De início, cabe ressaltar que a instauração de investigações disciplinares ou criminais faz parte do microssistema do direito sancionador, onde o agente público se submete aos deveres e proibições elencadas na lei e em seu estatuto funcional como medida de preservar a boa prestação dos serviços.
Dessa forma, o poder disciplinar, como prática de qualquer ato promovido pelo Poder Público, se submete ao princípio da legalidade, como condição sine qua non de validade jurídica de seus atos.
O servidor público que exerce suas atribuições poderá responder pelos seus atos nas instâncias civil, penal e administrativa (art. 121, da Lei nº 8.112/90). Essas responsabilidades possuem características próprias, sofrendo gradações vinculadas às condutas ilícitas no exercício das atribuições funcionais ou em razão delas, possibilitando a aplicação de diferentes penalidades e de liturgias legais que variam de instância para instância.
Sucede que existe outra instância que se imbrica com a esfera disciplinar quando a mesma se digna a investigar o servidor público pela prática de suposto ato de improbidade, com base no art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92.
Ou seja, quando o poder disciplinar investiga o servidor público na esfera tributária, em especial no tipo descrito no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92 (enriquecimento ilícito), onde verifica a vida fiscal do contribuinte servidor se vincula às normas de direito tributário, aplicáveis ao caso concreto.
Isso porque a investigação tributária percorrida na esfera disciplinar visa verificar se o servidor no exercício de suas atribuições legais, ou em razão delas, adquiriu bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução ou a renda auferida pelo mesmo (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), ou seja, ela necessariamente irá percorrer normas e regulamentos inerentes ao direito tributário.
Inobstante o fato de o contribuinte ser servidor público, o poder disciplinar, por ser uma investigação patrimonial, deve ser regida (regido) pelas normas fiscais, para fins de procedibilidade disciplinar, visto que o ordenamento jurídico tributário não poderá ser desprezado.
Não há como se dissociar as normas e os procedimentos elencados na legislação tributária, quando se trata de investigação patrimonial de servidor público.
Apesar de ser uma infração disciplinar o enriquecimento ilícito do servidor público, quando o poder disciplinar possui a necessidade de aprofundar as investigações utilizando-se das informações prestadas à Receita Federal na transmissão do ajuste anual do imposto de renda, necessariamente, deverá observar as regras legais que regem a matéria, sob pena da prática de atos movidos por abuso de poder do direito de investigar, em face do total desprezo aos direitos e garantias dos contribuintes.
Essa conclusão é um desdobramento lógico quando se trata de verificar as normas, manuais e legislação tributária do contribuinte servidor público, para fins de tipificação da evolução patrimonial ou desproporcional à renda do investigado.
Ao se adentrar na esfera tributária/fiscal, o poder disciplinar terá que se submeter às regras de competências e de procedimento legal vinculado à Receita Federal, poder este competente para instituir normas e procedimentos legais que devem ser observadas, sob pena de ineficácia e ineficiência da persecução disciplinar.
A regra legal aplicável à investigação sub examem, a toda evidência, jamais poderá ser descartada ou inobservada, pois a Administração Pública submete-se ao princípio da legalidade de seus atos.
Exemplo claro do que fora afirmado é quando a Administração pratica negócio jurídico de locação de imóvel, contrato tipicamente privado. Nessa caso, ela passa a ser regida pelo direito privado, abrindo mão de sua supremacia de poder público, desnecessária para aquele negócio jurídico.
Nesse sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça – STJ:
“LOCAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA DE ALUGUÉIS ATRASADOS EM FACE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. NÃO INCIDÊNCIA DO DECRETO N.º 20.910/32. AÇÃO EXTINTA SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. CITAÇÃO VÁLIDA. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO. NÃO CONFIGURADA.
1. O Decreto 20.910/32 regula relações jurídicas tipicamente de Direito Público e, portanto, não deve reger as relações jurídicas de direito privado, nas quais a Administração atua sem as prerrogativas que lhe são inerentes.
