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Uma decisão que afronta ao princípio do contraditório

11/11/2020 às 13:45
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A 3ª Turma do STJ entendeu, como tese central, que um terceiro, que não figurou como parte na fase de conhecimento, pode responder pelo débito no respectivo cumprimento de sentença.

Só as partes estão alcançadas pela coisa julgada. É o que dita o artigo 506 do Código de Processo Civil.

Quanto a terceiros com interesse, há várias teorias de aplicação. Tais quais:

– teoria da representação, apoiada em Savigny, pelos laços de representação que os terceiros têm com as partes.

– teoria dos efeitos reflexos: dizem respeito aos efeitos ligados aos terceiros, não queridos pelas partes, mas inevitáveis.

– teoria de Liebman:

a) terceiros indiferentes;

b) terceiros para o qual a sentença traga prejuízo econômico;

c) terceiros juridicamente interessados;

d) interesse igual ao das partes;

e) interesse inferior ao das partes.

No entanto, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recente julgamento do Recurso Especial nº 1.696.704/PR, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, entendeu, como tese central, que um terceiro, que não figurou como parte na fase de conhecimento, pode responder pelo débito no respectivo cumprimento de sentença.

A decisão, com o devido respeito, representa um perigoso precedente, pois afronta toda uma doutrina e jurisprudência sobre a matéria. Sempre bom lembrar que cabe ao Superior Tribunal de Justiça o papel de guardião maior da lei federal.

Quando analisou o artigo 472 do CPC de 1973, Sálvio de Figueiredo Teixeira (Código de processo civil anotado, 6ª edição, pág. 308) aduziu que a eficácia de que se fala é erga omnes, mas os efeitos são inter partes, uma vez que somente as partes são alcançadas pela autoridade da coisa julgada.

É certo que a sentença, embora não faça coisa julgada em relação a terceiros, neles pode repercutir. Por isso, os terceiros que tiverem interesse juridicamente em conflito, ocorrente o prejuízo jurídico, podem impugnar a decisão, insurgindo-se contra a injustiça dos fatos ou ilegalidade.

O que era pacificamente admitido como “um dos mais sábios princípios da política judiciária”, é hoje, solenemente, proclamado pelo direito objetivo, como revelou Ada Pellegrini Grinover (em notas ao § 5 da obra de Enrico Tulio Liebman – Eficácia e Autoridade da Sentença, segunda edição, pág. 113).

A coisa julgada é restrita às partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros.

Fala-se em causas de subordinação de terceiros que foram apontadas pela lição de Emilio Betti e que seriam idôneas para legitimar a extensão da coisa julgada a terceiros. As duas primeiras, sucessão do terceiro à parte, na relação jurídica já deduzida em juízo, e a substituição processual – em verdade – não representam extensão da coisa julgada ultra partes, porquanto nem o sucessor, nem o substituído processual são propriamente terceiros. O primeiro, porque, sucedendo à parte, se torna titular da relação jurídica; o segundo porque, por definição, a atividade processual desenvolvida pelo substituto processual tem necessariamente influência e eficácia sobre o substituído.

Há a figura de subordinação que envolve a conexão incindível entre a relação jurídica do terceiro e a relação atingida pela coisa julgada, em virtude da situação jurídica que se apresente de caráter indivisível, e que deva ser única para todos.

O exemplo ímpar para o caso envolve a impugnação de deliberação da sociedade anônima por parte de um sócio, e que não poderia ser mantida ou anulada senão perante todos os sócios.

Para Liebman, nesse caso, não se deve falar em extensão da coisa julgada secundum eventum litis, sendo que a explicação do fenômeno seria outra: rejeitada a ação que visa à impugnação, não tem a sentença outro conteúdo que não o de declarar a improcedência da ação proposta, ficando livre aos demais sócios a via processual para impugnar a mesma deliberação. Já o exercício vitorioso de uma ação por parte de um sócio, atingiria o escopo comum a todas as outras, observando-as e consumindo-as por falta de interesse de agir nas eventuais ações sucessivas, na linha de Liebman.

