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A vacinação compulsória e o Estado de Direito

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04/11/2020 às 22:00
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VII – A NECESSÁRIA PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA

Seria aquela que se põe como desproporcional.

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

Trago a lição de Willis Santiago Guerra Filho (Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza, UFC, Imprensa Universitária, 1989, pág. 75) de feliz síntese:

"Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente proporcional em sentido estrito, se as vantagens superarem as desvantagens.".

Nesse ponto trago à colação a lição de Gustavo Binenbojm (Uma teoria do direito administrativo, São Paulo, Renovar, 2ª edição, pág. 114. 9RT, 515:316) quando diz que as prerrogativas da Administração vistas como desequiparações entre o Poder Público e os particulares, não podem ser justificadas à luz de uma regra de prevalência apriorística e absoluta dos interesses da coletividade sobre os interesses individuais.

Afigura-se como legítimo entender que as hipóteses de tratamento diferenciado conferido pelo Poder Público em relação aos particulares devem obedecer aos rígidos critérios estabelecidos pela lógica do princípio constitucional da igualdade.

Para que um privilégio estabelecido em favor da Administração Pública seja constitucionalmente legítimo, será necessário que:

a) a discriminação criada em desfavor dos particulares seja apta a viabilizar o cumprimento, pelo Estado, dos fins que lhe foram conferidos pela Constituição e pela Lei;

b) a extensão da discriminação criada em desfavor dos particulares deve observar o limite do estritamente necessário e exigível para viabilizar o compromisso que a Constituição e a Lei dão ao Estado para o caso;

c) o grau de medida de sacrifício imposto à isonomia deve ser compensado pela importância da utilidade gerada em termos de benefício para a sociedade.

Ora, será proporcional uma medida que vise a induzir à população a vacinação, de forma a trazer algumas restrições a direitos caso não se vacine. Será o caso de impedir a possibilidade de emissões de passaporte, ficar impedido de participar de licitações, ficar impedido de receber benefícios do Estado, etc.


VIII – O ESTADO DE DIREITO

Essas medidas serão tomadas no campo do Estado de Direito.

Para tal, será necessário que o Estado brasileiro, no âmbito federal, estadual e municipal(pois a competência quanto a saúde é concorrente) faça uma ampla campanha, em todos os níveis, visando a conscientizar a população da necessidade da vacinação, apresentado aspectos positivos dela e as consequências inexoráveis para a coletividade em caso de não vacinação.

Não se trata aqui de medidas de emergência como tais previstas, como exemplo, no direito português.

Tem-se que as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondem à configuração de sua área de manifestação legítima, como exprimiu Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 17 ª edição, pág. 716).

São medidas próprias do chamado Estado de Direito.

Trata-se de uma medida tomada no âmbito da democracia.

Bem disseram J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada) que há assim uma democracia de Estado de direito e um Estado de Direito de Democracia.

Não se trata de falar em medidas restritivas próprias de estado de exceção. Trata-se sim de incentivar o exercício democrático do direito à saúde, que é de todos.

Esse exercício encontra expressão em regras e princípios, quais sejam: o princípio da constitucionalidade; o princípio da controle judicial da constitucionalidade de atos normativos; o princípio da legalidade da Administração; o princípio da responsabilidade do Estado por danos causados ao cidadão; o princípio da independência dos juízes; os princípios da proporcionalidade e da tipicidade no âmbito das medidas de polícia, dentre outros.  

Estamos, pois, no sentido da plena constitucionalidade da possibilidade de vacinação obrigatória, inserida em lei, e pautada nos limites da proporcionalidade.

Sendo assim a vacinação obrigatória é situação de normalidade constitucional, onde a Administração, no pleno exercício de um poder de polícia, conduzirá tarefas visando a implementação de um direito constitucional pleno de saúde a todos, nos limites do Estado de Direito e sob o apanágio da proporcionalidade.

Se tudo isso não bastasse não há, para a vacinação compulsória, obrigatória, qualquer situação de conflituosidade social que leva às medidas de emergência e, muito menos, a necessidade de utilização das forças armadas contra os cidadãos, para a efetividade da medida enfocada.

Basta a aplicação de meios coercitivos, indutivos, para que se tenha a aplicação da medida aqui comentada.

Isso sem olvidar da necessária responsabilidade penal por crime previsto no artigo 268, por infringência dolosa a determinações do Poder Público destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa.

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Nesse ponto há lugar para os verdadeiros liberais, pois não é verdade que os verdadeiros liberais sejam a favor da facultatividade da vacinação no Brasil, antes uma questão de conscientização. Os verdadeiros liberais não negam o acesso ao Judiciário para a implementação de políticas públicas.

Lembro, por fim, o filósofo americano Jason Brennan, que é um libertário sério, que já demonstrou que o respeito à liberdade individual não é incompatível com vacinação compulsória. Ele invoca o “princípio das mãos limpas”, segundo o qual todo indivíduo tem a obrigação de se abster de opções que, agregadas, causam danos. Uma pessoa que deixa de se vacinar parece ser irrelevante. Mas tomados em conjunto, os indivíduos que não se imunizam quando poderiam fazê-lo aumentam o risco de uma doença se espalhar e causar vítimas. Ao se omitir, eles “sujam as mãos”.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A vacinação compulsória e o Estado de Direito . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6335, 4 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86482. Acesso em: 16 abr. 2024.

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