2. O negócio jurídico ora sob o exame locação de imóvel é tipicamente de direito privado e, portanto, o fato de o Locatário ser a Administração Pública não basta para que preponderem os ditames específicos de direito público em detrimento das normas de direito privado, inclusive as atinentes à prescrição.
3. A citação válida interrompe o prazo prescricional, ainda que promovida em processo posteriormente extinto sem julgamento do mérito, salvo se o fundamento legal da extinção for o previsto no art. 267, incisos II e III, do Código de Processo Civil.
Aplicando-se à espécie as regras de direito privado, interrompida a prescrição, o curso desta volta a correr por inteiro 05 (cinco) anos a partir do último ato do processo que a interrompeu, a teor do disposto no art. 173 c.c. o art. 178, § 10, inciso IV, do Código Civil e não pela metade 2 anos e meio na forma prevista no Decreto n.º 20.910/32. 5. Recurso especial conhecido e provido.” [1]
Por oportuno, sobre a aplicação dos ditames de Direito Privado nos contratos privados celebrados entre o Particular e a Administração Pública, vale ressaltar as consagradas lições doutrinárias de Helly Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, verbis:
“A Administração Pública pode praticar atos ou celebrar contratos em regime de Direito Privado (Civil ou Comercial), no desempenho normal de suas atividades. Em tais casos ela se nivela ao particular, abrindo mão de sua supremacia de poder, desnecessária para aquele negócio jurídico. É o que ocorre, p. ex., quando emite um cheque ou assina uma escritura de compra e venda ou de doação, sujeitando-se em tudo às normas do Direito Privado. [...]” [2]
“A) A Administração pratica inúmeros atos que não interessa considerar como atos administrativos, tais:
a) atos regidos pelo Direito Privado, como, por exemplo, a simples locação de uma casa para nela instalar-se uma repartição pública. O Direito Administrativo só lhe regula as condições de emanação, mas não lhes disciplina o conteúdo e correspondentes efeitos.” [3]
“A expressão contratos da Administração é utilizada em sentido amplo, para abranger todos os contratos celebrados pela Administração Pública, seja sob regime de direito público, seja sob regime de direito privado. E a expressão contrato administrativo é reservada para designar tãosomente os ajustes que a Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para a consecução de fins públicos, segundo regime jurídico de direito público.
Costuma-se dizer que, nos contratos de direito privado, a Administração se nivela ao particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da horizontalidade e que, nos contratos administrativos, a Administração age como poder público, com todo o seu poder de império sobre o particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da versatilidade. ” [4]
Da mesma forma, quando o ilícito for tipicamente direito penal, a responsabilidade do servidor decorrerá da prática de infrações penais (art. 123, da Lei nº 8.112/90), e a Administração Pública se utilizará de normas e de princípios aplicáveis à hipótese jurídica investigada, remetendo ao Ministério Público para a instauração da ação penal cabível, na forma dos artigos 154, parágrafo único e 171 da Lei nº 8.112/90.
A remessa do processo disciplinar ao Ministério Público deve ocorrer após a conclusão, em decorrência da observância dos princípios da legalidade, do devido processo legal e da presunção de inocência.
Todavia, embora se consagre o princípio da independência das instâncias, há situações em que, uma vez decididas no processo penal repercutem nas instâncias civil e administrativa, afastando-se a autoria e negado o fato do ilícito penal, o resultado do juízo criminal produzirá efeitos no âmbito disciplinar (art. 126, da Lei nº 8.112/90 e art. 935 do Código Civil).
Igualmente, quando o ilícito investigado for o fiscal, para fins de procedibilidade disciplinar as aludidas esferas do direito (disciplinar e tributário) se imbricam e tornam-se indissociáveis (por necessitar da constituição definitiva do crédito tributário para apuração se houve, ou não, variação patrimonial ou de rendas, com os vencimentos do servidor público) objetivando a busca da verdade real, além de serem obrigatórias às regras de competência e de legalidade.
A norma jurídica estabelece critérios de direitos e garantias em todas as esferas como forma de disciplinar a alteração do poder persecutório estatal, bem como dotar os investigados de prerrogativas que são indelegáveis as quais, se não forem observadas, nulificam toda a investigação ante o abuso de poder do Estado.