Todavia, Barbosa Moreira (Coisa julgada: Extensão subjetiva, in Direito Processual Civil, 1971), traz lúcida observação. Ao segundo sócio poderia exatamente interessar o resultado oposto ao obtido no primeiro processo (por exemplo, a declaração da validade da deliberação, que a primeira sentença declarou nula).

A quarta situação de subordinação de terceiro com relação a sentença, exposta por Liebman, concentra-se pela dependência necessária entre duas relações jurídicas. Seria caso de litisconsórcio facultativo entre devedor principal e o fiador, na ação de cobrança proposta pelo credor – não há litisconsórcio unitário e a decisão não uniforme – embora injusta – não encontra nenhum óbice quanto a sua atuação. Aqui, a doutrina brasileira acolhe a posição de Liebman: a autoridade da coisa julgada não se estende ultra partes, porque a vinculação entre as várias situações jurídicas individuais é simplesmente logica, mas não prática.

Lembro, ainda, que Ada Pellegrini Grinover (obra citada, pág. 118) suscita importante questão: O terceiro, juridicamente prejudicado, tem legitimidade para recorrer, somente para assistir uma das partes (ad coadjuvandum), ou também para excluir a pretensão de ambas (ad opponendum)? O anteprojeto do Código Civil de 1973, Código Buzaid, no artigo 546, havia tomado partido: "O terceiro poderia recorrer, quando estiver empenhado na vitória de uma das partes a que vem assistir no processo". Mas o artigo 499, § 1º, omitiu essa parte do dispositivo e a expressão "nexo de interdependência" entre o interesse de intervir e a relação jurídica sub judice não oferece elementos seguros de interpretação", como lembraram Barbosa Moreira e Sérgio Bermudes (Comentários ao CPC, volume VII, 1975, pág. 58). Disse, a respeito, Sérgio Bermudes:" Dispondo o parágrafo único do art. 50 que a assistência tem lugar em todos os graus de jurisdição não teria o legislador necessidade de criar a possibilidade de intervenção recursal para o assistente, que pode intervir em qualquer tipo de procedimento e em todos os graus de jurisdição ".

É certo que o terceiro juridicamente interessado é ainda legitimado para ajuizar ação rescisória (artigo 487, II, do CPC de 1973). Mas isso já era reconhecido desde o Código de Processo Civil de 1939, na revogação dos chamados Códigos de Processo Estaduais da velha República.

É certo que o CPC de 1973, que foi revogado pelo de 2015, prescreve o artigo 499, parágrafo primeiro, do CPC, que conferia legitimidade para recorrer ao terceiro prejudicado que demonstre o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial.

Fica a lição de Liebman no sentido de que o sistema jurídico processual no Brasil impõe que não se aceite a teoria da extensão da coisa julgada a terceiros, que não podem suportar as consequências prejudiciais da sentença prolatada inter alios, por não ficarem suficientemente garantidos contra as mesmas pelos institutos da intervenção, do recurso de terceiro prejudicado e da ação rescisória.

No passado, o STJ já decidiu: “Não tendo o possuidor, por qualquer forma, integrado a relação processual, de onde emanou a sentença cuja execução importou ordem de despejo, contra ele expedida, pode valer-se da ação possessória, uma vez violado o direito de não ser o possuidor prejudicado por sentença dada entre vendedor e compradora, e de não ser desalojado, sem as garantias do due process of law, da posse que vinha exercendo". Nessa mesma linha: "Em observância ao devido processo legal e ao contraditório, nas hipóteses em que o terceiro-embargante não possua ciência do processo de execução em que se operou a arrematação do bem, deve o artigo 1.048 (atual artigo 675) do Código de Processo Civil, parte final, ser interpretado extensivamente, elegendo-se como termo a quo para a propositura dos embargos a data de cumprimento do mandado de imissão na posse" (STJ, 4ª Turma, REsp. nº 161.054/MG, rel. Minº Sálvio de Figueiredo Teixeira; 3ª Turma, REsp. nº 298.815/GO, rel. Minº Nancy Andrighi, respectivamente. Cf., ainda, 4ª Turma, RMS nº 10.208-SP, rel. Minº Sálvio de Figueiredo Teixeira: "Se fatos descritos na inicial em tese configuram violação de direito líquido e certo da impetrante, que alega ter sido privada de seus bens sem o devido processo legal, o mandado de segurança é instrumento adequado à proteção do direito, desde que presentes os seus pressupostos, notadamente o 'direito líquido e certo', que ocorre quando a regra jurídica incidente sobre fatos incontestáveis configurar um direito da parte"; 3ª Turma, REsp. nº 1.297.239/RJ, rel. Minº Nancy Andrighi: "É cediço que, à luz do artigo 472 (atual artigo 506) do Código de Processo Civil, os limites subjetivos da coisa julgada material consistem na produção de efeitos apenas em relação aos integrantes na relação jurídico-processual em curso, de maneira que, em regra, terceiros não podem ser beneficiados ou prejudicados").

