O princípio da duração razoável do processo administrativo ou judicial encontra-se encartado na Constituição Federal/88 desde a Emenda Constitucional nº 45/2014, que incluiu o inciso LXXVII ao artigo 5º.
É que nesses casos não pode ser subtraída a competência fiscal tributária para se instituir processo administrativo disciplinar que não respeite a competência privativa da Receita Federal, e os prazos estabelecidos como limites para a investigação tributária/fiscal do contribuinte, incluindo nesse contexto, o servidor público, em face do princípio da isonomia tributária.
Vigem, portanto, os princípios da boa-fé, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da necessária estabilização das relações públicas e sociais, que autorizam o reconhecimento de que o poder disciplinar não pode se furtar de observar um prazo razoável para a revisão de atos tributários ou administrativos dos quais já tenham produzido efeitos jurídicos para os administrados, neles incluídas as declarações de rendas transmitidas para a Receita Federal.
É certo que a atuação do Poder Disciplinar, como do próprio Estado, deve pautar-se pela legalidade, o qual a doutrina dominante vincula à configuração do regime jurídico administrativo.
Derivativo do princípio da legalidade, o princípio da autotutela impõe à Administração Pública o dever de anular/invalidar os seus próprios atos quando eivados de vício ou, ainda, revogar aqueles que não se compatibilizem com a conveniência e oportunidade para a realização do interesse público.
O princípio da autotutela se encontra sedimentado no Supremo Tribunal Federal, notadamente nas Súmulas números 346 e 473.
No entanto, a legalidade não pode ser entendida apenas de forma estrita e dissociada de sua adjetivação constitucional.
É notório que a legalidade deve conectar-se aos princípios vigentes do Estado Democrático Constitucional de Direito.
E parte da própria Constituição Federal/1988, o respeito, a segurança jurídica, a manutenção da confiança, prevendo a prescritibilidade como regra e a imprescritibilidade como exceção.
Nesse quadrante, segue a lição de Almiro do Couto e Silva [13], para quem “a segurança jurídica é um valor constitucional que se qualifica como subprincípio do princípio maior do Estado de Direito, que é o da legalidade. Segurança jurídica e legalidade são, sabidamente, os dois pilares de sustentação do Estado de Direito”.
Ao se admitir que o prazo de 5 (cinco) anos, a contar do dia seguinte ao da transmissão da declaração de rendas do servidor à Receita Federal, seja apenas para que enseje o prazo decadencial fiscal, o que vem decidindo o poder disciplinar que possibilita praticar atos de “fiscalização”, sem competência legal e de forma serôdia, fere de morte o princípio da segurança jurídica e a consequente proteção à confiança, in casu, aquela depositada pelo servidor público, cuja boa-fé é presumida, no ato formal quando transmite seus dados fiscais a esfera fiscal.
É necessária a proteção devida e amparada nos princípios vetores que norteiam a Administração Pública, inscritos no art. 37, da CRFB/88, e o processo administrativo às relações jurídicas estabilizadas pelo transcurso do tempo durante o qual o próprio poder público manteve-se inerte.
Registre-se que o tema é pedra singular do Estado de Direito sob forma de proteção à confiança.
É o que destaca Karl Larenz, 14 que tem na consecução da paz jurídica um elemento nuclear do Estado de Direito material e também vê como aspecto do princípio da segurança o da confiança:
“O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica.”
Com esse foco, o Supremo Tribunal Federal [14] vem fundando sua jurisprudência para a manutenção da verificação da aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVIMENTO DERIVADO. SUBSISTÊNCIA DO ATO ADMINISTRATIVO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA.
1. O Supremo Tribunal Federal, em algumas oportunidades, e sempre ponderando as particularidades de cada caso, já reconheceu a subsistência dos atos administrativos de provimento derivado de cargos públicos aperfeiçoados antes da pacificação da matéria neste Tribunal, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Precedentes.
2. O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.
3. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula 512/STF).
