INTRODUÇÃO
O Partido Democrático Trabalhista denunciou o Presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, acusando o chefe do executivo de crime contra a humanidade, diante de seu comportamento durante a pandemia do coronavírus. A Corte informou, no dia 08/06/2020, que irá analisar a denúncia. Na denúncia, o Partido listou uma série de atos realizados pelo Presidente brasileiro, como por exemplo, o comparecimento em manifestações e declarações contra o isolamento social. É cabida, então, uma análise acerca do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, além de outras normas de Direito Internacional, jurisprudências e doutrinas, para que se compreenda o alcance do questionamento feito sobre os possíveis crimes cometidos pelo Presidente do Brasil.
1 - DA DENÚNCIA NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Recentemente, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) moveu denúncia contra Jair Bolsonaro no Tribunal de Haia [1]. O Presidente brasileiro é acusado de crime contra a humanidade, diante de sua postura na pandemia do Covid-19. Cabe ressaltar que o Brasil já acumula milhares de mortos e infectados pelo coronavírus. O Tribunal Penal Internacional acusou o recebimento da denúncia no dia 08/06/2020, estando essa em análise. Na peça, é listada uma série de ocasiões em que Bolsonaro contraria as recomendações da Organização Mundial de Saúde.
"Ressoa inconteste que as falas irresponsáveis proferidas pelo presidente da República, sobre o novo coronavírus, influenciam o comportamento dos cidadãos para o descumprimento das medidas necessárias ao combate do Covid-19", diz trecho da denúncia.
2 - DAS MANIFESTAÇÕES E DO NÃO USO DE MÁSCARA
No fim do mês de maio do ano atual, apoiadores do Presidente Bolsonaro fizeram uma manifestação antidemocrática, pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional [2]. O chefe do executivo sobrevoou o local e desceu para cumprimentar seus incentivadores, porém, sem o uso de máscara, conforme determina o Decreto nº 40.648, de 23 de abril de 2020, do Distrito Federal, que afirma:
“Determina a obrigatoriedade do uso de máscaras, no âmbito do Distrito Federal, em razão da pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus.
O GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos VII e XXVI do art. 100 da Lei Orgânica do Distrito Federal, DECRETA:
Art. 1º Fica determinada a obrigatoriedade da utilização de máscaras de proteção facial, conforme orientações da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, em todos os espaços públicos, vias públicas, equipamentos de transporte público coletivo, estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços e nas áreas de uso comum dos condomínios residenciais e comerciais, no âmbito do Distrito Federal, sem prejuízo das recomendações de isolamento social e daquelas expedidas pelas autoridades sanitárias. “ [3]
3 - DA CRÍTICA AO ISOLAMENTO SOCIAL
O chefe do executivo brasileiro, criticou, no fim de maio, a quarentena imposta por estados e municípios do Brasil, afirmando que o isolamento coloca a economia em risco. O fato é que Bolsonaro sempre se mostrou contrário às medidas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, dizendo muitas vezes que se tratava apenas de um "resfriadinho". Assim sendo, Bolsonaro afirmou [4]:
"Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada. A proibição de transporte, o fechamento de comércio e o confinamento em massa"
"O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco (da Covid-19) é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas?" Disse o Presidente.
4 - DAS NORMAS PENAIS
4.1 - DO PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM
O artigo 132 do Código Penal trata do crime de expor alguém a perigo. Pode-se dizer que tal conduta significa submeter uma pessoa a situação que provavelmente gerará dano à sua saúde:
“Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. “ [5]
Normalmente, a conduta se configura por meio de uma ação. Porém, também podem ocorrer por omissão, quando alguém que deve proteger a sua saúde não o faz. Assim, como é preceituado pelo doutrinador Cleber Masson, não é admissível a modalidade culposa:
“O sujeito quer ou assume o risco de expor a vida ou a saúde de outrem a uma situação de perigo concreto. Exemplo: arremessar pedras contra uma pessoa para que ela não passe por determinada via pública. Se a intenção do agente era provocar um mal determinado (dolo de dano), o crime será de tentativa de lesão corporal ou de tentativa de homicídio, conforme o caso. O consentimento do ofendido é irrelevante, em face da indisponibilidade do bem jurídico penalmente tutelado. Não se admite a modalidade culposa. “ [6]
4.2 - DA INFRAÇÃO DE MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA
O crime de infringir determinação sanitária do Poder Público é especificado no artigo 268 do Código Penal, que trata do descumprimento de normas legais, impostas pelo Estado, para proteger a saúde pública:
“Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa. “ [7]