Dessa forma, se for investigado ilícito fiscal do servidor público para fins de subsunção no tipo do enriquecimento ilícito, a esfera disciplinar deverá observar a regra de competência e de aplicação das normas legais pertinentes à matéria investigada, em especial a CRFB/88 (limites do poder de tributar do Estado e a isonomia tributária), o Código Tributário Nacional – CTN, resoluções e portarias da Receita Federal.
O sistema tributário brasileiro é formado por um sistema de outorga de competência não só para criar a regra matriz de incidência tributária, mas também para fazer surgir todas as demais que prescrevem a fiscalização e arrecadação de tributos.
Destaque-se que a competência tributária para efetuar o lançamento de ofício, após a constituição do crédito tributário, é da autoridade administrativa tributante, de forma indelegável, consoante lição do artigo 7º, do CTN:
“Art. 7º - A competência tributária é indelegável, salvo as atribuições das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas, em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público e outra, nos termos do §3º, do art. 18 da Constituição”.
Sendo indelegável a competência tributária, a primeira indagação que se deve ter como alça de mira é se o poder disciplinar possui a competência de invadir as atribuições das funções dos Auditores da Receita Federal, a fim de preconizar por possíveis lançamentos fiscais (?)
Essa é uma situação frequente na atualidade, onde as corregedorias, de forma ilegal e totalmente açodada, vêm atropelando as regras voltadas ao sistema tributário e, em face da não observância da competência legal, passam a devassar a vida fiscal do contribuinte servidor público, sem poderes para tal fim.
Na verdade, a fiscalização da Receita Federal do Brasil, munida de um mandado de procedimento fiscal, possui a competência tributária indelegável de fiscalizar o imposto de renda do contribuinte servidor público.
Frise-se que a competência vem descrita, de forma expressa, pelo já citado artigo 7º, do CTN, e não pode possuir interpretação “elástica” ou “expansiva”, em face da própria descrição da norma legal.
Não existe previsão para a delegação de tal poder às corregedorias locais quando elas se arvoram em “poder tributário disciplinar”, sem respaldo na legalidade.
Em sendo assim, o artigo 142, do CTN, destaca a competência da autoridade administrativa tributária para efetuar lançamentos de ofício, após o devido processo legal.
Compete única e exclusivamente ao auditor fiscal da Receita Federal do Brasil verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinando os atos inerentes à matéria tributável, bem como identificar e calcular o valor do montante do tributo devido e, se for o caso, identificado o sujeito passivo, propor a aplicação da penalidade legal.
Apesar de o CTN não definir qual autoridade administrativa possui tal poder legal, deixando para a lei de cada ente político a incumbência de fazê-lo, a Lei nº 10.593/2003, em seu art. 6º, I, “a”, atribui, em caráter privativo, aos ocupantes de cargo de Auditor da Receita Federal do Brasil, a competência para constituir, mediante lançamento, o crédito tributário.
Cabendo ressaltar, no entanto, que o Decreto nº 6641, de 10 de novembro de 2008, estabeleceu as atribuições dos cargos da carreira de Auditor da Receita Federal, na forma do seu anexo.
O art. 2º, do Decreto nº 6.641, de 10 de novembro de 2008, fixa, em caráter privativo, as atribuições dos ocupantes do cargo efetivo citado:
“Art. 2º. São atribuições dos ocupantes do cargo de AuditorFiscal da Receita Federal do Brasil:
I - no exercício da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil e em caráter privativo:
a) constituir, mediante lançamento, o crédito tributário e de contribuições;
b) elaborar e proferir decisões ou delas participar em processo administrativo-fiscal, bem como em processos de consulta, restituição ou compensação de tributos e contribuições e de reconhecimento de benefícios fiscais; executar procedimentos de fiscalização, praticando os atos definidos na legislação específica, inclusive os relacionados com o controle aduaneiro, apreensão de mercadorias, livros, documentos, materiais, equipamentos e assemelhados;
c) examinar a contabilidade de sociedades empresariais, empresários, órgãos, entidades, fundos e demais contribuintes, não se lhes aplicando as restrições previstas nos arts. 1.190 a 1,192 do Código Civil e observado o disposto no art. 1.193 do mesmo diploma legal;
d) proceder à orientação do sujeito passivo no tocante à interpretação da legislação tributária; e
e) supervisionar as demais atividades de orientação ao contribuinte; e
f) em caráter geral, exercer as demais atividades inerentes à competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil.”