4. Agravo interno a que se nega provimento.”
Até mesmo em casos que violem a Constituição, mas que já produziram efeitos jurídicos por muitos anos, a situação excepcional permite em nome dos princípios da razoável duração do processo, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, sejam convalidadas:
“Agravo regimental no mandado de segurança. 2. Direito Administrativo. 3. Concurso público. Prazo de validade. Suspensão do curso do prazo de validade dos certames por ato administrativo do TJ/MT. Retomada do curso do prazo após mais de dois anos, com a consequente nomeação dos aprovados no certame. 4. Decisão do CNJ que declarou a nulidade do ato e determinou a exoneração dos servidores nomeados em período posterior àquele previsto no art. 37, III, da CF. 5. Situação excepcional. Exercício das funções públicas por mais de dez anos. 6. Presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública. Demora na tramitação dos feitos administrativos e judiciais relacionados aos fatos. Princípio da razoável duração do processo, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima. 7. Agravo regimental a que se nega provimento.” [15]
No mesmo sentido: [2]
“DIREITO ADMINISTRATIVO. SEGUNDO AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONCURSO PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. EXCEÇÃO TEORIA FATO CONSUMADO.
1. A desconstituição do ato de promoção do impetrante representa clara violação aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, situação que se enquadra na excepcionalidade reconhecida no julgamento do RE 608.482-RG.
2. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não houve fixação de honorários advocatícios (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula 512/STF).
3. Agravo interno a que se nega provimento.”
E, ainda: [18]
“3. Princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. Necessidade da estabilização das relações jurídicas.
Se os representantes do poder disciplinar não observarem a regra de competência legal do poder fiscal, e ultrapassarem prazos (decadencial) e informações constantes nas declarações anuais de rendas dos servidores, que somente poderão ser retificadas ou desconsideradas pelos Auditores da Receita Federal após a devida fiscalização, como vem ocorrendo na atualidade, irão cometer o crime de abuso de poder, por violar de forma expressa os artigos 25 [19] e 33 [20], da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
AS ALTERAÇÕES DAS DECLARAÇÕES DE RENDA DOS CONTRIBUINTES SOMENTE SE CONSOLIDAM PELA RECEITA FEDERAL APÓS A CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO – SÚMULA 24/STF, INCLUSIVE PARA FINS DE VERIFICAÇÃO DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DO SERVIDOR PÚBLICO A QUE ALUDE O INC. VII, DO ART. 9º, DA LEI Nº 8.429/92
Ainda que se trate de fiscalização tributária, o Poder Público não poderá promover a transgressão das restrições e das garantias constitucionais estabelecidas em favor dos contribuintes, servidor público ou não.
Impõe-se relembrar que o poder persecutório estatal, por mais relevante que seja instaurado, deve preservar os direitos instituídos em favor daqueles que sejam investigados, servidor público ou não, sendo garantido pelo ordenamento constitucional brasileiro a invalidade das provas produzidas de forma ilegítima e as provas ilícitas. A Constituição Federal/88 tornou inadmissíveis, no processo judicial ou administrativo, as provas inquinadas de ilicitude ou de ilegitimidade.
Cabe esclarecer que as provas no presente contexto devem ser produzidas perante o processo administrativo tributário, visto que ele possui autonomia frente o processo administrativo disciplinar, processos civil e penal, dentre outros quando se trata de fiscalização das declarações de rendas do servidor contribuinte.
Sabe-se que o processo tributário é um termo amplo que engloba o estudo do procedimento administrativo tributário (fase oficiosa), processo administrativo tributário (fase contenciosa administrativa) e processo judicial tributário (fase contenciosa judicial), sendo a esfera fiscal a única que possui a competência legal para constituir o crédito tributário de forma definitiva.
A esfera penal já pacificou o entendimento que o Ministério Público não pode denunciar o contribuinte por crime contra a ordem tributária, somente após a decisão final do poder fiscal, que constituir definitivamente o crédito tributário.
Por ser crime material de dano, para cuja consumação é necessária a produção do resultado previsto no tipo “suprimir ou reduzir tributos”, necessário se faz que a esfera fiscal lance definitivamente o crédito tributário para que a instância criminal possa proceder à devida investigação.
É uma questão de procedibilidade, sem que com isso se diga que há violação a independências das instâncias.
Mesmo sendo independentes as instâncias, elas se comunicam quando o ilícito investigado for o mesmo para fins de possibilitar as devidas responsabilizações dos servidores investigados nas esferas competentes.
Não resta dúvida que tanto no crime de sonegação fiscal, quanto na hipótese de enriquecimento ilícito do servidor público (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), o delito é material, de dano, para cuja consumação é necessária a produção do resultado previsto no tipo “suprimir ou reduzir tributos”.
A Lei nº 8.137/90, ao definir crimes contra a ordem tributária econômica, define em seu artigo 2º:
“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; [...]”
