não há habitualidade não se pode falar em curandeirismo, mas estelionato (JTACrimSP 30:327; 44:359 e 20:32; RF 141:425;  RT  507:412 e 440:438).

Assim já se tem entendido que eventual curandeirismo é absorvido pelo delito contra o patrimônio (RT 507:412, 698: 357; JTACrSP 44:359; RF 141: 425. Não há dúvida, porém, de que só ocorre o estelionato, quando não existe a habitualidade (JTACrSP 30: 327), como já exemplificado.

Isso se o agente promete cura mediante o pagamento de quantia estipulada.

Para o caso, salvo melhor juízo, tenho que a investigação, na Justiça Comum Estadual competente, deve ser conduzida para investigar, em toda a materialidade e autoria, o crime de estelionato.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso concreto de ilícito para a cura contra a covid-19. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6168, 21 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82169. Acesso em: 3 out. 2024.

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