A Lei 13.964/19, que ficou conhecida como Pacote Anticrime, alterou diversos dispositivos da legislação criminal. Nessa toada, referimos que diversos dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e várias outras leis foram alterados, revogados ou acrescentados.
Uma das leis penais especiais que mais sofreu modificações foi a Lei dos Crimes Hediondos (L. 8.072/90), sendo que o objetivo deste trabalho é estudar uma das suas várias alterações, aquela que, no nosso entendimento, será uma das questões mais debatidas na doutrina e na jurisprudência. Nos referimos ao crime de extorsão.
Antes de adentrar no âmago da discussão, cumpre anotar que a Lei dos Crimes Hediondos adotou o sistema legal de seleção ou classificação das infrações penais que recebem este destacamento, i.e., no nosso sistema, incumbe à lei, em um rol taxativo, elencar quais infrações penais são definidas como crime hediondo.
Em outros termos, se o crime constar no rol taxativo descrito na Lei 8.072/90 será considerado hediondo. Do contrário, não. Esse sistema, diga-se de passagem, impossibilita qualquer valoração por parte do magistrado, a respeito da conduta praticada, para fins de determinar a sua hediondez, ainda que as circunstâncias fáticas do caso se revelem graves e repugnantes.
A Lei 8.072/90, dessa forma, apresenta um rol taxativo (art. 1°), o qual é construído pelo legislador por meio de um método de seleção entre os crimes já existentes na legislação penal, acostando aos eleitos a rotulação da hediondez. Nesse viés, é importante referir que a Lei dos Crimes Hediondos, considerada exemplo de Direito Penal do Inimigo[1], possui nítida inspiração na Labelling Approach Theory[2], uma vez que o crime hediondo é produzido pela simples rotulação ou etiquetamento dos tipos penais eleitos pelo legislador.
Feita essas breves considerações, passa-se, agora, a analisar a extensão da hediondez no que se refere ao crime de extorsão, sendo que, para tanto, vamos relembrar a redação da Lei 8.072/90 antes da Lei 13.964/19. Pois bem, antes do pacote anticrime, o art. 1°, inc. III, da Lei 8.072/90 possuía a seguinte redação:
Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:
(...)
III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, §2°). Grifamos.
Atente-se que, o crime de extorsão somente era considerado hediondo quando qualificado pela morte, tal como ocorria no crime de roubo, que somente era considerado hediondo quando se tipificasse como latrocínio.
Naquele momento, havia grande debate na doutrina no que se referia ao crime de sequestro relâmpago, que passou a ter tipificação no art. 158, §3°, do Código Penal[3], quando qualificado pela morte.
O sequestro relâmpago, para que fique claro, ocorre nos casos em que o crime de extorsão é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica. Saliente-se que, antes da Lei 11.923/09, essa conduta gerava indisfarçável controvérsia[4], sendo tipificada ora como roubo majorado pelo sequestro, ora como extorsão e ora como extorsão mediante sequestro.
A discussão doutrinária surgiu porque o sequestro relâmpago foi incluído no Código Penal, como tipo penal autônomo, pela Lei 11.923/09, a qual, por desídia do legislador, não promoveu a respectiva alteração na Lei dos Crimes Hediondos para etiquetar nela o referido crime.
Assim, parte da doutrina sustentou[5] que a falta de referência expressa na Lei dos Crimes Hediondos impossibilitava que se considerasse o crime de sequestro relâmpago qualificado pelo resultado morte como hediondo, sob pena de afronta à vedação da analogia in malam partem e ao princípio da legalidade. Em sentido contrário, outro seguimento doutrinário entendia[6] que tal crime deveria ser considerado hediondo, pois nada mais seria do que um desdobramento formal do tipo descrito no art. 158, §2°, sendo que o legislador apenas havia explicitado um novo modus operandi. A primeira corrente, que já nos parecia a mais adequada, era majoritária na doutrina.
Agora, após a Lei 13.964/19, o art. 1°, inc. III, da Lei 8.072/90, conta com a seguinte redação:
Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:
III - extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, §3º). Grifamos.
