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A vitimização secundária sancionada no artigo 225 do Código Penal pela Lei 13.718/2018

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11/11/2020 às 15:20
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É inevitável a vitimização secundária nos crimes sexuais, depois de sancionada a Lei nº 13.718/2018, que transformou a ação penal pública condicionada a representação em ação penal pública incondicionada.

RESUMO: Quando alguém é vítima de um crime (vitimização primária), esta pessoa se vê, a principio, diante de duas hipóteses: a primeira é ter que municiar o Estado com todas as provas cabíveis para vê-lo aplicar a sanção punitiva àquele que a vitimou, casos em que estaríamos diante de uma ação penal privada. A segunda, é contribuir para que o Estado obtenha estas provas, e, neste caso, estaríamos diante da uma ação penal pública condicionada à representação ou ação penal pública incondicionada. Na primeira hipótese a vitima pode decidir se quer ou não promover a ação, mas na segunda, não existe esta possibilidade de escolha, já que o Estado, a partir do momento em que tomou para si o direito punir, tem também o dever de apurar os crimes, e para isso, muitas vezes impõe à vitima o ônus de ter que reviver os fatos, mesmo contra a sua vontade, ou de submeter-se de forma vexatória aos procedimentos necessários sem que seja levada em conta a sua condição de vítima. Esta forma de atuação do Estado compelindo a vítima a um tratamento inadequado é o que caracteriza a vitimização secundária, agora sancionada no artigo 225 do Código Penal Brasileiro pela lei 13.718/2018. Tal fato ocorre quando o citado dispositivo estabelece como sendo de ação penal pública incondicionada todos os crimes sexuais, impondo à vítima, independentemente de suas qualidades pessoais, a obrigação de contribuir com o Estado para a persecução criminal.

Palavras-chave: vitimização; Vitimização secundária; Crimes sexuais; Ação penal.


INTRODUÇÃO

O que se almeja no presente trabalho é a exploração do artigo 225 do CP (Código Penal), alterado pela Lei 13.718/2018, que a nosso ver sanciona a vitimização secundária.

O fenômeno da vitimização encontra-se inserido dentro do estudo da vitimologia e ocorre quando a vítima de um determinado crime, ao recorrer aos órgãos estatais responsáveis pela apuração do fato criminoso e pela persecução penal, é utilizada como mero objeto para a consecução do jus puniendi estatal. A vitimologia, segundo Penteado Filho, é entendida como “o terceiro componente da tríade criminológica: criminoso, vítima e ato (fato crime)”. Citando Benjamin Mendelsohn, o autor insiste que ela “é a ciência que se ocupa da vítima e da vitimização, cujo objeto é a existência de menos vítimas na sociedade, quando esta tiver real interesse nisso” (PENTEADO FILHO, apud BENJAMIN MENDELSOHN, p. 107). A vitmização, por sua vez, como já dissemos, deriva da vitimologia e está presente em todos os tipos de delitos, porém, é nos crimes sexuais que ela fica mais evidente, através da segregação da vítima perante as instâncias formais de controle social, o que caracterizaria o processo chamado de vitmização secundária ou sobrevitimização.

Para facilitar a exposição, o tema será dividido em três capítulos. No primeiro, analisar-se-à como era o tratamento das vítimas de crimes sexuais antes da reforma de 2009, promovida pela lei 12.015 sem, contudo fazer um regresso ao longo das décadas, onde se pode notar que, quanto maior esse retorno, mais estigmas e mistérios, se é que assim podemos dizer, serão encontrados em torno do comportamento e do tratamento da vítima de um delito sexual.

O segundo capítulo analisa a situação das vítimas dos crimes sexuais após a edição da lei 12.015/2009. Foi neste momento que o Estado, pelo menos no Brasil, tomou para si o direito-dever de exercer a persecução penal nestes delitos, porém, respeitando a autonomia da vítima possuidora de capacidade para dispor de seus interesses, o que foi drasticamente alterado pela lei 13.718/2018, que, dentre outras mudanças transformou a ação penal em pública incondicionada para todos os crimes sexuais, sancionando a vitimização secundária.

Tal alteração será o foco de análise do terceiro capítulo e objeto principal do trabalho, onde analisar-se-à as consequências advindas de tal alteração.

