Em rápida leitura aos primeiros artigos da Constituição Federal, é fácil perceber que a Lei Maior traz como baliza a garantia aos direitos fundamentais, primando pela dignidade da pessoa humana e o bem de todos, sem qualquer distinção, afirmando a sua vocação genuinamente democrática.
A Carta Magna traz expressamente, em seu art. 6º, os direitos sociais, elevando-os ao patamar de direito fundamental, que são aqueles
“afirmados na Constituição como garantias dos indivíduos e da sociedade diante da força do Estado, seja por estabelecerem esferas de autonomia protegidas contra a ingerência do Estado, seja por definirem obrigações a serem satisfeitas pelo Estado em relação aos indivíduos, seja por assegurarem a participação dos cidadãos na condução da política” [1].
Deveras, no Estado de Bem-estar social, este assegurado pelo constituinte quando da promulgação da Constituição, há firmado expressamente o compromisso do ente estatal em garantir a proteção à dignidade da pessoa humana, buscando tutelar os direitos fundamentais, sejam eles individuais, sejam eles sociais. A essência de proteção é a mesma, contudo, apesar de conectados entre si e darem a sensação de serem semelhantes, é necessário diferenciá-los.
Os direitos individuais, como o próprio nome sugere, são aqueles inerentes ao indivíduo, ligado ao conceito da pessoa humana e sua personalidade. É o direito à vida, à liberdade, à intimidade, etc.
Já os direitos sociais, são os que buscam melhorar as condições de uma coletividade, sendo o Estado o ente responsável por salvaguardar esse direito, tais como direitos trabalhistas, o direito à saúde, à previdência social, etc. Segundo a magistrada Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto, é
“o conjunto das pretensões ou exigências das quais derivam expectativas legítimas que os cidadãos têm, não como indivíduos isolados, uns independentes dos outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em sociedade com outros indivíduos” [2].
A vida é bem indissociável devendo ser cuidada e protegida e, nesse ínterim, a Organização Mundial de Saúde tem forte ligação, já que o seu objetivo principal é alcançar o mais alto grau de saúde para todos os seres humanos, daí porque, segundo a organização, o conceito da palavra saúde é muito mais amplo do que se imagina, não se tratando somente em não ser ou estar doente, mais sim de
“um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” [3].
Em complemento ao definido pela OMS, a Organização Pan-Americana da Saúde, organismo internacional de saúde que faz parte dos sistemas da ONU, sinaliza que diversos fatores externos podem colocar em risco o tríplice bem-estar necessário para se chegar a definição de indivíduo saudável, dentre eles mudanças sociais bruscas, condições de trabalho estressantes, discriminação e exclusão sociais, além de violência e violação dos direitos humanos [4].
E foi para garantir e preservar a saúde da população que a OMS, em março de 2020, declarou que o novo COVID-19 atingiu patamar de pandemia mundial e, em virtude do alto grau de contaminação do vírus, determinou algumas diretrizes e medidas de proteção a serem seguidas em escala global, como por exemplo a necessidade de isolamento social [5].
É inegável que a pandemia mudou os hábitos de grande parte da população que, com base nas novas orientações - procurou e ainda tem procurado - alternativas para se adaptar as recomendações dos órgãos de saúde, sendo uma das saídas encontradas se manter em casa o maior tempo possível, seja trabalhando em regime de Home Office, seja através de aulas virtuais e etc. o que, por óbvio, aumentou a convivência entre vizinhos.
A Lei nº 13.979/2020 dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do COVID-19, determinando uma série de obrigações, restrições e recomendações que devem ser seguidas por toda a sociedade.
O seu texto informa que as pessoas, sem prever qualquer exceção, devem colaborar com as autoridades sanitárias comunicando imediatamente possíveis contatos com agentes infecciosos, além considerar obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo COVID-19, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.
Ora, então o doente é obrigado a informar que testou positivo para o COVID-19?
E em se tratando das regras legais que regem a relação condomínio X condômino, o morador é o obrigado a informar aos outros moradores que testou positivo para o COVID-19?
Não há qualquer dispositivo legal que determine a obrigação do doente de comunicar a quem quer que seja, inclusive aos vizinhos, sobre a sua condição de enfermo, em razão do direito fundamental à privacidade, salvaguardado pela Constituição Federal que confere inviolabilidade a intimidade e a vida privada.
Essa é a regra, contudo, outras situações devem ser observadas.
Considerando o cenário atual tratar-se de situação atípica, e até então inimaginável, considerando a real necessidade de manter-se em quarentena, e considerando o crescente número de contaminados e de óbitos em decorrência do Coronavírus, somados à falta de vacina para a doença, a sociedade vem se mantendo alerta e em grande estado de tensão, fatores que intensificam o medo e, consequentemente, exalta os ânimos das pessoas, sobretudo daquelas que vivem em uma comunidade com maior proximidade e contato direto, como nos casos dos condomínios, cujas áreas sociais (elevador, hall de entrada, garagem, etc.) são utilizadas por todos os moradores.
O condomínio é regido por regras do direito de vizinhança que basicamente limitam o direito de propriedade dos seus moradores para evitar conflitos e fazer valer o bom convívio social, sendo vedado legalmente ao condômino fazer uso da edificação de modo a prejudicar a segurança, o sossego e a salubridade dos demais moradores [6].