Define o artigo 3º, inciso II, da citada Lei nº 8.137/90, o crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei nº 2.848/40, o enriquecimento ilícito (inc. II), consistente na exigência, solicitação ou recebimento, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, mas em razão dela, de vantagem indevida, verbis:
“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I):
(...)
II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
(...)”
Destarte, percebe-se que, conforme definição legal dos crimes contra a ordem tributária (supressão ou redução de tributos), estes possuem sua consumação com a efetiva produção desse resultado. [21]
Note-se que somente no processo administrativo fiscal é que se pode cogitar em supressão ou redução do tributo após o lançamento tributário definitivo (constituição do crédito tributário).
É patente que não há como negar a influência direta (procedibilidade) do processo administrativo tributário nos delitos contra a ordem tributária, visto que sem a constituição definitiva do crédito tributário, não haverá a demonstração de supressão ou redução de tributos.
Hodiernamente, é imperiosa que a instância fiscal comprove a efetiva lesão ao erário público com a comprovada supressão ou redução do tributo, não sendo suficiente para a instauração da ação penal a mera lavratura do auto de infração.
O princípio da independência das instâncias administrativa e penal não autoriza a que se impute ao contribuinte a prática de crime de natureza fiscal antes mesmo de que haja o esgotamento do processo tributário, com a demonstração definitiva (irrecorrível) da existência do débito (crédito tributário definitivo), que resultou da lavratura do auto de infração. É uma condição objetiva de punibilidade. [22]
Destarte, é inquestionável, pois, a interdependência entre as mencionadas instâncias (penal e tributária), em face do elemento normativo do tipo estar vinculado ao lançamento definitivo do crédito tributário como condição objetiva de punibilidade.
Desse modo, a conclusão definitiva da instância fiscal demonstrará ou não a comprovação da materialidade do crime, consectário lógico da ação ou omissão do contribuinte.
Nesse viés, foi consolidada a Súmula Vinculante nº 24/STF, que pacifica inexistirem os crimes elencados nos incisos do artigo 1º da Lei 8.137/90, antes do lançamento do tributo:
“Súmula 24/STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
De uma maneira geral, as atividades ilícitas do servidor público que reduzam ou suprimam tributos, fruto de sonegação fiscal ou de enriquecimento ilícito, se encaixam no presente contexto.
Tem-se que, por ser o enriquecimento ilícito um delito tributário, o entendimento do art. 142, do CTN, compete à autoridade fiscal efetuar o lançamento, consolidando o crédito tributário existente desde a ocorrência do fato gerador, até o valor do tributo devido.
Deve-se reconhecer que a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda do servidor, mesmo se entendendo que ocorra a inversão do ônus da prova, incumbindo o servidor público de demonstrar a origem lícita desses recursos, o certo é que o poder disciplinar não possui competência legal para desconstituir ou alterar o que consta na declaração de rendimentos do contribuinte servidor. [23]
Considerando que para configurar a improbidade administrativa é preciso que se esteja demonstrado patrimônio a descoberto ou renda incompatível com a função pública, conclui-se que, inobstante ser um tipo descrito no art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92 (enriquecimento ilícito), é, por si só, um delito tributário, e deve, por questões de procedibilidade (competência), ser investigado pelo poder fiscal, com a finalidade de se investigar as declarações de rendas tidas como suspeitas.
Apesar do art. 8º do Decreto nº 5.483/2005 estabelecer que, “ao tomar conhecimento de fundada notícia ou de indícios de enriquecimento ilícito, inclusive evolução patrimonial incompatível com os recursos e disponibilidades do agente público, nos termos do art. 9º da Lei nº 8.429, de 1992, a autoridade determinará a instauração de sindicância patrimonial, destinada à apuração dos fatos”, se for investigada a declaração de renda do servidor público, compete privativamente ao poder fiscal tal atribuição. [24]
Tratando-se de procedimento de ofício, que não se confunde, substitui ou condicionam o processo administrativo disciplinar, regido pelas disposições específicas da Lei nº 8.112/90, instrumento legal no qual se apura as infrações funcionais imputadas ao servidor público, é de se observar se haverá ou não a necessidade de fiscalizar-se as declarações de rendas do investigado, que não estejam decadentes ou prescritas.
São as seguintes hipóteses de enriquecimento ilícito em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas:
[...] I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;
II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado;
III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;
IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;
V - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem;
VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei;
VII - adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público;
VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade;
IX - perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza;
X - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado;
XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei;
XII - usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.