Para tanto, utilizaremos como método científico a pesquisa doutrinária para alcançarmos os objetivos ao qual nos propomos. Faremos, portanto, busca por artigos científicos sobre o tema em sites na rede mundial de computadores, bem como nos livros de doutrina que porventura já tenham discorrido sobre o assunto.

Por fim, o objeto deste trabalho cientifico é contribuir para que outros estudos sejam realizados no intuito de demonstrar a imprescindibilidade de uma mudança de paradigma que reflita em um tratamento mais humanizado da vítima.


1.AÇÃO PENAL NOS CRIMES SEXUAIS ANTES DE 2009 E O TRATAMENTO DA VÍTIMA.

O Projeto de Lei do Senado (PLS 253/2004), posteriormente transformado no Projeto de Lei (PL 4.850/2005), e que deram origem à Lei Ordinária 12.015/2009, ao modificar a regra da ação penal nos crimes sexuais, não tratou, em momento algum, sobre a condição e as consequências suportadas pela vítima durante um processo, como era de se imaginar, já que o aprofundamento das questões não parece ser o forte na atividade legislativa brasileira, notadamente quando se trata de legislação criminal. Tais consequências não passam despercebidas pelos estudiosos e tem sido objeto de estudos que buscam analisar como a persecução penal impacta a vida dos envolvidos, principalmente a vítima, o que caracteriza, segundo a doutrina os processos de vitimização. Carvalho e Lobato apud Trindade (2007, p.158) asseveram que:

"Mesmo depois de ocorrer o evento vitimizador (vitimização primária), a vítima precisa continuar a se relacionar com outras pessoas, colegas, vizinhos, profissionais da área dos serviços sanitários, tais como enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais, e profissionais da área dos serviços judiciais e administrativos, funcionários de instâncias burocráticas, policiais, advogados, promotores de justiça e juízes, podendo ainda se defrontar com o próprio agente agressor ou violador, em procedimentos de reconhecimento, depoimentos ou audiências. Essas situações, se não forem bem conduzidas, podem levar ao processo de vitimização secundária, no qual a vítima, por assim dizer, ao relatar o acontecimento traumático, revive-o com alguma intensidade, reexperenciando sentimentos de medo, raiva, ansiedade, vergonha e estigma” (grifo).

Pelo que podemos notar, mesmo que os projetos de leis supramencionados não tenham levado esses aspectos em consideração, não podemos dizer que houve alguma desvantagem para a vítima quando da edição do novel legislativo, pelo contrário, o novo diploma legal melhorou a situação daquele que sofrera um delito de natureza sexual praticado sem violência real e que, possuindo total capacidade, na acepção jurídica do termo, poderia, a partir de então, escolher entre representar ou não contra o agressor, visto que caso optasse pela representação seria obrigado a reviver todos os terríveis momentos que antes o afligira.

Tal vantagem auferida com a nova lei se verifica no fato de que, até o ano de 2009, a ação penal decorrente do crime sexual, notadamente o crime de estupro, somente se procedia mediante queixa. Neste caso, caberia à própria vítima a promoção da ação penal, o que sem dúvida gerava um ônus e, por vezes, impedia as vítimas de terem um acesso mais contundente à justiça, pois todo o processo correria às suas expensas, afinal, era sua responsabilidade constituir um defensor para apresentar a peça inicial, utilizando-se, para tanto, das provas produzidas em inquérito policial, inquérito este que somente seria instaurado se a vítima solicitasse ao Delegado de Polícia, através de requerimento.

Entretanto, se a vítima comprovasse que ela ou seus pais não podiam custear as despesas do processo sem comprometer seu próprio sustento ou o de sua família, poderia representar ao Ministério Público, para que só então, este pudesse promovê-la, na forma de ação penal pública condicionada à representação. Era também pública a ação quando o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder, ou o agente estivesse na qualidade de padrasto, tutor ou curador. Neste caso, a ação penal seria pública incondicionada e não mais condicionada à representação. Os referidos projetos somente trouxeram justificativa para a mudança da natureza da ação penal em relação à criança e ao adolescente, ressaltando que a ação “agora prevista como pública em qualquer circunstância” devia-se ao fato de que

a proteção da liberdade sexual da pessoa, e em especial, a proteção ao desenvolvimento da sexualidade da criança e do adolescente são questões de interesse público, de ordem pública não podendo em hipóteses alguma ser dependente de ação privada e passível das correlatas possibilidades de renúncia e de perdão do ofendido ou ofendida ou ainda de quem tem qualidade para representá-los. Na prática, as qualidades da ação penal privada, no caso de violação da criança e do adolescente, tem contribuído para resguardar cumplicidades, intimidar e, assim, consagrar impunidades. (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 253, de 2004),

mas silenciou-se quanto ao fato de tornar a ação pública condicionada à representação, que passou a ser a regra, quando a vitima não se enquadrasse nas exceções previstas.

