Como todos sabemos, o direito brasileiro se revela avesso à ideia de um patrimônio (conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, suscetíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária como apontado, por exemplo, por Pontes de Miranda – e isso desmistifica a ideia de que patrimônio seja um mero conjunto de bens) sem um titular determinado, o que, em se tratando de pessoas existentes (naturais ou jurídicas), se resolve em termos de tradição e transcrição, enquanto meios de aquisição da propriedade inter vivos.
Mas, desde há muitos, se encontra superado o entendimento dos juristas romanos no sentido de que mors omnia solvit, em tradução literal, “a morte tudo resolve”, numa alusão a que, com o falecimento do de cujus sucessiones agitur (é, vem daí o termo que usamos hoje – de cujus), os problemas estariam acabados, tudo estaria resolvido (aliás, os romanos acolhiam a ideia de morte numa acepção diversa da morte – aceitava-se, por exemplo, o conceito de morte civil[1], mas aceitamos a morte presumida).
Isso porque, no direito romano, bastaria que se morresse com um herdeiro homem que seria responsável pelo culto dos antepassados (deuses lares – vindo daí a expressão “lar” para significar o local do fogo sagrado dentro de uma casa – simbolizando os parentes mortos), para que se impedisse que os mortos de dada estirpe familiar passassem por necessidades no mundo espiritual, com libações anuais nas sepulturas desses entes queridos falecidos (acreditava-se que a vida seguia no túmulo, geralmente localizado nas casas ou lares)[2]. Aí, pode-se perceber, por exemplo, a origem dos rituais que empregamos no dia dos mortos, quando são levadas flores aos jazigos dos entes queridos falecidos.
E, da mesma forma, verifica-se a gênese da proteção ao imóvel de família (no direito romano a propriedade tinha esse caráter sagrado e não era alienada nem para o pagamento de dívidas do pater famílias que seria vendido como escravo se a dívida não fosse paga, para que os demais membros da família conservassem o local sagrado – o fundus. Hoje, ideia de bem de família bem desenvolvida a partir de teorias com a do patrimônio mínimo ou mínimo existencial)[3].
No entanto, as coisas nem sempre se dão desse modo e, com a morte do individuo, um sem número de problemas pode ser destacado, tendo o legislador criado tantas situações polêmicas (basta ver, por exemplo, discussões acerca da concorrência, ou não, do cônjuge com descendentes nos vários regimes matrimoniais ou as dificuldades da sucessão do companheiro com filiação híbrida) que não se tem como incomum encontrar-se autores que defendem a necessidade de um verdadeiro planejamento sucessório prévio, enquanto conjunto de medidas para preservação patrimonial e da autonomia da vontade[4].
Em meus artigos de direito sucessório, tenho apresentado vários problemas que surgem com a abertura da sucessão – e, agora, dentro do objeto do presente artigo, tem-se discussões em torno da deserdação e dos aspectos processuais para a sua reversão.
A deserdação e a exclusão por indignidade são sanções civis que são aplicáveis aos herdeiros, e ou legatários, que não tiveram comportamento adequado em relação ao autor da herança (o de cujus sucessiones agitur). São situações que tornam a situação de obtenção de herança como algo incompatível de ser obtido (os artigos 1.814 a 1.818 CC cuidam da exclusão por indignidade e os 1961 e 1.962 do mesmo diploma cuidam das causas de deserdação).
Como marcos diferenciais entre os institutos, a exclusão por indignidade é declarada por sentença judicial, podendo ser requerida pelo MP nos termos do artigo 1814, inciso I CC e a deserdação se estabelece por testamento. Aponta-se, ainda tradicionalmente, que os herdeiros necessários e legatários podem ser declarados indignos enquanto apenas herdeiros necessários podem ser deserdados.