Não resta dúvida que o poder disciplinar estará apto para investigar se houve enriquecimento ilícito do servidor público nas hipóteses descritas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VIII, IX, X, XI, XII, todos do artigo 9º, da Lei nº 8.429/92.
Contudo, se o poder disciplinar investigar a hipótese jurídica descrita no inc. VII, do citado artigo, terá que se utilizar das informações ficais do servidor, onde somente a Receita Federal poderá fiscalizar (investigar) se os bens estejam desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do investigado, em período não prescrito ou decadente, por ser indelegável tal atribuição legal.
Não é franqueado ao poder disciplinar a faculdade de “devassar” a vida fiscal do servidor público, “fiscalizando” suas informações prestadas à Receita Federal, e arquivadas no órgão público correspondente (art. 13, da Lei nº 8.429/92) visto faltarlhe competência legal para se transformar em poder fiscalizador tributário.
O art. 198, §1º, II, do CTN autoriza o compartilhamento de dados fiscais pela Receita Federal no âmbito da Administração Pública para subsidiar processo administrativo destinado a prática de infração disciplinar (enriquecimento ilícito), independente de autorização judicial, por certo não transfere ou delega sua competência fiscal para o âmbito do poder disciplinar.
É muito importante essa observação, pois o compartilhamento de dados fiscais de maneira reservada transmitido para a Receita Federal, visando subsidiar processo administrativo disciplinar em face de servidor público contribuinte do imposto de renda, com vistas à verificação de prática de enriquecimento ilícito, onde se investigará eventual ilícito material (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), deve o poder disciplinar representar ao poder fiscal para que o mesmo efetue a devida fiscalização tributária (verifique se há bens cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público), visando identificar se há ou não inconsistências nas declarações de rendas apresentadas.
Destarte, mesmo que se investigue a prática de ato de improbidade inerente ao enriquecimento ilícito, a situação jurídica inserida no inc. VII, ensejará uma verdadeira fiscalização tributária, onde serão revistas todas as informações transmitidas nas declarações de rendas do servidor público, não possuindo o poder disciplinar competência legal para efetuar tal atribuição de verdadeira “revisão” dos dados fiscais respectivos.
Por outro lado, a prática do enriquecimento ilícito, segundo o art. 118 do CTN, não exime a tributação obtida em razão da atividade ilícita, porquanto a definição do fato gerador do tributo é interpretada com abstração da validade jurídica do ato praticado, ou do seu objeto, consoante lição do Supremo Tribunal Federal: [25]
“EMENTA Habeas corpus. Penal. Processual penal. Crime contra a ordem tributária. Artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90. Desclassificação para tipo previsto no art. 2º, inciso I, da indigitada lei. Questão não analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância. Inadmissibilidade. Precedentes. Alegada atipicidade da conduta baseada na circunstância de que os valores movimentados nas contas bancárias do paciente seriam provenientes de contravenção penal. Artigo 58 do DecretoLei nº 6.259/44 - Jogo do Bicho. Possibilidade jurídica de tributação sobre valores oriundos de prática ou atividade ilícita. Princípio do Direito Tributário do non olet. Precedente. Ordem parcialmente conhecida e denegada. 1. A pretendida desclassificação do tipo previsto no art. 1º, inciso I, para art. 2º, inciso I, da Lei nº 8.137/90 não foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Com efeito sua análise neste ensejo configuraria, na linha de precedentes, verdadeira supressão de instância, o que não se admite. 2. A jurisprudência da Corte, à luz do art. 118 do Código Tributário Nacional, assentou entendimento de ser possível a tributação de renda obtida em razão de atividade ilícita, visto que a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica do ato efetivamente praticado, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. Princípio do non olet. Vide o HC nº 77.530/RS, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 18/9/98. 3. Ordem parcialmente conhecida e denegada”.
A sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa (Princípio do no olet) foi admitido pelo STF desde o HC nº 77.530/RS, Relator Min. Sepúlveda Pertence (DJ 18/9/98), onde foi registrado:
“EMENTA: Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: "non olet". Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética.”
Os rendimentos auferidos pelo servidor público como contribuinte do Imposto de Renda auferidos de atividade ilícita não declaradas se constitui em infração fiscal com desdobramentos para a esfera disciplinar.