Embora os projetos de leis, como já dito, tanto o do Senado Federal (PLS 253/2004) quanto o da Câmara dos Deputados (PL 4850/2005), nada tenha dito sobre a vítima, pessoa capaz, a Lei 12.015/2009, resultante desses projetos, representou grande avanço no que se refere à autonomia destas pessoas quando transformou a ação penal que, em regra era privada, em ação penal pública condicionada à representação ao Ministério Público, desde que a vítima não fosse pessoa menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável. Significa dizer que a responsabilidade de promover a ação penal saiu da esfera de atuação da vítima, cabendo a esta, a partir de então apenas “autorizar” o MP a impulsioná-la.

A autonomia a qual nos referimos está no fato de que caberia à vítima, notadamente no crime sexual praticado sem violência real, decidir se queria ou não reviver todo o suplício que a afligiu quando do sofrimento do delito, caberia a ela agora apenas autorizar o prosseguimento da ação, pois, embora a titularidade tenha passado ao Ministério Público, a vítima não estaria obrigada a fazer a representação e sem a qual o Parquet não poderia atuar, já que, ao nosso entendimento, entendeu o legislador que o interesse em ver o ofensor ser processado e julgado era muito mais da vítima do que do Estado.


A ALTERAÇÃO TRAZIDA PELA LEI 12.015/2009: UM NOVO PARADIGMA PARA AS VÍTIMAS IMPUTÁVEIS DE CRIMES SEXUAIS

Com a edição da Lei 12.015/2009, as vítimas de crimes sexuais que não fossem menores de 18 (dezoito) anos e nem pessoa vulnerável, ou seja, aquela pessoa padecida de alguma enfermidade ou deficiência mental capaz de afetar o seu necessário discernimento para a prática de qualquer ato, como dispõe o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, não estariam mais obrigadas a participarem de um processo que as vitimariam novamente, talvez tanto quanto quando sofreram o delito objeto da ação penal.

Note-se que ao mencionarmos o artigo 217-A deixamos de fora a última parte, ou seja, a que trata da pessoa “que por qualquer outra causa, esteja impedida de oferecer resistência”. É que a doutrina diferencia os conceitos de enfermidade e deficiência mental para nos mostrar que nestes casos o que falta à vítima é a capacidade para dissentir ou consentir com o ato, pois o problema estaria ligado a uma causa perene de determinação em relação ao fato, enquanto que o regramento final diz respeito à capacidade de resistência da vítima, que também pode ser uma enfermidade, mas não de natureza mental e sim uma enfermidade física, bem como outras causas psicológicas, porém, acidentais e passageiras, que afetem a consciência da vítima, como por exemplo, a embriaguez.

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São nessas causas passageiras que, passada a transitoriedade entendemos que a vítima teria condições de decidir se quer ou não promover uma ação penal contra o agressor, pois, há casos em que passada a situação fática a vítima recobra não só a capacidade de resistência, mas principalmente a capacidade de decisão que não tinha durante a prática do ato. Por todos citaremos Rogério Greco que, ao discorrer sobre o assunto nos remonta ao item 70 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal asseverando que lá é elencada “uma série de situações em que se pode verificar a impossibilidade de resistência da vítima”. Entretanto o que queremos ressaltar é que em alguns casos, como no caso em que a vítima esteja embriagada, dopada ou anestesiada, ou ainda, que tenha sofrido uma perda de consciência momentânea, ao restabelecer esta consciência a ela deve ser dada a possibilidade de escolher entre processar ou não o ofensor.