Note-se que, em que pese a descrição do dispositivo parecer ampliar as hipóteses de hediondez de extorsão (restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão grave ou morte), a tipificação utilizada na rotulação ou etiquetamento, por esquecimento ou pela péssima mania de se remendar a lei sem nenhum requinte, faz menção apenas ao sequestro relâmpago, i.e., a figura típica do art. 158, §3°, do Código Penal.
Ao que parece, o legislador corrigiu uma deficiência legislativa, mas criou outra, pois suprimiu da tipificação de etiquetamento o §2° do art. 158, que constava da redação anterior. Portanto, agora, não restam dúvidas de que o sequestro relâmpago é crime hediondo, independente da modalidade, i.e., com ou sem resultado qualificador (lesão corporal grave ou morte).
Na verdade, analisando-se a nova redação legal do dispositivo, entendemos que o legislador criou um novo velho problema. É que, partindo-se do etiquetamento extraído do Código Penal, o mesmo debate que antes girava em torno da hediondez (ou não) da figura típica do art. 158, §3°, agora deverá girar em torno da figura típica do art. 158, §2°. O debate apenas muda de foco.
A questão que será debatida na doutrina e na jurisprudência a partir de agora será: o crime do art. 158, §2°, do Código Penal é hediondo? A resposta a este questionamento nos parece ser negativa. O crime descrito no art. 158, §2°, do Código Penal, em homenagem ao princípio da legalidade não pode ser considerado hediondo.
Com a alteração promovida pela Lei 13.964/19, em respeito ao princípio da legalidade, é forçoso concluir que o crime de extorsão qualificada pela lesão corporal grave ou morte deixou de ser hediondo, tendo se operado verdadeira lex mitior por novatio legis in mellius, demandando, em razão disso, aplicação retroativa.
Ainda que tal consequência, decorrente da falta de técnica do legislador, seja vista por nós como decepcionante e lamentável, não se pode descuidar que no Direito Penal, por atingir o bem mais precioso no cidadão – a liberdade –, como consectário da legalidade, a lei deve ser certa, clara e estrita. Dessa forma, qualquer inconsistência que seja prejudicial à sociedade deve ser objeto de lege ferenda, mas não podemos admitir interpretações extensivas, que vão além daquilo que a lei penal estabelece.
[1] O Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) foi desenvolvido por Günther Jakobs, em 1985, para designar um modelo em que determinadas pessoas, em decorrência da sua conduta, devem ser consideradas inimigas da sociedade e do Estado, perdendo o direito a alguns proteções constitucionais e processuais afetas aos demais indivíduos, regidos pelo Direito Penal do Cidadão (Bürgerstrafrecht).
[2] Trata-se da Teoria do Etiquetamento ou Teoria da Rotulação, estudada em criminologia, cujos principais expoentes são Erving Goffmann, Howard Becker e Alessandro Baratta. Essa teoria representa a transição entre a criminologia clássica e o crítica, sendo identificada pela ideia de que a criminalidade não é inerente ao indivíduo, mas uma etiqueta ou rótulo atribuído a determinados sujeitos que a sociedade entende como delinquentes.
[3] Art. 158, §3°, Código Penal: Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2° e 3°, respectivamente.
[4] GOMES, Luiz Flávio. CUNHA, Rogério Sanches. Sequestro relâmpago com morte: é crime hediondo. Disponível em https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1379628/sequestro-relampago-com-morte-e-crime-hediondo. Acessado em 20/04/2020.
[5] Nesse sentido: Renato Brasileiro de Lima (Legislação Especial Criminal Comentada, 2019); Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 2017); Gabriel Habib (Leis Penais Especiais TOMO I, 2013); Cláudia Barros Portocarrero e Wilson Luiz Palermo Ferreira (Leis Penais Extravagantes, 2019); Eduardo Luiz Santos Cabette (O novo §3º, do artigo 158, do Código Penal e a Lei dos Crimes Hediondos, 2009).
[6] Nesse sentido: Luiz Flávio Gomes (Comentários à Reforma Criminal de 2009 e à Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, 2009). Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (Leis Penais Especiais Comentadas, 2019).