Portanto, o Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil é a autoridade pública federal responsável pela administração tributária e aduaneira da União Federal. Possui como atribuição principal, na qualidade de autoridade administrativa, fiscal, tributária e aduaneira, a função de presidir os procedimentos de fiscalização dos tributos federais, culminando com o lançamento do crédito tributário, de forma privativa e exclusiva (competência).
Se por um lado existe a competência privativa da citada autoridade administrativa, o certo é que existem normas tributárias que foram estabelecidas para trazer a segurança jurídica tanto para à administração tributária, quanto para o contribuinte, pois não podem pairar responsabilidades para o sujeito passivo da relação tributária com o fisco eternamente.
E o princípio da decadência do direito de lançamento fiscal estabiliza a relação do contribuinte com o fisco, imutalizando a situação fiscal do contribuinte.
Não existe exceção a essa regra, pois o princípio da isonomia tributária exige o mesmo tratamento para todos os contribuintes, inclusive para os agentes públicos, que recebem os seus rendimentos pagos pelo ente de direito público.
Em sendo assim, não compete à Comissão que compõe a sindicância patrimonial efetuar lançamentos tributários dos servidores públicos investigados, por não possuir atribuição legal.
Para evitar a conturbação e a confusão que vêm ocorrendo na atualidade, compete ao membro da Comissão Disciplinar ou da Sindicância Patrimonial representar a autoridade fiscal compete para que ela, privativamente, faça o devido lançamento tributário, visto à sua total incompetência funcional, após o devido processo legal de fiscalização.
Na prática, as Comissões Patrimoniais ou Disciplinares estão cometendo abuso de poder, pois, apesar de não possuírem competência legal para efetuarem a fiscalização do imposto de renda do servidor investigado, criam critérios distintos ao que vem estabelecido pelas normas da Receita Federal e pelo próprio Código Tributário Nacional - CTN.
Isso porque, quando o servidor apresenta sua declaração anual de imposto de renda ao fisco e, na forma do art. 13, da Lei nº 8.429/92, encaminha cópia da mesma ao ente público vinculado, a Receita Federal possui como dever legal, prazo para efetuar a devida conferência e, constatando alguma incoerência ou ilegalidade nas mesmas, de ofício, compete-lhe promover a devida fiscalização.
Ou seja, somente a Receita Federal é que possui esse poder privativo, de fiscalização da declaração de rendas do contribuinte, servidor público ou não, deixando de delegar tal competência para a esfera correicional do contribuinte servidor público investigado, mesmo que se trate da hipótese de investigação de pseudo enriquecimento ilícito tipificado como funcional (art. 9º, VII, da Lei 8.429/92).
Em sendo assim, é dever do poder disciplinar, após estudos preliminares, representar para a Receita Federal cumprir seu munus legal e verificar se há ou não o enriquecimento ilícito do agente público e seu eventual tributo a ser recolhido.
Como não possui a competência legal para fiscalizar ou alterar os dados fornecidos e transmitidos na declaração de rendas do servidor público, as comissões dos processos ou procedimentos disciplinares, jamais poderão se arvorar da competência privativa da Receita Federal para lançar tributos e declarar que houve variação patrimonial a descoberto ou incompatível com a renda recebida pelo servidor, em razão de sua função pública.
Na verdade, a atribuição do poder disciplinar é conferida pelo art. 143, da Lei nº 8.112/90, assim descrito:
“Art. 143 - A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa”.
Utilizando-se sua atribuição legal, a autoridade disciplinar, se constatar irregularidade funcional, deve promover a pronta investigação para conferir ao servidor acusado o devido processo legal e a ampla defesa.