Sobre o que foi dito é de se registrar o presente julgamento do STF: [26]
“Agravo regimental em habeas corpus. 2. Crime contra a ordem tributária (omitir informação das autoridades fazendárias). 3. Imposto de Renda da Pessoa Física. Rendimentos oriundos de atividade ilícita não declarados. 4. Inocorrência de afronta ao princípio da garantia contra a autoincriminação. 5. Obrigação de declarar os recursos. 6. Jurisprudência da Corte. 7. Ausência de constrangimento ilegal. 8. Negativa de provimento ao agravo regimental.”
A competência privativa da Receita Federal (indelegável), conforme o disposto os artigos 7º e 142, ambos do CTN, a subtração dessa competência originária viola o juízo natural, no caso da hipótese descrita no inc. VII, do art. 9º da Lei nº 8.429/92.
O princípio do juízo natural, materializado em dois incisos do art. 5º, da Constituição Federal/88, assim dispostos:
“Art. 5º.
(...)
XXXVI – não haverá juízo ou tribunal de exceção.
(...)
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Tal disposição é plenamente aplicável ao processo administrativo disciplinar. [27]
Estabelece o princípio sub oculis uma jurisdição administrativa diretamente localizada para o devido processo legal e para a isonomia, equânime, realizado em qualquer grau de jurisdição, por uma autoridade administrativa legalmente competente.
O juízo natural do processo administrativo disciplinar é a autoridade administrativa competente para instaurá-lo e julgá-lo, na forma dos ditames legais e constitucionais vigentes.
Contudo, em se tratando de verificação de enriquecimento ilícito a que alude o art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92, por se tratar de delito tributário material de dano, cuja consumação se verifica no tipo “suprimir ou reduzir tributos” necessita da constituição definitiva do crédito tributário.
Nessa toada, a autoridade disciplinar deverá aguardar a decisão definitiva do poder fiscal, o único competente para efetuar a fiscalização pretendida pelo órgão correicional.
Com a evolução do constitucionalismo democrático, identificou-se o fortalecimento do princípio do juízo natural, onde a competência administrativa para determinadas situações jurídicas é única, não se admitindo o compartilhamento.
Nesse contexto, compete à lei definir o critério de competência de cada esfera do direito.
É por isso mesmo que se revela de essencialidade inquestionável a função da lei, cujas prescrições – necessárias e insubstituíveis –, desde que fundadas em critérios gerais, abstratos, impessoais e apriorísticos, ajustam-se, em face da própria natureza do instrumento a que aderem, às exigências do postulado do Juiz Natural.
O poder disciplinar não poderá substituir o poder fiscal para fins de estabelecer se as declarações de rendas dos servidores públicos prestados à Receita Federal são ou não inconsistentes, e que a mesma poderá investigar períodos já prescritos ou decadentes, na hipótese descrita no inc. VII, do art. 9º da Lei nº 8.429/92.
É notório que deverá ser observada regra fiscal aplicada à espécie, única competente para fiscalizar as declarações de rendas do contribuinte servidor público.
E a finalidade do princípio do juiz natural foi definida magistralmente pelo Supremo Tribunal Federal - STF[24] ao definir que “o princípio do Juízo – que traduz significativa conquista do processo penal liberal, essencialmente fundado em bases persecutórias do Estado e representa importante garantia de imparcialidade dos juízes e tribunais”.
Tem, enfim, caráter dúplice a garantia do juízo natural, que é manifestado com a proibição de juízes e tribunais extraordinários e com impedimento à subtração da causa ao juízo, tribunal, ou esfera competente. Não pode julgar o poder disciplinar instrumento para verificar se nas declarações de rendas de seus servidores ocorre à hipótese de enriquecimento ilícito a que alude o art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92.
As conclusões dessas regras brasileiras levam a definição de que juiz natural é o próprio juiz constitucional, ou seja, aquele juiz que é criado pela lei e cujas regras de competência vêm nela definidas a priori, em observância a CRFB/88, que reafirma o pacto da República Federativa do Brasil com o primado do Estado Democrático de Direito e com os princípios referentes aos Direitos Humanos (art. 1º e 4º da CRFB/88).
Conclui-se que os fatos em apuração no processo administrativo disciplinar, que envolvam verificação, através de fiscalização, das informações prestadas ao poder fiscal, quando da declaração de ajuste do imposto de renda, somente poderão ser alteradas, ou fiscalizadas pelo poder competente, que é o fiscal (competência indelegável), através do competente mandato de procedimento fiscal correspondente.