E é justamente nesse ponto que o direito social aparece. Isso porque o direito individual do cidadão não pode colocar em risco o direito da coletividade, e é por isso que o Estado estabelece mecanismos e condutas a serem seguidas (deveres) e direitos a serem respeitados e, não o sendo, o indivíduo que vive em um meio social (e por isso se submete as normas daquele local) será responsabilizado pelo ato que maculou e feriu o direito de outrem.
Trazendo para a esfera condominial podemos desenhar a seguinte situação: o morador X testa positivo para COVID-19 e resolve não comunicar ao condomínio, baseado no seu direito constitucional à privacidade. Ao receber o resultado do exame o morador X volta para casa e lá permanece em isolamento, contudo, antes de entrar no seu apartamento, ele utilizou a garagem e o elevador. Ao sair do elevador, o morador Y, que é seu vizinho, pegou o mesmo elevador e foi até o seu carro (que fica ao lado do carro do morador X). O condomínio, que não foi avisado, não fez a desinfecção do elevador logo após a utilização pelo morador contaminado e, por isso, outros moradores, inclusive o Y, utilizaram o equipamento o que veio a culminar no contágio do morador Y.
Ora, o morador X se valeu do seu direito constitucional à inviolabilidade de sua privacidade e não comunicou ao condomínio. Contudo ao deixar de fazê-lo colocou em risco o direito à saúde e à segurança da sociedade (e em menor escala, do condomínio).
Em verdade, não há um dever legal de comunicação, mas sim é necessário utilizar-se do senso de vida em comunidade, das condutas de colaboração e solidariedade para com o outro, cuja informação tem o condão de não prejudicar a saúde e nem colocar em risco a segurança dos demais condôminos. Isso porque, é somente com essa informação que o síndico poderá comunicar aos demais moradores que há um condômino contaminado, mantendo o sigilo de sua identidade, a fim de que as medidas de precauções de higiene e proteção sejam redobradas, tanto pelo próprio condomínio, no que tange a limpeza e desinfecção, quanto pelos moradores ao utilizar as áreas comuns de circulação inevitável, como elevador, hall de entrada, dentre outros.
Além disso, em virtude do dever de fiscalização e de zelo aos interesses dos condôminos, o síndico munido dessas informações, poderá comunicar a vigilância epidemiológica para que o instituto forneça as orientações necessárias de prevenção ao contágio, o que não seria feito se o morador se mantiver silente quanto à doença, como no caso do morador X exemplificado acima.
De outro lado, o fato de a própria pessoa não comunicar quanto a sua contaminação por COVID-19 não configurar crime por si só, é importante se atentar aos casos em que o silêncio contribuirá para a prática de outras condutas tipificadas na legislação penal por irresponsabilidade e descumprimento das medidas de segurança estabelecidas na Lei nº 13.979/2020.
A exemplo dos indivíduos que possuam diagnóstico positivo para COVID-19 e, mesmo sabendo da necessidade de manter distanciamento, venham a descumprir o período de isolamento domiciliar ou hospitalar para tratamento e contaminem terceiros, podendo incorrer nos crimes de lesão corporal e até homicídio (se esta contaminação a causar a morte de outrem).
Ainda, o indivíduo poderá ser enquadrado nos crimes de desobediência, de infrações a medidas sanitárias e contra a saúde pública, caso se recuse a fazer os exames necessários ou de realizar o tratamento de modo adequado.
Qualquer processo de mudança exige um tempo para adaptação, sobretudo no cenário atual, no qual as preocupações com a saúde da população e a incerteza em que o mundo se encontra, prejudicam a todos. Assim, é importante manter um canal aberto entre os condôminos e o condomínio, a fim de facilitar a comunicação e possibilitar o esclarecimento de possíveis dúvidas, demonstrar a importância de informar sobre a contaminação em prol da saúde de toda a comunidade, além de passar segurança aos moradores quanto ao sigilo de sua identidade, bem como garantir que qualquer ato discriminatório será rechaçado e punido, para que o morador contaminado se sinta confortável em contribuir com a vida em comunidade, ainda que para isso o seu direito à intimidade seja mitigado.
Também, é importante lembrar que os condôminos devem seguir normas de boa convivência e de conduta em sociedade, internalizando que, mesmo não sendo legalmente obrigado a comunicar a respeito da contaminação por COVID-19, o seu senso ético e moral deve lhe inclinar a pensar não somente em si, mas em todos os que estão ao seu redor, e que o seu simples comunicado tem o poder de evitar inúmeros contágios.
Notas
[1] CANALLI, Rodrigo. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade. STF Educa Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade - Turma 3. 2020.
[2] PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Direitos Individuais, Coletivos e Sociais? Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2008/direitos-individuais-coletivos-e-sociais-juiza-oriana-piske-de-azevedo-magalhaes-pinto. Acesso em: 07/08/2020.
[3] Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde. 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 07/08/2020.
[4] Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5263:opas-oms-apoia-governos-no-objetivo-de-fortalecer-e-promover-a-saude-mental-da-populacao&Itemid=839#:~:text=A%20constitui%C3%A7%C3%A3o%20da%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial,aus%C3%AAncia%20de%20doen%C3%A7a%20ou%20enfermidade%E2%80%9D. Acesso em: 07/08/2020.
[5] Disponível em: https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus. Acesso em: 07/08/2020.
[6] art. 1.336, inc. IV, Código Civil.