Verificando o recebimento de “propina” ou de vantagem ilícita além daquelas hipóteses descritas no art. 9º, inc. I II, III, IV, V, VI, VIII, IX, da Lei nº 8.429/92, a Comissão Disciplinar, utilizando-se dos critérios objetivos, vinculando a produção de prova e da verdade real, enquadrará o acusado em seu suposto enriquecimento ilícito, vinculado a um ato funcional comissivo ou omissivo.
Sucede que, não encontrando indício de irregularidade funcional, ou recebimento de vantagem ilícita, geralmente o poder disciplinar se arvora, de forma irregular, e sem competência tributária, em poder fiscal, promovendo uma verdadeira devassa fiscal nas declarações de rendas do servidor investigado, no afã de encontrar algo que não foi identificado pela Receita Federal em períodos decadentes ou não, com esteio no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92.
Ao proceder dessa forma, estar-se-á configurada a conturbação ou a confusão jurídica entre poder fiscal e poder disciplinar.
A conclusão fica cristalinamente comprovada e demonstrada quando o poder disciplinar que faz às “vestes” do poder fiscal, usurpando a competência que ela não possui e se “transforma” em instância fiscal única, sem direito de recurso.
Constatando-se, assim, que há inconsistências na declaração de renda do servidor público, o poder disciplinar deve encaminhar ao poder fiscal, via representação, a situação tributária do contribuinte investigado, para que o poder compete possa cumprir o seu munus legal (Receita Federal do Brasil).
Isso tudo dentro do prazo decadencial (5 anos), ou seja, se ainda puder ser alterada e fiscalizada o período da declaração de rendas do servidor investigado, diga-se de passagem, de qualquer cidadão, lícito será o encaminhamento de representação disciplinar para a Receita Federal iniciar a competente fiscalização.
Sabe-se que a prescrição e a decadência são causas de direito especiais da extinção da obrigação tributária, aplicando-se a todos os contribuintes, inclusive ao servidor público investigado na esfera disciplinar.
A decadência, como já visto anteriormente, atinge o próprio direito substantivo, enquanto a prescrição atinge o direito formal.
O art. 173, do CTN estabelece que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, nos seguinte[s] termos:
“Art. 173 - O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.
Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento”.
Já a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos contados da data da sua constituição definitiva do crédito tributário (cf. art. 174, do CTN).
E, em nome da segurança jurídica, as relações de direito não se colocam livres dos efeitos do transcurso do tempo. Por mais relevantes que sejam os argumentos em contrário, o certo é que o transcurso do tempo pode criar, modificar ou extinguir direitos das pessoas que participam das relações jurídicas diversas.
Geralmente a decadência é uma forma extintiva de obrigação de constituição de crédito tributário, ou seja, da perda da faculdade do sujeito ativo da relação tributária agir sobre o sujeito passivo (contribuinte).
Pela decadência, o poder tributário perde a condição de constituição do crédito, na forma do art. 156, V, CTN.
Sobre o tema, Leandro Paulsen [5] averba:
“Por força do art. 156, V, do CTN, a prescrição extingue o crédito tributário. Em razão disso, e. g., o pagamento de crédito prescrito é indevido, ensejando repetição conforme se pode ver na nota do art. 165, inc. I, do CTN. Esta peculiariedade da prescrição em matéria tributária nos leva ao entendimento de que se equipara à decadência quanto a tal efeito, de modo que se enseja o reconhecimento de ofício pelo Juiz em Execução Fiscal”.
Por essa razão, a Receita Federal não poderá mais fiscalizar o contribuinte ou alterar as informações prestadas pelo mesmo em suas declarações anuais de rendas, em face do transcurso do tempo.
Não podendo mais ser fiscalizado tributariamente (constituição do crédito tributário), a declaração de rendas prestada anualmente ficará protegida pelo instituto da decadência (imutabilidade).
Desse modo, o não lançamento dentro do prazo decadencial extingue o crédito tributário do mundo fático, ainda que não constituído no mundo jurídico.
Assim, quando o poder disciplinar promover “fiscalização”, ou direcionar investigação patrimonial a períodos já decadentes tributariamente, estará criando uma situação jurídica inusitada e vedada pelo ordenamento jurídico.