O doutrinador Fernando Capez ainda destaca os elementos do tipo:
“Consubstancia-se no verbo infringir, isto é, violar, transgredir determinação do Poder Público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. Doença contagiosa é aquela que pode ser transmitida por contato direto ou indireto com pessoas infectadas. Trata-se de norma penal em branco, pois seu complemento se encontra em determinação do Poder Público. A determinação consiste em medida consubstanciada em lei, decreto, portaria, regulamento, provinda de autoridade pública competente (federal, estadual ou municipal), destinada a evitar os surtos epidêmicos. ” [8]
Na mesma toada, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal também esclarece:
“Cita o mesmo autor a hipótese do “art. 268 de nosso estatuto repressivo”, que “define a figura do crime de infração de medida sanitária preventiva, da seguinte forma: ‘Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa’. Seu complemento se contém nas ‘determinações do poder público’, mediante editais ou portarias, oficialmente publicados. Tais medidas podem advir do poder público estadual ou municipal”. Por outro lado, a lei não previu a fixação de tais critérios como competência exclusiva do CONMETRO, de modo que poderia ser delegada. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar recurso repetitivo de relatoria da Ministra Eliana Calmon, nos termos do art. 543-C do Código de Processo Civil, firmou entendimento de que “estão revestidas de legalidade as normas expedidas pelo CONMETRO e INMETRO, e suas respectivas infrações, com o objetivo de regulamentar a qualidade industrial e a conformidade de produtos colocados no mercado de consumo, seja porque estão esses órgãos dotados da competência legal atribuída pelas Leis 5.966/1973 e 9.933/1999, seja porque seus atos tratam de interesse público e agregam proteção aos consumidores finais. Precedentes do STJ” [9]
4.3 - DA INCITAÇÃO AO CRIME
Conforme é estabelecido pelo Código Penal, o delito de incitação ao crime tem previsibilidade no artigo 286 e consiste na prática de estimular, publicamente, a prática de um ato criminoso. Assim, o agente atenta contra a paz pública e o interesse de todos. O crime tem pena de três a seis meses ou multa:
“Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa. “ [10]
Desse modo, é destacado por Capez a tutela da paz pública, sendo necessário como instrumento de segurança para o convívio social:
“Como já dissemos anteriormente, o tipo penal tutela a paz pública, isto é, o sentimento de segurança e proteção necessários ao convívio social. Antes que haja qualquer ofensa à vida, à integridade física ou ao patrimônio de outrem, o legislador antecipa-se a tais práticas criminosas, punindo a conduta daquele que estimula genericamente as ações delituosas. Trata-se de verdadeira ressalva à regra contida no art. 31 do CP, que dispõe que “o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”. Pois bem. Na hipótese, o legislador não exige que o crime incitado seja efetivamente praticado. Contenta-se com o estímulo, de forma pública, à prática do delito. Pune-se, portanto, a instigação de crime que nem mesmo chega a ser tentado. É que nesse momento a paz pública já se encontra em perigo. “ [11]
Além do relatado, a jurisprudência do STF já contempla casos em que a prática do delito de incitação ao crime é mostrada, como, por exemplo, quando o Supremo recebeu a queixa contra Bolsonaro por ter falado que não estupraria a até então deputada Maria do Rosário porque ela “não merece”:
“In casu, (i) o parlamentar é acusado de incitação ao crime de estupro, ao afirmar que não estupraria uma deputada federal porque ela “não merece”; (ii) o emprego do vocábulo “merece”, no sentido e contexto presentes no caso sub judice, teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição de avaliar qual mulher “poderia” ou “mereceria” ser estuprada. (...) In casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo, ao afirmar que “não estupraria” deputada federal porque ela “não merece”; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental, já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da imprensa e da internet; (...) (i) A imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: “Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar” (Inq 3.814, Primeira Turma, rel. min. Rosa Weber, unânime, julgamento em 7-10-2014, DJE de 21-10-2014). (ii) Os atos praticados em local distinto escapam à proteção da imunidade, quando as manifestações não guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar. (...) Ex positis, à luz dos requisitos do art. 41 do CPP, recebo a denúncia pela prática, em tese, de incitação ao crime; e recebo parcialmente a queixa-crime, apenas quanto ao delito de injúria. Rejeito a queixa-crime quanto à imputação do crime de calúnia. “ [12]
5 - DO ESTATUTO DE ROMA
O Estatuto de Roma, que passou a vigorar no Brasil no ano de 2002, trata das normas do Tribunal Internacional e dos crimes que por ele podem ser julgados. O Tribunal Penal Internacional é o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas.