Como é cediço, e, nesse sentido, aponta Mauro Antonini, não obstante haja ônus expresso no Código Civil para que o beneficiário da deserdação (artigo 1.965 CC) mova demanda para provar a causa alegada pelo testador para a deserdação e sua validade. Fato é que o Código de Processo Civil, legislação, inclusive, especial e posterior, permite, em seu artigo 17 que qualquer pessoa mova demanda declaratória para abreviar a solução do problema antes do lapso de quatro anos, donde se falar que não faltaria legitimidade ou falta de interesse de agir para a presente demanda. Sobre a questão:
O deserdado, aberta a sucessão, tem interesse legítimo na breve solução da questão da deserdação para não ficar com o direito ameaçado durante o prazo de decadência de quatro anos da abertura da sucessão. Ajuizada por ele a ação de impugnação da deserdação, caberá aos legitimados passivos, ou seja, aqueles a quem a deserdação aproveita, o ônus da prova da causa imputada pelo testador. In Código Civil Comentado, Coordenador Ministro Cezar Peluso, p. 1.905.
Também essa é a solução no direito português como aponta José Ascenção de Oliveira, “pois de outra maneira a protecção da legítima se tornaria ilusória” (Código Civil Anotado, Coimbra, p. 272). Zeno Veloso igualmente aponta no sentido de que:
Aos sucessíveis preteridos haverá sempre de facultar-se a possibilidade de impugnarem contenciosamente a existência da causa de deserdação invocada pelo testador. In Código Civil Comentado, Coordenado por Regina Beatriz Tavares da Silva. p. 1.969.
Sobre a questão, arestos recentes dos Tribunais pátrios:
TJ-RS - Apelação Cível AC 70078791480 RS (TJ-RS) Data de publicação: 14/12/2018 EMENTA AÇÃO DE NULIDADE DE TESTAMENTO. CONTROVÉRSIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE MOTIVOS ENSEJADORES DE DESERDAÇÃO. LEGITIMIDADE DOS FILHOS DESERDADOS. SENTENÇA QUE RECONHECEU A INEFICÁCIA DA DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA MANTIDA. 1. No caso, não se verifica malferimento ao preconizado no art. 1.965 do CCB, seja porque os herdeiros deserdados também possuem legitimidade ativa para impugnar a deserdação, seja porque o herdeiro instituído (o neto) foi habilitado aos autos, sendo-lhe, em virtude do conflito de interesse, nomeado curador especial para defesa de seus interesses, seja porque houve ampla dilação probatória acerca do tema. 2. Assim, é irretocável a sentença vergastada, que reconheceu a ineficácia da disposição testamentária de deserdação, pois não foi comprovado nenhum fato que a autoriza. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70078791480, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 13/12/2018).
TJ-RS - Embargos de Declaração ED 70080440043 RS (TJ-RS) Data de publicação: 28/03/2019 EMENTA AÇÃO DE NULIDADE DE TESTAMENTO. CONTROVÉRSIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE MOTIVOS ENSEJADORES DE DESERDAÇÃO. LEGITIMIDADE DOS FILHOS DESERDADOS. SENTENÇA QUE RECONHECEU A INEFICÁCIA DA DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA MANTIDA. AUSÊNCIA DAS HIPÓTESES DO ART. 1.022 DO CPC . REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. 1. O cabimento de embargos de declaração limita-se às hipóteses elencadas pelo art. 1.022 do CPC , inocorrentes no acórdão impugnado. 2. Os embargos de declaração não se prestam para o objetivo de rediscussão da matéria já decidida, como a parte embargante, em realidade, pretende, pela linha de argumentação das razões do recurso que ofertou. EMBARGOS DECLARATÓRIOS DESACOLHIDOS. (Embargos de Declaração Nº 70080440043, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 21/03/2019).
Sobre o caráter necessário do litisconsórcio a ser formado no caso da ação de anulação de testamento, de se pedir vênia para destacar, à guisa de mera exemplificação (em aresto recente), destacar:
TJ-RS - Apelação Cível AC 70077375301 RS (TJ-RS) Jurisprudência • Data de publicação: 06/06/2018
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE TESTAMENTO PÚBLICO. NECESSIDADE DE CITAÇÃO DE TODOS OS HERDEIROS. HIPÓTESE DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. SENTENÇA DESCONSTITUIDA DE OFÍCIO. APELO PREJUDICADO. (Apelação Cível Nº 70077375301, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Julgado em 30/05/2018).
