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Um ato administrativo heterodoxo

20/08/2020 às 14:45
Leia nesta página:

Poderia o Ministro Dias Toffoli comprometer-se em nome do Supremo, ao assinar acordo interinstitucional junto ao Poder Executivo e ao Tribunal de Contas sobre acordos de leniência?

O ministro e presidente do STF, Dias Toffoli, assinou em nome do Supremo, com o Poder Executivo e o Tribunal de Contas da União, acordo interinstitucional. Regulamentou a gestão e coordenação dos acordos de leniência. Aqueles que as empresas processadas fazem com o Ministério Público e outros órgãos do Executivo para diminuir eventuais penalidades por atos de corrupção.

Trata-se de um ato administrativo heterodoxo, que foge à razoabilidade, com evidente viés de desvio de finalidade, pois não cabe ao Poder Judiciário exercer o papel de administrador, mas, sim, de julgador.

O Judiciário pode praticar atos materialmente administrativos.

Quando os tribunais concedem licenças aos seus membros, aos juízes e serventuários, que lhes são subordinados, ou quando quaisquer juízes fiscalizam a aplicação das leis fiscais a respeito das taxas e selos devidos por autos judiciais, ordenando pagamento ou revalidações, estão exercendo atos administrativos pelo conteúdo.

É certo que os tribunais, como grupos sociais específicos profissionalizados, criam também o direito, o chamado direito jurisprudencial. Ao decidirem as controvérsias que lhes são submetidas, os magistrados estabelecem o critério de julgar casos idênticos, cuja reprodução regular e uniforme deixa ditos critérios à categoria de jurisprudência, dotada de força normativa, como se reconhece hoje com as chamadas Súmulas Vinculantes.

Lembro Holmes que defendeu a famosa doutrina do judge-made-law, notando “o paradoxo de forma e substância no desenvolvimento do direito, cujo crescimento era logico, do ponto de vista formal, porém, legislativo, sob o ponto de vista substancial¨ (The Common Law, Boston, 1938, 34ª edição, pág. 35) – o que não impedia, contudo, que se desenvolvesse, cada vez mais, a legislative function of the courts no processo de integração da ordem jurídica em seu país, cuja Constituição contém apenas sete artigos, com seções e parágrafos, além de 22 emendas.

Gray, por seu turno, não parecia menos extremos que Holmes, porque “o direito do Estado, ou de um corpo organizado de homens, é composto das regras que as Cortes, isto é, os “órgãos judiciários desse corpo estabelecem na determinação dos direitos e deveres legais (The nature and sources of the Law, Nova York, 1938, 2ª edição, pág. 84).

Essa atuação proativa do Judiciário, no seu ofício de julgar, não se mistura com uma atuação executiva de participante de atos administrativos. Ainda mais aqueles em que deverá julgar?

Ora, que absurdo. O Judiciário participa, por um presentante, num acordo que poderá ser objeto de uma decisão judicial, posterior.

Pode o ministro Dias Toffoli comprometer-se em nome do Supremo? Lógico que não.

Disse bem Joaquim Falcão, em artigo publicado no dia 17 de agosto de 2020:

“Se amanhã algum órgão ou associação, o que certamente acontecerá, entrar no Supremo contra essa regulamentação, os ministros vão ter que votar como Toffolli se comprometeu? Claro que não. Vão votar de acordo com seu livre convencimento.”

Estaria em risco a teoria do checks and balances?

Penso que não.

A figura dos “checks and balances”, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:

Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o carpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente. (O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005).

A teoria da separação dos poderes de Montesquieu foi inspirada em Locke que, também, influenciou significativamente os pensadores norte-americanos na elaboração da Declaração de sua independência, em 1776. 

Somente no século XVIII, Montesquieu, autor da obra O Espírito das Leis (1748), que alcançou 22 edições, em 18 meses, sistematizou o principio com profunda intuição. Coube-lhe a glória de erigir uma doutrina sólida sobre a divisão de poderes.

A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a da Virgínia, em 1776, seguida por outras, como as de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela Constituição americana os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração de três poderes num só órgão de governo, representa a verdadeira definição de tirania.:

“Quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si, para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz aas leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são os serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional”.

Assim, o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, que os norte-americanos chamaram sistema de freios e contrapesos.

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Ora, se algum membro do Parquet, em sua atuação independente, fulcrada na autonomia funcional, pactuar um acordo de leniência, sem estar atrelado ao que órgãos do Executivo como a Advocacia Geral da União, Controladora Geral da União, pactuaram com as empresas investigadas, tal será existente, válido e eficaz, como um negócio jurídico perfeito.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um ato administrativo heterodoxo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6259, 20 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84719. Acesso em: 22 dez. 2024.

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