Inusitada pelo fato de, ao tempo em que a autoridade administrativa tributária competente não pode mais se manifestar sobre o lançamento do crédito tributário, de forma ilegal o poder disciplinar se traveste em órgão revisor do poder fiscal, por revisitar os valores declarados anteriormente nas declarações de rendas do servidor investigado.
Isso porque, como o poder disciplinar procede a “revisão” dos informes fiscais do servidor investigado, mesmo já exaurido o tempo de “revisão” ou de alteração da respectiva declaração de rendas anteriores aos 5 (cinco) anos legais de que trata a decadência, acaba por criar uma situação de excepcionalidade não prevista no CTN para o contribuinte servidor.
Temos um sistema híbrido de fiscalização, onde a esfera competente, à fiscal, após o decurso do tempo decadencial, não poderá mais alterar o que foi declarado pelo contribuinte para fins tributários/fiscais inerentes as declarações anuais de rendas do servidor investigado disciplinarmente, ao passo que a esfera incompetente (poder disciplinar) ultrapassa a barreira temporal de forma ilegal.
Se a esfera competente (tributária) não poderá rever tais informes anuais de rendas do servidor investigado, jamais poderá o poder disciplinar alterar tais informações para “fiscalizar” período já decadente.
Tal confusão está sendo verificada nas sindicâncias e nos processos administrativos disciplinares de uma maneira geral é exatamente por: a) a esfera disciplinar não possuir poder legal de fiscalização fiscal do servidor público; b) deve o poder disciplinar representar ao poder fiscal competente para a regular fiscalização do servidor investigado; c) se operar a decadência, o servidor não poderá ser investigado para fins tributários, ficando prejudicada a verificação se houve ou não variação patrimonial incompatível com a renda recebida; d) a sindicância patrimonial não possui poder para efetuar lançamento tributário ou “fiscalizar” declarações de rendas do servidor público; e e) verificada a inconsistência da declaração de rendas do servidor público, e não estando prescrita ou decadente a mesma, o poder disciplinar possui o dever de representar ao poder fiscal para fins de verificação de um possível enriquecimento ilícito.
Essa é a conclusão lógica da regra de competência, onde o poder de lançamento, ou de revisão das declarações de renda do servidor contribuinte é exclusiva do Auditor da Receita Federal do Brasil, de forma indelegável e privativa.
É necessário ao servidor prejudicado procurar socorro no manto protetor do Poder Judiciário, para que seja resolvida a presente confusão causada pelo poder disciplinar, que se arvora do direito de invadir a competência do poder fiscal.
A instituição de tratamento desigual entre contribuintes, em razão de ocupação profissional (servidor público) é inconstitucional, em face da isonomia tributária (art. 150, inc. II, da CRFB/88), pois, ao ser verificado o prazo decadencial do lançamento tributário, o contribuinte do imposto de renda não poderá ter a sua declaração de rendas revista ou refiscalizada, mesmo que seja servidor público. Em sendo assim, o poder disciplinar deve se limitar ao escopo de competência e respectivas regras tributárias, face ao que vem estabelecido no art. 150, II, da CRFB/88:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”
O princípio da isonomia tributária estabelece que o contribuinte seja tratado de forma uniforme, não podendo haver qualquer distinção em razão de ocupação profissional. [6]
Dessa forma, os direitos e deveres tributários serão iguais para todos os contribuintes, inclusive os servidores públicos e os demais contribuintes, que possuem na decadência a estabilização de suas situações fiscais.
Assim, operando-se o fenômeno da decadência ou da prescrição, ela atinge a todos os contribuintes de uma maneira geral, inclusive os servidores públicos investigados em processos disciplinares.
Da mesma forma, somente o poder tributante é que poderá alterar, privativamente, os valores lançados nas declarações de rendas dos contribuintes, servidores públicos ou não.
No entanto, o que se verifica na situação jurídica aqui enfrentada é que o poder disciplinar, apesar de utilizar da regra tributária para verificar se há indício de enriquecimento ilícito do servidor público investigado, quando se trata de prescrição e de decadência aplicadas pelo poder fiscal, em face de regramento jurídico, se desvincula de tal preceito legal, de modo que uma mesma relação jurídica é tratada de forma que não enseje prazos prescricionais e decadenciais uniformes, totalmente anti-isonômica.