Isso porque, como é cediço, tem-se que a deserdação seria medida excepcional de interpretação restrita (in numerus clausus) no direito pátrio, não comportando sequer interpretação extensiva, o que se reflete em necessidade não só de cumprimento de taxatividade legal, mas, igualmente de tipicidade – ou seja, não se pode pegar uma hipótese legal, por exemplo, injúria grave e distorcer o conceito.
Isso porque, via de regra, No direito brasileiro, a questão se acha equacionada no artigo 1846 CC no que tange à proteção da legítima:
“Pertence aos herdeiros necessários de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.”
Em havendo herdeiros necessários, não pode o disponente testar ou legar parte dos bens que invada a legítima (art. 1857, parágrafo primeiro, do CC). Caso o testamento abarque a legítima, poderemos estar diante de redução das disposições testamentárias, ou de rompimento de testamento. (Flávio Tartuce. José Fernando Simão. Direito Civil 6 2008). As deserdações ou exclusões por indignidade são medidas excepcionalíssimas.
Muitas vezes se discute sobre se o ato de se demandar com o de cujus sucessiones agitur quando este ainda estaria vivo seria, ou não, um ato de injúria – em verdade, se o herdeiro apenas está disputando legitimamente um direito que seria seu, não há abuso nem causa jurídica para que seja deserdado ou excluído de sucessão.
Isso seria exercício regular de direito, o que não é dado suficiente para uma deserdação como vem sendo definido pelo Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE DESERDAÇÃO - MERO AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE INTERDIÇÃO E INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE REMOÇÃO DA HERANÇA, AMBOS EM DESFAVOR DO TESTADOR SUCEDIDO - "INJÚRIA GRAVE" - NÃO OCORRÊNCIA - EXPEDIENTES QUE SE ENCONTRAM SOB O PÁLIO DO EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DE AÇÃO - DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA - EXIGÊNCIA DE QUE A ACUSAÇÃO SE DÊ EM JUÍZO CRIMINAL - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE AS AFIRMAÇÕES DO HERDEIRO TENHAM DADO INÍCIO A QUALQUER PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO OU MESMO AÇÃO PENAL OU DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA CONTRA O SEU GENITOR - INVIABILIDADE, IN CASU, DE SE APLICAR A PENALIDADE CIVIL - RECURSO IMPROVIDO.
1. Se a sucessão consiste na transmissão das relações jurídicas economicamente apreciáveis do falecido para o seu sucessor e tem em seu âmago além da solidariedade, o laço, sanguíneo ou, por vezes, meramente afetuoso estabelecido entre ambos, não se pode admitir, por absoluta incompatibilidade com o primado da justiça, que o ofensor do autor da herança venha dela se beneficiar posteriormente.
2. Para fins de fixação de tese jurídica, deve-se compreender que o mero exercício do direito de ação mediante o ajuizamento de ação de interdição do testador, bem como a instauração do incidente tendente a removê-lo (testador sucedido) do cargo de inventariante, não é, por si, fato hábil a induzir a pena deserdação do herdeiro nos moldes do artigo 1744, II, do Código Civil e 1916 ("injúria grave"), o que poderia, ocorrer, ao menos em tese, se restasse devidamente caracterizado o abuso de tal direito, circunstância não verificada na espécie.
3. Realçando-se o viés punitivo da deserdação, entende-se que a melhor interpretação jurídica acerca da questão consiste em compreender que o artigo 1595, II, do Código Civil 1916 não se contenta com a acusação caluniosa em juízo qualquer, senão em juízo criminal.
4. Ausente a comprovação de que as manifestações do herdeiro recorrido tenham ensejado "investigação policial, processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa" (artigo 339 do Código Penal) em desfavor do testador, a improcedência da ação de deserdação é medida que se impõe.
5. Recurso especial improvido.
(REsp 1185122/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/02/2011, DJe 02/03/2011)
De igual modo, o testador que se disser injuriado, mas não tiver movido nenhuma queixa crime no prazo decadencial de seis meses, em relação aos prazos aduzidos nos processos que alegar, o fato deixará de ter relevância penal, tendo mais, igualmente, relevância para o Juízo Cível. Nesse mesmo sentido, ainda oriundo do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.003.942 - SP (2016/0278647-6), RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE.
