Na era moderna, uma das maiores transformações que a humanidade pôde observar foi a percepção do tempo. A especialização técnica-científica e o modo racional de organização da vida, com base na divisão de tarefas distribuídas no calendário, foram criando na sociedade uma nova mentalidade, mesmo porque as mudanças não dependem unicamente do que queremos, mas, muitas vezes, somos direcionados a modificar nossos costumes para sobreviver ao tempo presente. Nas palavras de Benjamin Franklin: “Lembra-te de que tempo é dinheiro”.
Nesse sentido, diferente não fora para com a propriedade privada, que acompanhou os desdobramentos desencadeados pelos tempos modernos. A criação de novos institutos para assimilar as inovações que ocorrem no campo das relações sociais é imprescindível para a subsistência do ordenamento jurídico pátrio. Por essa razão, surgiu um novo instituto que adere a esse movimento: o condomínio em multipropriedade, com a noção contemporânea de transitoriedade.
Trata-se de modalidade de condomínio voluntário, pró-indiviso, em propriedade espaço-temporal, visto que a coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma igual direito de deter fração ideal do tempo sobre o todo.
A despeito de o domínio ter como característica o princípio da exclusividade, em que apenas uma pessoa pode usar, fruir e dispor do objeto, é possível que vários indivíduos detenham a propriedade, sem afastar a unidade de domínio. Logo, cada condômino tem propriedade sobre toda a coisa, delimitada pelos direitos dos demais consortes que, no caso, é determinado pelo tempo.
Assim, é uma forma de aquisição de bem em grupo, por ato entre vivos ou testamento, que envolve uma relação jurídica de aproveitamento econômico de coisa móvel ou imóvel repartida em unidades fixas de tempo, a fim de permitir que diversos titulares possam utilizar-se do bem com exclusividade, cada um a seu turno, de maneira perpétua ou não. Portanto, nada mais é do que a efetivação do exercício da autonomia da vontade dos particulares para a qualificação da propriedade no aspecto temporal.
O timeshare contract, termo oriundo do mercado norte-americano, surgiu efetivamente no Brasil como condomínio em multipropriedade, por meio da sanção da Lei n. 13.777/18, que dispõe sobre o seu regime jurídico, com objetivo de colmatar lacuna jurídica perante realidade fática já existente. Tanto é que, em anos anteriores, os tribunais já discutiam a temática em seus julgados, entendendo que o sistema teria natureza de direito real e que a penhora da integralidade do imóvel submetido ao regime é inválida. Colaciono abaixo, ementa de acórdão do Superior Tribunal de Justiça decisivo nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO. PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
2. Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.
3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.
4. O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.
5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.
6. É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.
7. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016) (grifamos)
A supramencionada lei, inseriu os artigos 1.358-B a 1.358-U no Código Civil de 2002, que passaram a disciplinar tipicamente o tema. Ademais, os §§ 10, 11 e 12 no art. 176, da Lei n. 6.015/77, a Lei de Registros Públicos, que institui o registro de matrícula para cada fração de tempo. Por esse ângulo, a segurança jurídica é assegurada pelo registro do título no Registro Geral de Imóvel – RGI, que promove publicidade e eficácia perante terceiros. Cada proprietário terá uma escritura autônoma, registrando a aquisição de uma fração do bem, que poderá utilizar durante determinado período do ano.
Outrossim, um dos maiores benefícios dessa modalidade de condomínio seria a distribuição de custos de aquisição e manutenção de acordo com a proporção de uso do bem, viabilizando a propriedade de itens antes, para muitos, inacessíveis. Exempli gratia, cada unidade periódica apenas arca com o seu IPTU. Nesse toar, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald esclarecem que os grandes benefícios do time sharing são:
(...) a divisão proporcional de custos e despesas entre multiproprietários; a otimização da utilidade do bem e, consequentemente de sua função social; o acesso a bens de valor elevado mediante desembolso proporcional a tempo de sua utilização; a segurança do direito de usufruir do bem em períodos determinados; a possibilidade de remunerar o tempo em que o imóvel não é fruído pessoalmente e, o mais importante, o direito de propriedade no fólio imobiliário. (FARIAS; ROSENVALD, 2019, p. 868)
Frise-se que a função social do instituto não se localiza no atendimento ao mínimo existencial, ou muito menos na tutela dos que nada tem, posto que na maioria das vezes envolvem bens de alto custo, como casas de veraneio, resorts, carros esportivos, barcos, jatos e iates.
A funcionalização do condomínio em multipropriedade é a democratização do livre acesso compartilhado à titularidade de itens luxuosos. Para mais, ainda estimula a redução do consumo desenfreado, ao ancorar a economia de compartilhamento, ampliando os sujeitos que podem desfrutar dos bens.
Isto posto, percebe-se a importância e a hodiernidade da nova modalidade de condomínio de bens. Dessa forma, é preciso estabelecer uma reflexão sobre como a pandemia do COVID-19 pode impactar o regime jurídico em discussão.