Entendemos que neste ponto andou muito bem o legislador, quando na edição da lei 12.015/2009, trouxe a ação penal pública condicionada à representação como regra e a ação penal pública incondicionada somente quando a vítima fosse menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, uma vez que a escolha da vítima, maior e capaz, de não recorrer às “instancias formais de controle do Estado”1, onde seria obrigada a contar e reviver os fatos, caso isso lhe causasse grande sofrimento ou constrangimento, passou a ser uma alternativa sedimentada numa perspectiva criminológica que a doutrina convencionou-se chamar de vitimização secundária ou sobrevitimização. Neste casos, a vítima deixa de ser mero objeto utilizado para persecução do autor do delito e passa a ser um sujeito dentro do processo.

Ao nosso entendimento destacamos, entre os pontos positivos da referida lei, além do fato de que a partir de sua edição a vítima pôde contar com a atuação do Ministério Público como responsável pela persecução penal do agressor, uma vez que a ação deixou de ser privada, ela ainda ganhou a liberdade de escolha para representar ou não naqueles casos em que havia esta alternativa.


A LEI 13.718 E A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA.

Não obstante a edição da Lei 12.015/2009 tenha representado um avanço quando oportunizou à vítima decidir se queria enfrentar ou não um estigmatizante processo, em menos de uma década depois verifica-se o que podemos chamar de um verdadeiro retrocesso com a edição da Lei 13.718/2018, em que o legislador revoga esta autonomia alçando todos os crimes dos capítulos I e II do Título VI do Código Penal em delitos de interesse público, transformando a ação penal nos crimes sexuais em ação pública incondicionada, independente de quem seja a vítima, se pessoa imputável ou inimputável, entendendo-se, neste último caso, os menores de 18 (dezoito) anos e os vulneráveis. Estigmatizante por que, como aduz Carvalho e Lobato, para a vítima, em muitas vezes o processo nada lhe acrescenta, pois:

Com o fim do processo criminal, que pode ou não acabar com a condenação do acusado, nada muda para a vítima, pois sua dignidade já foi ferida e nada vai ser capaz de repará-la, ainda mais se sabendo que no Brasil poucos são aqueles que ficam presos por muito tempo.

Portanto, ao erigir todos os delitos sexuais ao status de crimes de ação penal pública incondicionada, e o equívoco está justamente em incluir os delitos previstos no Capítulo I (DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL), o legislador passou mais uma vez a mensagem de que o Estado tem privilegiado, na maioria das vezes, o desejo de punir o autor, em detrimento dos anseios da vítima, mesmo que ela seja imputável, capaz de decidir o que considera melhor pra si, contribuindo para uma maior vitimização e reforçando um critério punitivista no Direito Penal, sem se dar conta de que a vítima, embora tenha sofrido com o crime, em seu íntimo pode preferir não reviver toda aquela agonia que outrora suportou, sabendo, por vezes, que o único resultado que verá será a aplicação de uma pena ao agressor que em nada lhe acrescentará ou em nada diminuirá seu sofrimento.

Não se trata aqui de defender a impunidade ou que o Estado deixe ao alvedrio de toda e qualquer vítima, ou da vítima de todo e qualquer crime a decisão de ver processado aquele que cometeu um crime, mas de dar liberdade àquele que sofreu um crime de natureza sexual de escolher se quer ou não fazer parte de um processo que não lhe devolverá a sua dignidade, mas apenas o obrigará a reviver seu suplício.

Tal posição do legislador parece estar calcada na visão de uma sociedade em que a busca por um direito penal com viés punitivista tem crescido a cada dia, chegando a ponto de haver incentivos por grande parte das pessoas para que se adote uma política “talianesca” de olho por olho e dente por dente contra aquele que comete algum delito. Entretanto, nota-se após uma análise mais prolixa, que o verdadeiro anseio não é somente por uma maior punição do autor, mas muito mais por um direito penal que também ampare a vítima.