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Mas a decisão reportada do STJ foi além.

A decisão reportada examinou questão, aliás, singela, de cobrança de dívida condominial, em demanda originariamente ajuizada em face do promitente comprador, possuidor de determinado imóvel.

Reconhecida a procedência do pedido, iniciou-se a fase de cumprimento de sentença, que acabou incluindo, como devedora, a proprietária, promitente vendedora, Companhia de Habitação Popular de Curitiba, que não havia participado do processo de conhecimento.

Pois bem. Irresignada com o acórdão do Tribunal de Justiça de origem, interpôs ela recurso especial, que restou improvido, mantendo-se, portanto, os termos da decisão colegiada recorrida, que reconhecera a legitimidade passiva da aludida recorrente.

Para tanto, ao julgar esse recurso especial, a 3ª Turma lastreou-se em dois primordiais argumentos, quais sejam:

a) A regra do artigo 472 do Código de Processo Civil (de 1973 — atual artigo 506) "não é absoluta e comporta exceções. Em determinadas hipóteses, a coisa julgada pode atingir, além das partes, terceiros que não participaram de sua formação"; e

b) "A solução da controvérsia perpassa pelo princípio da instrumentalidade das formas, aliado ao princípio da efetividade do processo, no sentido de se utilizar a técnica processual não como um entrave, mas como um instrumento para a realização do direito material. Afinal, se o débito condominial possui caráter ambulatório, não faz sentido impedir que, no âmbito processual, o proprietário possa figurar no polo passivo do cumprimento de sentença".

Lembro que o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.695.444/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, assentou que: "Ademais, não se pode reconhecer ter havido a coisa julgada em desfavor da recorrida, haja vista que os limites subjetivos da coisa julgada obstam seja o terceiro prejudicado, nos termos do que preconiza o artigo 506 do CPC/2015 (equivalente ao artigo 472 do CPC/1973)".

Com o devido respeito, a respeitável decisão oriunda da 3ª Turma não se enquadra em nenhuma das hipóteses de subordinação de terceiro à decisão proferida.

Como bem disse em primoroso estudo José Rogério Tucci (Indevida inclusão de terceiro no processo num recente acórdão do STF, Consultor Jurídico), tal circunstância viola o artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal e, ainda, a regra expressa do já aludido artigo 506 do diploma processual vigente. Assim, diante dessa anomalia, o terceiro (juridicamente interessado) dispõe de mecanismos processuais que visam a cassar a decisão judicial que o atinge. Cabe, pois, aos tribunais rechaçar, sem qualquer exceção, o ato decisório que, declaradamente, — como é o caso retratado no Recurso Especial nº 1.696.704/PR — fere direito subjetivo de quem não ostenta a qualidade de parte no âmbito de um processo judicial.

Com o devido respeito, a decisão apontada afronta a letra dos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal. Deve merecer, pois, recurso extraordinário perante o STF, à luz do artigo 102, III, a, do texto constitucional.

Se uma pessoa não é parte num processo, não se pode compreender como esse terceiro possa integrar relação jurídico processual que envolva cumprimento de sentença.

Tal afronta ao devido processo legal extrapola os termos da interpretação a ser dada à norma infraconstitucional na matéria, que deve se coadunar à Constituição.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma decisão que afronta ao princípio do contraditório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6342, 11 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86494. Acesso em: 28 mar. 2024.

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