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO. DESERDAÇÃO. CALÚNIA E INJÚRIA. FATOS OCORRIDOS NO EXERCÍCIO DOS DIREITOS DE AÇÃO E DE DEFESA. ACÓRDÃO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR. AGRAVO CONHECIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.
DECISÃO
Urbano Carlos do Carmo Curado e outros ajuizaram ação de conhecimento contra Maria Regina Guzzo e outras postulando a deserdação das rés para exclusão da sucessão dos bens de Disiolina Pontelli Guzzo.
A Magistrada de primeiro grau julgou improcedente o pedido.
Interposta apelação pelos autores, a Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento à insurgência, conforme se verifica da seguinte ementa:
Ação de deserdação Improcedência Inconformismo Desacolhimento Ausência de comprovação das alegadas causas Petições protocoladas em inventário e demanda societária que apontam desvio de bens e de finalidade social por diversas pessoas, inclusive a testadora Fatos que não se configuram como calúnia ou injúria grave Sentença confirmada Recurso desprovido.
Os requerentes interpuseram recurso especial fundamentado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, apontando, além de dissídio jurisprudencial, violação aos arts. 1.814, 1.961, II, 1.962, 1.964 e 1.965 do CC e 20, § 4º, do CPC/1973.
Sustentaram, em síntese, a necessidade de prevalecer a vontade de última vontade sobre a deserdação das ora recorridas, notadamente porquanto reconhecida a intensa animosidade que envolve a família.
Contrarrazões às fls. 464-480 (e-STJ).
O Tribunal de origem inadmitiu o recurso sob os fundamentos de não ter sido devidamente demonstrada a ofensa aos dispositivos constitucionais, de incidir a Súmula 7/STJ e de não haver comprovação do dissídio jurisprudencial nos moldes legais.
Irresignados, os recorrentes apresentam agravo refutando os óbices apontados pela Corte estadual.
Contraminuta às fls. 509-524 (e-STJ).
Brevemente relatado, decido.
Com efeito, os recorrentes pretendem a deserdação das requeridas da sucessão dos bens de Disiolina Pontelli Guzzo, ao argumento de que fizeram alegações caluniosas e injuriosas no inventário de Augusto Guzzo, no qual a testadora (Disiolina Pontelli Guzzo) figurou como víuva meeira e foi acusada de desviar bens e deles se apropriar indevidamente, causando-lhe intenso constrangimento e decepção.
Assim, o testamento da de cujus, lavrado em 28/7/2005, deserdou as filhas (ora recorridas) sob o fundamento de ter havido atos de calúnia e injúria grave.
O acórdão recorrido asseverou haver uma intensa animosidade na família, consoante se depreende das petições extraídas do inventário de Augusto Guzzo, bem como na demanda que se discute a questão societária. Ademais, depreende-se da sentença da ação de interdição da autora da herança - a qual foi julgada improcedente - que a família se desarmoniza em torno do patrimônio há anos.
Consignou, ainda, que a deserdação possui caráter excepcional, sendo possível somente quando comprovada a real ocorrência da hipótese legal, devendo a disposição da testadora ser comprovada em juízo.
Sobre o tema, importante consignar que o art. 1.962, II, do CC prevê como causa de desardação a injúria grave, enquanto o art. 1.814, II, do mesmo Diploma afirma que haverá exclusão da herança daquele que houver acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro.
Nesse sentido, esta Corte Superior possui precedente no sentido de que, por ser ato excepcionalíssimo, o simples fato de ter sido exercido o direito de ação contra a autora da ação ou haver alegações feitas em processo no exercício do direito de defesa, não ensejam a pena de deserdação, até porque esta possui um viés punitivo.