É, em verdade, uma imensa sede de justiça. Neste contexto, o foco principal do direito penal não deveria ser, pelo menos em determinados casos, a punição do autor de determinado delito, mas a busca pelo “status quo ante” da vítima, ou seja, o restabelecimento da situação anterior, ou, pelo menos a não agravação de um determinado resultado ou sofrimento pelo qual tenha passado. Defendemos que o norte, a finalidade do direito penal deva voltar-se mais para a proteção dos bens jurídicos tutelados, privilegiando um pouco mais a vítima, ao passo que a punição do autor do delito é que deveria estar relegada a um segundo plano, e não o contrário como vem acontecendo. Nas palavras de Carvalho e Lobato (2008), “[...] no processo penal a vítima é, em regra, esquecida, abandonada, relegada a um segundo plano. Em verdade, ninguém se preocupa com a vítima penal”. Tal premissa é tão verdadeira que o próprio CPP (Código de Processo Penal) prevê a possibilidade de condução coercitiva do ofendido, podendo valer-se deste artifício a autoridade policial, como podemos inferir da leitura do art. 6º, IV, combinado com o art. 201, §1º, tratamento este que não poderia ser dispensado ao ofensor/indiciado por força do principio não auto-incriminação, em caso de desatendimento injustificado da solicitação da autoridade policial.

Nota-se que, já há algum tempo, o Estado busca atender ao clamor popular, por vezes sancionando leis que, a despeito de infligir maior punição ao autor do fato delituoso acaba por vezes se esquecendo da vítima, e no intuito de proteger um bem jurídico, que na verdade já foi violado, acaba ele próprio, por violar outros bens jurídicos pertencentes à esta vítima.

É neste contexto que foi editada a Lei 13.718/2018, dando nova redação ao artigo 225 do Código Penal, afiançando as vozes que sustentavam a pertinência da ação penal como pública incondicionada, de forma a modificar a natureza da ação penal nos delitos sexuais, in verbis: Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada. (Grifo. BRASIL. 2018)

Buscamos, mais uma vez, analisar os projetos que deram origem à referida lei (PLS 618/2015 e PL 5452/2016) e nada encontramos a respeito da natureza da ação penal ou de como esta mudança poderia afetar a vítima do delito, o que denota que a alteração do referido dispositivo foi inserida no “apagar das luzes”, sem levar em conta os reflexos que a mudança poderia concretizar, sancionando ex lege o processo de vitimização secundária. Em artigo publicado no Site Conjur, por exemplo, Plinio Gentil, procurador de Justiça do Estado de São Paulo defendia em 2016, ainda sob a vigência da lei 12.015/2009, que “a razão de ser da ação condicionada à representação é haver casos em que se mostra socialmente mais adequado deixar ao critério da vítima a decisão de processar ou não o ofensor”. Estes casos seriam aqueles que já citamos em que a vítima teria capacidade para dispor de seus interesses, sopesando as vantagens e desvantagens de participar de um processo desta natureza.

Ainda no que se refere à lei 13.718/18, em artigo publicado no mesmo site Aury Lopes Junior et al (2018), ao tratar da titularidade da ação penal ressalta que a regra antes da edição da referida lei era que a ação “fosse condicionada a representação da vítima e incondicionada nos casos de vulnerabilidade”, e que o legislador, no intuito de “ampliar a proteção da vítima (maior e capaz), o que fez foi menosprezar sua capacidade de decisão, escolha e conveniência”.

Salienta o autor que é sim uma forma de subjugar a vítima, e torná-la vítima novamente (sobrevitimização), obrigá-la a submeter-se a um processo penal contra a sua vontade, tornando a situação constrangedora e até aviltante, vejamos:

Não são raros os casos em que a vítima (maior e capaz) sofreu um processo de revitimização seríssimo ao ter que comparecer a um processo penal que ela não queria e não desejava, tudo por conta do antigo modelo de ação penal pública incondicionada agora ressuscitado [...] Enfim, nesse ponto, o legislador desconsiderou completamente a liberdade da vítima (maior e capaz, sublinhe-se), que agora não mais poderá decidir se deseja levar adiante a persecução estatal ou não, pois ela poderia preferir não se submeter a exposição (muitas vezes vexatória e humilhante) do processo penal.