Desde fevereiro de 2020 o governo federal, por meio da Portaria nº 188/2020, declarou emergência em saúde pública de importância nacional do Brasil, em decorrência da infecção humana pelo novo Coronavírus. Em março do corrente ano, declarou o estado de contaminação comunitária do covid-19 em todo território nacional e reconheceu o estado de calamidade pública, conforme Portaria nº 454/2020 e Decreto Legislativo nº 66/2020.
Para além, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na decisão da ADPF 672, entendeu que os governos estaduais, distritais e municipais possuem competência para adoção de medidas restritivas durante a pandemia. Com isso, inúmeros estados brasileiros instituíram medidas a fim de coibir a disseminação do vírus, como a proibição de entrada e saída do seu território, com bloqueios de acesso e a suspensão de transporte intermunicipal e interestadual, a exemplo do Rio de Janeiro e Santa Catarina (Decreto nº 47.052 de 29/04/2020 – RJ e Decreto nº 587 de 30/04/2020 -SC).
É perceptível na análise da situação jurídica dos imóveis submetidos ao regime de condomínio em multipropriedade que, os coproprietários não residem fixamente no bem que possui fração ideal de tempo. Por isso, para usar e gozar da propriedade precisariam de forma sazonal, a depender da época que a detêm, se deslocar de seu domicílio até a localidade.
À vista disso, diante do estado pandêmico que se encontra o país, o proprietário pode ser impossibilitado do exercício do uso e gozo do bem no período que lhe corresponde, vez que a recomendação dos profissionais de saúde é permanecer em casa. Desse modo, passo a discorrer alternativas jurídicas que podem ser tomadas pelo condômino que possui fração ideal nesse lapso de tempo.
Como medidas mais amenas, em primeiro lugar, a modificação da fração flutuante. O art. 1358-E, §1º, II do CC/02 permite que o período correspondente a fração de tempo do condômino seja determinada de forma periódica, devendo ser previamente divulgado. Caso ainda haja tempo, e o coproprietário perceba que sua fração temporal estará situada ainda nos meses de pandemia, cabe a ele solicitar a permuta do período com outro condômino que tenha a possibilidade de exercer o direito efetivamente.
Em segundo lugar, o não exercício do direito. Não há nenhum óbice legal que impeça o coproprietário de não exercer o direito por determinado período de tempo, mesmo porque enfrenta-se uma conjuntura atípica que desencadeará inúmeras situações jurídicas nunca antes vistas. Entre os deveres do condômino estão, tão somente, nessa perspectiva, usar o imóvel conforme a sua destinação e exclusivamente durante a fração temporal correspondente. Não há que suscitar a quebra da função social da propriedade, visto que seu escopo é atender a utilidade coletiva, e no atual momento, o isolamento social é a maior representação de bem comum.
Em terceiro lugar, a locação ou o comodato. O artigo 1358-I, inciso II do Código Civil de 2002 instituiu que é direito do multiproprietário ceder a fração de tempo em locação ou comodato. No entanto, frise-se que estando regulados pelo diploma legal, há direito de preferência para a locação, por isso, deve o coproprietário, em condições iguais, preferir os condôminos aos terceiros, nos termos do art. 1323 do CC/02.
Como medidas mais drásticas, em quarto lugar, a transferência do direito ou a alienação. A despeito do instituto estabelecer isonomia entre os proprietários no que toca ao tempo, fica permitida a aquisição de frações maiores para fazer uso do bem em períodos mais longos, consoante art. 1358-E, §2º do CC/02. Nesse seguimento, a alienação da fração temporal pode ser gratuita ou onerosa, conforme art. 1358-I, inciso III do CC/02. Não obstante, no caso, não há direito de preferência a ser seguido, salvo disposição estabelecida no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio, segundo o art. 1358-L, §1º do CC/02.
Em quinto lugar, a renúncia translativa. Na hipótese de adoção do regime multiproprietário pelo condomínio edilício, o direito pode ser renunciado tão somente a esse, caso o coproprietário esteja em dias com suas obrigações e veja-se impossibilitado de continuar na titularidade, conforme art. 1358-T, §1º do CC/02. Perceba que se trata de temática polêmica, pois a renúncia é negócio jurídico unilateral, pelo qual se declara o propósito de desfazer-se do direito de propriedade, não implicando em repristinação da titularidade do antigo dono.
Por conseguinte, multipropriedade é a modalidade de exercício da propriedade por várias pessoas simultaneamente, com direitos qualitativamente iguais sobre a coisa, que reparte em unidades temporais o uso e a fruição para cada um dos coproprietários. Frente a uma pandemia que assola o planeta, é plausível que os titulares da multipropriedade, impedidos de exercer o direito pela inviabilidade de deslocamento, analisem diversas rotas jurídicas a serem traçadas, a depender de cada caso concreto.
REFERÊNCIAS
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