A propósito:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE DESERDAÇÃO - MERO AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE INTERDIÇÃO E INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE REMOÇÃO DA HERANÇA, AMBOS EM DESFAVOR DO TESTADOR SUCEDIDO - "INJÚRIA GRAVE" - NÃO OCORRÊNCIA - EXPEDIENTES QUE SE ENCONTRAM SOB O PÁLIO DO EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DE AÇÃO - DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA - EXIGÊNCIA DE QUE A ACUSAÇÃO SE DÊ EM JUÍZO CRIMINAL - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE AS AFIRMAÇÕES DO HERDEIRO TENHAM DADO INÍCIO A QUALQUER PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO OU MESMO AÇÃO PENAL OU DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA CONTRA O SEU GENITOR - INVIABILIDADE, IN CASU, DE SE APLICAR A PENALIDADE CIVIL - RECURSO IMPROVIDO.
1. Se a sucessão consiste na transmissão das relações jurídicas economicamente apreciáveis do falecido para o seu sucessor e tem em seu âmago além da solidariedade, o laço, sanguíneo ou, por vezes, meramente afetuoso estabelecido entre ambos, não se pode admitir, por absoluta incompatibilidade com o primado da justiça, que o ofensor do autor da herança venha dela se beneficiar posteriormente.
2. Para fins de fixação de tese jurídica, deve-se compreender que o mero exercício do direito de ação mediante o ajuizamento de ação de interdição do testador, bem como a instauração do incidente tendente a removê-lo (testador sucedido) do cargo de inventariante, não é, por si, fato hábil a induzir a pena deserdação do herdeiro nos moldes do artigo 1744, II, do Código Civil e 1916 ("injúria grave"), o que poderia, ocorrer, ao menos em tese, se restasse devidamente caracterizado o abuso de tal direito, circunstância não verificada na espécie.
3. Realçando-se o viés punitivo da deserdação, entende-se que a melhor interpretação jurídica acerca da questão consiste em compreender que o artigo 1595, II, do Código Civil 1916 não se contenta com a acusação caluniosa em juízo qualquer, senão em juízo criminal.
4. Ausente a comprovação de que as manifestações do herdeiro recorrido tenham ensejado "investigação policial, processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa" (artigo 339 do Código Penal) em desfavor do testador, a improcedência da ação de deserdação é medida que se impõe.
5. Recurso especial improvido. (REsp 1185122/RJ, Rel. Min. Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 17/02/2011, DJe 02/03/2011) Assim, verifica-se que o entendimento adotado pelo acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência desta Corte, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ.
Ante o exposto, conheço do agravo para negar provimento ao recurso especial.
Publique-se.
Brasília (DF), 28 de outubro de 2016.
Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator
Ainda mais existe para ser dito eis que, como é cediço, injúrias para serem consideradas como tal, devem ser fatos determinados, com indicação de datas, ânimos das partes envolvidas, intenção de injuriar, falta de ânimo de direito de retorção etc.
Tudo isso deve constar da escritura de deserdação, sob pena de implicar, ademais, em nulidade do ato por falta de requisitos formais, impedindo que o mesmo possa atingir os efeitos que se busca atingir na ação de abertura, registro e cumprimento de testamento.
Sem a observância de tais peculiaridades, pelo óbvio que o direito de se defender contra essas situações ficaria inviável – do ponto de vista prático, como seria possível se defender de suposta injúria ou calúnia, se não delineados os elementos mínimos de tal situação?
Não se esqueça, ademais, que atos simulados são atos nulos de pleno de direito (artigo 167 CC). E há simulação quando se aduz que determinado ocorreu mas o mesmo não ocorreu não plano fático (se outro tivesse ocorrido seria o caso do ato dissimulado do parágrafo 1º do mesmo consectário legal).
E a vontade do testador não pode violar regra imperativa da lei sem incorrer em situação de nulidade absoluta (artigo 166, inciso VII CC), bem como se decorrer de simulação de injúrias inexistentes ou não ocorrentes. Isso seria ferir de morte prelados de uma socialidade (conceito caro a doutrinadores como Miguel Reale e Roberto Senise Lisboa) que se encontra prevista no advento da norma contida no artigo 5º LINDB, no sentido de violação aos fins sociais a que a lei se destina e às exigências do bem comum que impedem que se deixem herdeiros necessários ao desamparo, diga-se de passagem (isso seria expediente atentatório, insista-se, a prelados de solidariedade social e de dignidade da pessoa humana).