Por tais motivos entendemos que a Lei 13.718/2018, como ponto negativo sancionou a vitimização secundária, pois, como afirma Rogério Sanches Cunha

O Estado, em crimes dessa natureza, não pode colocar seus interesses punitivos acima dos interesses da vítima. Em se tratando de pessoa capaz – que não é considerada, portanto, vulnerável –, a ação penal deveria permanecer condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii. (CUNHA, 2018)

Em posição contrária ao que trouxemos até agora, ressalto a visão da Professora Thais Bandeira (2018), em aula ministrada no programa de Pós Graduação em Direito Penal e Processo Penal, no complexo LFG Anhanguera, ao falar da Tutela Penal dos Bens Jurídicos Individuais. Tratando dos crimes contra a dignidade sexual ainda sob a vigência da alteração promovida pela lei 12.015/2009 no artigo 225 do CP, ela criticava a ação penal pública condicionada à representação nos crimes sexuais alegando que o crime de estupro seria muito grave para deixar a “escolha” nas mãos da vítima, que poderia, a pretexto de não querer envolver-se no “barulho do processo” (strepitus judicii) deixar de representar contra o agressor, ou mesmo noticiar o fato à autoridade policial. Segundo Bandeira isso poderia gerar certa impunidade, pois mesmo que um terceiro tomasse conhecimento do fato estaria impossibilitado de imiscuir-se no lugar da vítima, denunciando ou representando ao Ministério Público em seu nome.

Embora os argumentos de Bandeira tenham seu lugar de destaque, inclusive com convergência na ADI 4.301, apresentada pela Procuradoria-Geral da República ao STF em março de 2018, que por sinal, com a alteração promovida pela lei 13.718/2018, perdeu seu objeto, já que buscava justamente transformar a natureza da ação penal do artigo 225 do CP em pública incondicionada, percebe-se que esta visão somente tem relevância nos casos em que haja lesão grave ou morte. Neste caso, e isto é uma obviedade, parafraseando o professor Fredie Didier Jr, quando diz que, às vezes “o óbvio também precisa ser dito”, entendemos que a ação deva mesmo ser incondicionada, uma porque a lesão corporal de natureza grave, por si só, como previsto no Código Penal é um delito para o qual caberá ação pública incondicionada, assim como o homicídio e outra porque neste último caso nem sequer temos a figura da vítima com vida.

Salienta a professora que, no caso da ação penal pública condicionada à representação, poderia haver nefastas consequências para a própria vítima caso ela não levasse o fato ao conhecimento das autoridades, pois, caso ocorresse uma gravidez proveniente do estupro, por exemplo, e esta somente fosse descoberta depois de algum tempo, não poderia a vítima invocar a regra do art. 128, II, do Código Penal2, ficando a mesma desamparada.

Neste ponto, assiste um pouco de razão à professora. No entanto, não tratamos aqui da denúncia e apuração dos fatos, mesmo sabendo que também neste caso (fase pré-processual), a vítima não estará imune aos infortúnios que se estabelecerão após o sofrimento de um delito, mas isto também deve ser uma escolha da vítima.

Perde também o objeto a súmula 608 do STF, que trazia o seguinte teor: “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”. A partir de agora, a própria lei já traz a hipótese de ação penal pública incondicionada em qualquer caso, independentemente de haver ou não violência real. Interessante é que mesmo antes da alteração promovida pela lei 13.718/2018, eram raríssimas as hipóteses em que a ação penal seria pública condicionada à representação, se levarmos em conta a definição de violência real, trazida pela jurisprudência.

Consta de julgados do STF que a violência real estaria caracterizada mesmo que não houvesse lesões corporais, mas sim, quando fosse “empregada força física contra a vítima, cerceando-lhe a liberdade de agir, segundo a sua vontade”3. E a indagação que nos apresenta é: Qual o tipo de delito seria praticado sem violência real e que estaria enquadrado na hipótese de ser de ação penal pública condicionada a representação? Ora, se para a doutrina e a jurisprudência, a violência real é apenas o emprego de força física, mesmo que não ocorra lesão corporal, apenas aqueles delitos de estupro praticados somente com o emprego de ameaça se enquadrariam nesta espécie de ação penal, já que nos casos de vulnerabilidade, a ação penal seria sempre pública incondicionada, por previsão legal e com fundamento justamente na impossibilidade de resistência da vítima. Portanto, entendemos que o delito de estupro é sempre um crime violento por natureza, mas mesmo assim, devemos oportunizar a vítima a escolha de participar ou não do processo, devendo esta escolha ser tolhida apenas em casos de lesões graves ou morte e não em caso de violência real.

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Sobre o autor
Afonso Ferreira de Almeida

Bacharel em Direito. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Policial Militar de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Afonso Ferreira. A vitimização secundária sancionada no artigo 225 do Código Penal pela Lei 13.718/2018. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6342, 11 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86496. Acesso em: 28 mar. 2024.

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