Pois bem, a primeira consideração que se deve fazer é que a isonomia tributária não admite o tratamento diferenciado pelo poder disciplinar.
A interpretação do poder disciplinar é que a prescrição e a decadência começam a fluir quando a Administração Pública toma conhecimento de irregularidade funcional, na forma do art. 142, da Lei nº 8.112/90.
Essa interpretação é equivocada, pois, com o advento do art. 13, da Lei nº 8.429/92, a posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração de bens e valores que compõe o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente.
Essa declaração de bens será anualmente atualizada, respondendo o agente público a pena de demissão, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, se recusar a prestar declarações dos bens, dentro do prazo determinado.
Com essa exigência legal, o poder público possui o acesso amplo às declarações de rendas feitas pelo servidor público anualmente em seu ajuste do imposto de renda, ocorrendo a devida transparência na gestão da res publica, por meio de declaração dos bens e valores que compõem o patrimônio privado do servidor público.
Havendo recusa do servidor público, ele poderá, em tese, ser demitido, após o devido processo legal, com a utilização dos meios que lhe asseguram a ampla defesa e o contraditório.
Dito isto, é de se observar que, quando o poder disciplinar recebe ou toma ciência da pseudo prática de um possível enriquecimento ilícito, ao invés de identificar se houve o ato comissivo ou omissivo formal capaz de demonstrar se houve um incremento financeiro para o servidor, resolve devassar as declarações de rendas dos seus subordinados, no intuito de estabelecer um possível ilícito fiscal e financeiro que comprove as suspeitas.
Aí surge a confusão e conturbação, pois quando a esfera disciplinar se imiscuiu na esfera fiscal do servidor público, ela não poderá criar critérios diversos de contagem de prescrição e de decadência quando se trata de “fiscalização” do que fora declarado pelo contribuinte investigado na instância disciplinar, em seu ajuste anual de imposto de renda.
Ao se utilizar dos critérios fiscais, estabelecidos nas normas e nos regulamentos da Receita Federal, o poder disciplinar não poderá desconsiderar os prazos e as prescrições estabelecidas no CTN e nos regulamentos da Receita Federal, porque não será dado um tratamento desigual entre contribuintes, em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida (art. 150, da CRFB/88).
Isso porque o contribuinte que não ocupa cargo ou função pública teria tratamento diferenciado do contribuinte servidor ou agente público?
Seria constitucional tal distinção?
Ora, quando e tratar de uma investigação que utilizar de regras fiscais, vinculadas à verificação do servidor público como contribuinte do imposto de renda, não resta dúvidas de que tanto o critério de fiscalização utilizado pelos Regulamentos, Normas e pelo CTN deverão ser observados pela esfera disciplinar, por ser inconstitucional a mitigação de direitos e deveres do contribuinte do imposto de renda, que possuem na isonomia tributária o mesmo tratamento.
Em assim sendo, prescrita ou decadente o exercício fiscal, não há como “ressuscitá-la” na esfera disciplinar para se fazer retificações ou novos lançamentos, diferentes dos já declarados à Receita Federal quando do ajuste anual do imposto de renda do contribuinte, sem competência ou poder para tal fim.
Nesse passo, ao ser imutabilizada a declaração de rendas pelo transcurso do tempo, não há como alterá-la na esfera disciplinar, para que o servidor público tenha a sua declaração oficial prestada de uma forma à Receita Federal e outra Declaração de Renda, glosada ou utilizada pelo poder disciplinar, após o prazo decadencial das mesmas.
O poder disciplinar somente poderá investigar as declarações de rendas do servidor público que não estejam decadentes, e assim mesmo através de representação fiscal à autoridade fazendária, quando se tratar da hipótese jurídica descrita no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92, que possui o poder privativo de lançar e de fiscalizar os tributos e as declarações de rendas, glosada ou utilizada pelo Poder Disciplinar, após o prazo decadencial das mesmas.