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça trata de crimes contra a humanidade, dentro dos quais contempla os crimes de homicídio e extermínio:
“Artigo 7°
Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio...
a) Por "ataque contra uma população civil" entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1o contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política;
b) O "extermínio" compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população; “ [13]
Assim sendo, Mazzuoli destaca a competência da Corte:
“Competência em razão da matéria. A CIJ é certamente o mais importante de todos os tribunais internacionais existentes, não só pela sua larga e respeitada história, mas também pelo fato de sua competência ratione materiae ser amplíssima: qualquer Estado (que tenha aceito a sua jurisdição) pode potencialmente recorrer à Corte para vindicar uma solução para um direito violado, em relação a quaisquer matérias conhecíveis do Direito Internacional em geral. É o que dispõe o art. 36, § 1º, do ECIJ, segundo o qual “a competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor”. Na última parte do dispositivo, abre-se a possibilidade de se demandar perante a Corte com fundamento “em tratados e convenções em vigor”, o que significa o reconhecimento às chamadas cláusulas compromissórias. Estas já se tornaram comuns em tratados internacionais (bilaterais ou multilaterais), nos quais já se fixa a possibilidade de determinados litígios serem resolvidos pela Corte. Entre os tratados multilaterais que preveem cláusulas compromissórias judiciais, cabe destacar: a) os relativos a direitos humanos; b) os relativos a transportes e navegação (marítima e aérea); c) os de proibição de armas nucleares, de tráfico ilícito de entorpecentes e de prevenção de contaminação; e d) os de codificação e desenvolvimento progressivo do Direito Internacional. No que toca aos tratados bilaterais, à exceção obviamente dos instrumentos específicos de solução de controvérsias, destacam-se os de transporte e serviços aéreos, os de cooperação e assistência econômica e os relativos às relações consulares. “ [14]
6 - CONCLUSÃO
As normas legais brasileiras são claras quanto aos tipos penais destacados. Assim, se o agente submeter uma pessoa a uma situação que, possivelmente, gerará dano à sua saúde, infringir determinação do poder público para impedir avanço de doenças ou, incitar, de maneira pública, a prática de um crime, deve ser punido na forma da lei. Ocorre que Jair Bolsonaro pode estar incidindo em todos os tipos penais elencados, porquanto vem descumprindo as normas legais expostas.
Contudo, deve ser destacada, também, a função da Corte Internacional de Justiça que, enquanto órgão jurídico mais importante da ONU, estabelece, em seu art. 7º, o crime de extermínio como um dos tipos de crime contra a humanidade. Não obstante isso, é possível aventar que o alto número de mortes no Brasil, ocasionadas pela covid-19, pode também ter sido atingido em razão da irresponsabilidade do então Presidente, que se negou, desde o início, a cumprir as normas e recomendações estabelecidas para o combate à pandemia, além de ter provocado manifestações públicas incentivando o descumprimento do isolamento social.
O Brasil, por sua vez, aceitou a Corte como parte de sua jurisdição. Diante disso, é plausível que a Corte Internacional investigue o ocorrido, uma vez que, independente de ser, de fato, considerado crime ou não, já provocou a morte de muitos brasileiros.
REFERÊNCIAS
[1] https://www.conjur.com.br/2020-jun-08/tribunal-penal-internacional-ira-analisar-denuncia-bolsonaro
[2] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/31/protestos-brasilia-31-de-maio.htm
[3] http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/b7e515eba350474d85dfebff90fdac1d/Decreto_40648_23_04_2020.html#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2040.648%2C%20DE%2023,19%2C%20causada%20pelo%20novo%20coronav%C3%ADrus.&text=%C2%A7%202%C2%BA%20Os%20estabelecimentos%20dever%C3%A3o,utilizando%20m%C3%A1scara%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o%20facial.
[4] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/03/24/interna_internacional,1132162/bolsonaro-critica-quarentena-por-coronavirus-e-pede-volta-a-normalidad.shtml
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[6] Direito penal: parte especial: arts. 121 a 212 / Cleber Masson. – 11. ed. - Pág 163 – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018.
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[8] Curso de direito penal, volume 3, parte especial: arts. 213 a 359-H - Pág 361/ Fernando Capez. - 17. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[9] TRF-1 - APELAÇÃO CIVEL: AC 00144083120054013500 0014408-31.2005.4.01.3500 - QUINTA TURMA - 7 de Outubro de 2015 - DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA
[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[11] Curso de direito penal, volume 3, parte especial: arts. 213 a 359-H - Pág 412/ Fernando Capez. - 17. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[12] Inq 3.932 e Pet 5.243, rel. min. Luiz Fux, j. 21-6-2016, 1ª T, DJE de 9-9-2016.
[13] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm
[14] Curso de Direito Internacional Público / Valerio de Oliveira Mazzuoli. – 12. ed. - Pág 1633 - 1634 – Rio de Janeiro: Forense, 2019.