Artigo Destaque dos editores

O calcanhar de aquiles de Sérgio Moro

06/07/2020 às 18:00
Leia nesta página:

Apesar de Moro associar sua imagem à aura dos heróis da Justiça italiana que combateram as máfias de lá, não seguiu tal exemplo com relação às daqui: as milícias do RJ.

Nos últimos dias publiquei a minha melhor série de muito tempo para cá: "Dois capitães entrelaçam as milícias do RJ com os torturadores da ditadura".

Nela, depois de aprofundar o tema da absorção de antigos membros da repressão política do regime militar na modalidade criminosa então emergente e destacar as flagrantes afinidades das milícias brasileiras com as máfias italianas, concluí apontando uma grave vulnerabilidade de Sergio Moro.

Afinal, trata-se de um personagem que tem tudo para sobreviver à atual derrocada do bolsonarismo e continuar encarnando a ameaça de instauração de um estado policial, como várias ilegalidades cometidas pela Operação Lava Jato nos levaram a temer.

Mas, colocado no finalzinho da 3ª e última parte da série, tal alerta corria o risco de passar despercebido. Daí este artigo complementar em que chamo a atenção, especificamente para ele, começando por reproduzi-lo:                                                                                                                

"Em 2010, as milícias já controlavam 41 comunidades (eufemismo de favelas) do Rio de Janeiro, segundo levantamento do Ministério Público Estadual. O número, claro, deve ter crescido desde então, ainda mais a partir de 2018, quando colocou um pé nas mais altas esferas governamentais...

Elas começaram vendendo proteção e hoje extorquem de várias outras maneiras os moradores das áreas sob seu controle, cobrando, p. ex., comissões sobre venda de botijões de gás, água, TV a cabo ilegal e transporte.

Estão também envolvidas na/no:

— grilagem de terras de reservas ambientais pertencentes à União;

— extração de pedra e saibro nessas áreas;

— venda das terras com registro legal;

— venda de material de construção;

— construção de imóveis;

— furto de petróleo cru que passa pelas tubulações da Petrobras após extração na costa do Rio de Janeiro;

— comercialização de mercadorias ilegais; e

— até no despejo ilegal e derrubada de imóveis de um condomínio para que nele pudessem instalar-se milicianos.

Ou seja, assim como as várias máfias italianas, as milícias passaram da extorsão camuflada em fornecimento de proteção, para uma atuação bem mais ampla e diversificada, combinando negócios ilícitos e outros legais, amiúde recorrendo a pressões, intimidações e até violências para atingirem seus intentos nos dois casos, além de, cada vez mais, influírem nos três poderes da República e neles se infiltrarem. 

O imperativo de o Estado brasileiro combater decididamente esse tipo de organização criminosa salta aos olhos.

Por último, uma pergunta que não quer calar: por onde anda aquele juiz que, em 2004, escreveu uma razoável tese (acesse-a aqui) sobre a Operação Mãos Limpas (por ele apresentada como 'uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa' que 'havia transformado a Itália em (...) uma democracia vendida')? Morreu?

Não, está bem vivo, mas Giovanni Falcone, se também o estivesse, decerto não se orgulharia desse pretenso discípulo.

Pois, ao integrar o governo Bolsonaro e até contribuir para a implementação de algumas das medidas presidenciais que claramente favoreciam as milícias, ele atuou não para evitar a atuação mafiosa, mas para alçá-la a um patamar mais elevado.

Se o Brasil se tornar efetivamente uma democracia vendida, parte da culpa, sem dúvida, lhe caberá.

Seu nome, todos já devem ter adivinhado, é Sergio Fernando Moro". 

Ou seja, as lamentações a respeito do que ele fez, ou deixou de fazer, com o Lula, sensibilizam principalmente os contingentes que já não votariam nele de jeito nenhum.

Pode  causar-lhe muito dano, contudo, a constatação de que ele, já em 2004, esforçava-se ao máximo para atrelar sua imagem à da Operação Mãos Limpas, mas, ao participar do Governo Bolsonaro, envolveu-se com um presidente que, desde sua exclusão do Exército, vinha mantendo relações altamente comprometedoras com a organização criminosa brasileira cuja trajetória mais se assemelha à das várias máfias italianas.

Tal duplicidade pode desmascará-lo aos olhos de muitos e muitos que acreditaram piamente nas lorotas por ele espalhadas, desde quando ainda era um quase desconhecido precisando se promover.

Pior: Lula pode mesmo ser culpado por praticar ou fechar os olhos à corrupção política que marca toda a história da República brasileira, mas as milícias do Rio de Janeiro exploram as comunidades mais pobres e vulneráveis, barbarizam, torturam e matam.

Se Moro quisesse mesmo ser o Giovanni Falcone brasileiro, como tanto forçou a barra para fazer-nos crer, eram as milícias do Rio de Janeiro que ele deveria combater em primeiro lugar; não Lula e o PT. 

O certo teria sido liderar cruzadas tanto contra a corrupção política, quanto contra as máfias do Rio do Janeiro. Mas, ele priorizou o inimigo menos perigoso e jamais combateu as milícias com o rigor que se impunha (muito menos quando tinha o dever de fazê-lo, como ministro da Justiça). 

Isto precisa ser explicado àqueles eleitores que ainda acreditam na imagem fantasiosa que a mídia dele espalhou. 

Dois juízes empenhados em destruir as máfias italianas foram assassinados ao cumprirem fielmente seu dever. Moro pega carona no martírio deles, mas jamais correu verdadeiro perigo. 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Celso Lungaretti

Jornalista, blogueiro, escritor e veterano da resistência à ditadura militar. Ingressei na luta contra a ditadura militar ainda secundarista, aos 17 anos. Passei um ano na clandestinidade, como dirigente estadual da VPR e VAR-Palmares. Preso, sofri uma lesão permanente que me prejudicaria tanto no convívio social quanto nos desempenhos profissionais. Mesmo assim, fiz longa carreira jornalística. Hoje sou escritor, articulista e blogueiro, atuando frequentemente na defesa dos direitos humanos. Observador atento da cena política brasileira há mais de meio século, além de haver sido, aos 18 anos, o primeiro e único comandante de Inteligência de uma organização que travava a luta armada, tento dar aos leigos no assunto um quadro realista das perspectivas atuais, para dissipar um pouco das paranoias e alarmismos que tantos pesadelos lhes causam .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUNGARETTI, Celso. O calcanhar de aquiles de Sérgio Moro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6214, 6 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83746. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos