Capa da publicação Caso Mariana Ferrer: quais os limites da imunidade judiciária?
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A questão da imunidade judiciária diante de fato concreto

06/11/2020 às 19:49
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Os fins justificam os meios? A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo Estatuto da Advocacia, não é absoluta e não tolera excessos.

I – O FATO

O processo criminal envolvendo o empresário André Camargo de Aranha e a promoter Mariana Ferrer, no qual ele foi acusado de estuprá-la, causou indignação nas redes sociais.

Segundo Ferrer, o estupro ocorreu em dezembro de 2018 durante uma festa em um clube de luxo em Florianópolis. Ela diz que havia bebido e que, posteriormente, foi dopada e estuprada por Aranha. Ele nega o crime. O empresário foi inocentado pela Justiça, a pedido do Ministério Público, órgão responsável pela acusação.

Um dos pontos que causaram indignação nas redes sociais foi a forma como Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do empresário, tratou Mariana Ferrer durante uma audiência por videoconferência. O vídeo da reunião foi divulgado pelo site The Intercept Brasil.

Em determinado momento, o advogado mostra fotos de Mariana Ferrer, publicadas nas redes sociais antes do caso e que nada têm a ver com o processo. "Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você. Teu showzinho você vai lá dar no teu Instagram, para ganhar mais seguidores. Você vive disso."

"Tu trabalhava no café, perdeu emprego, está com aluguel atrasado sete meses, era uma desconhecida. É seu ganha-pão a desgraça dos outros". Em outro ponto, Rosa Filho mostra outra imagem de Mariana Ferrer. "Essa foto extraída de um site de um fotógrafo, onde a única foto chupando o dedinho é essa aqui, e com posições ginecológicas."

Em seguida, a promoter começa a chorar e pede respeito. "O que é isso? Nem acusado de assassinato é tratado como estou sendo tratada, pelo amor de Deus. Nunca cometi crime contra ninguém", diz.

Em entrevista para o Estadão, em 5 de novembro do corrente ano, o advogado respondeu a pergunta que lhe foi feita: 

“Por que usou fotos da Mariana como modelo ao sustentar que a denúncia seria falsa? Falou em “posições ginecológicas”.

Os trechos divulgados distorcem o contexto. As audiências foram tensas e os embates entre defesa e Mariana foram constantes e longos. Dinâmicas entre acusação e defesa, especialmente em casos mais complexos, abrangem aspectos relacionados a hábitos, perfis, relacionamentos e posturas dos envolvidos. Minha indagação se referiu ao fato de ela ter mudado completamente o perfil de suas postagens após o início da denúncia infundada. Toda pessoa tem o direito de postar e tirar fotos como quiser e não deve ser julgada por isso. O ponto-chave é a mudança brusca de comportamento dela para supostamente sustentar estereótipo criado para a personagem que protagoniza o caso.

"O senhor se arrepende de algum comentário sobre ela?"

As dinâmicas entre acusação e defesa muitas vezes seguem ritos acalorados. Em face ao vazamento seletivo de áudios, imagens e trechos de processo em sigilo de Justiça, lamento o mal-entendido caso alguém tenha se ofendido. Tenho a convicção de ter atuado nos limites legais e profissionais, considerando-se a exaltação de ânimos que costuma ocorrer em audiências.’

Já dizia Couture (Los mandamientos del abogado) que a advocacia é uma luta de paixões: “Não é certamente um caminho glorioso; está feito, como todas as coisas humanas, de penas e de exaltações, de amarguras e de esperanças, de desfalecimentos e de renovadas ilusões”.


II – A CHAMADA IMUNIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO

Teria o advogado praticado ilícito penal contra a honra da vítima naquele processo-crime?  

Fala-se que não constituem injúria ou difamação, a teor do artigo 142 do Código Penal:

a) A ofensa irrogada em juízo na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador;

b) A opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar;

c) O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento do dever de ofício. 

Preceitua o artigo 7º, § 2º, do Estatuto da Advocacia, que o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil, pelos excessos que cometer.

Tal prerrogativa se funda na necessidade de amplitude do direito de defesa, direito esse assegurado na Constituição Federal, que assim justifica e exige a imunidade judiciária.

A chamada imunidade judiciária envolve a possibilidade de quem litiga em juízo. 

Exige-se uma relação processual instaurada, pois é esse  o significado da expressão “irrogada em juízo”, além do que o autor da ofensa precisa situar-se no local próprio para o debate processual. A palavra juízo possui um significado específico, ligando-se ao exercício da jurisdição, típico do Poder Judiciário, e não a qualquer tipo de processo ou procedimento, como se lê do ensinamento de Marcelo Fortes Barbosa (Crimes contra a honra, pág. 68).

O Estatuto da Advocacia, em seu dispositivo citado, fala que o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil, pelos excessos que cometer. A lei permite que a injúria possa ser irrogada fora do juízo. 

Ensinou Paulo Lobo (Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 4ª ed. 2007. Saraiva. Pg. 63):  

“Excluem-se da imunidade profissional as ofensas que possam configurar crime de calúnia (...). A tanto não poderia chegar a inviolabilidade, sob pena de esmaecer sua justificação ética, legalizando os excessos, que, mesmo em situações de tensão, o advogado nunca deve atingir. Nestes casos, responde não apenas disciplinarmente mas também no plano criminal. Contudo, mesmo na hipótese de calúnia, é admissível a exceptio veritas.”

Na lição de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, VI, 113), é simples causa de exclusão da pena, subsistindo a ofensa, que não é punível por razões de ordem política, tendo em vista a razoável presunção de ausência de dolo. Assim se tem na Alemanha, onde a doutrina é uniforme praticamente no sentido de considerar tais casos como de exclusão da antijuridicidade.

Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, parte especial, 7ª edição, pág. 197), ou são casos em que desaparece o animuns infamandi, que é elemento subjetivo do tipo, e, pois, desaparece a conduta típica, ou são casos em que não há, realmente, exclusão da antijuridicidade, sendo assim condutas permitidas em direito.

Com efeito, consoante entendimento jurisprudencial reiterado no Supremo Tribunal Federal, o art. 7.º, § 2.º, da Lei n.º 8.906/94, determina a imunidade profissional do advogado em relação aos crimes de injúria e difamação, por ofensas proferidas em juízo, na discussão da causa, reconhecendo que trata-se de conduta atípica.

"(...) 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está alinhada no sentido de o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria e difamação qualquer manifestação de sua parte no exercício dessa atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo de sanções disciplinares perante a Ordem dos Advogados do Brasil. (...)." (RMS 26975, Relator Min. EROS GRAU, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/08/2008)

"(...) 2. Eventual conflito aparente entre o art. 215 do Código Penal Militar e o art. 7º, § 2º da Lei 8.906/94 deve ser solucionado pela aplicação deste último diploma legal, que é lei federal especial mais recente e amplia o conceito de imunidade profissional do advogado. Precedentes. (...) 4. Afasta-se a incidência da norma penal que caracterizaria a difamação, por ausência do elemento subjetivo do tipo e também por reconhecer-se ter a paciente agido ao amparo de imunidade material. 5. Habeas corpus provido para deferir o trancamento da ação penal, por ausência de justa causa." (HC 89973, Relato Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJ de 24/08/2007 – destacou-se)

Mas essa imunidade não é absoluta.

Tem-se dos julgamentos abaixo citados:

(...) 2 - Precedentes do STJ no sentido de que tal imunidade não é absoluta, não alcançando os excessos desnecessários ao debate da causa cometidos contra a honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária. (...).”

(REsp 919.656/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 12/11/2010 – destacou-se)

“(...) III - A imunidade profissional, indispensável ao desempenho independente e seguro da advocacia (função essencial à Justiça, com previsão constitucional no artigo 133), e que tem por desiderato garantir a inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações no exercício profissional, desde que dentro dos limites da lei, deverá ser exercida sem violar direitos inerentes à personalidade (igualmente resguardados pela Constituição Federal), como a honra e a imagem, de quem quer que seja, sob pena de responsabilização civil pelos danos decorrentes de tal conduta;

(...)

V - Sobressai, de forma cristalina, que o causídico, a pretexto de acoimar de imparcial o julgamento proferido pelo magistrado na causa em que atuara como causídico da parte sucumbente, desbordou de seu direito de denunciar suposta má-conduta do magistrado, vilipendiando, por conseguinte, a honra e dignidade daquele; (...).”

(REsp 1065397/MT, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 16/02/2011).

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RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ADVOGADO. VIOLAÇÃO AO ART. 535, DO CPC. INOCORRÊNCIA. IMUNIDADE PROFISSIONAL. EXCESSO.

1. A inviolabilidade do advogado não é absoluta, estando adstrita aos limites da legalidade e da razoabilidade.

2. A responsabilidade daquele que escreve um documento e o torna público em um processo, atacando a honra de outrem, é de quem o subscreve, pouco importando se reproduz, ou não, declaração pública do cliente.

2. Os danos morais devem ser compatíveis com a intensidade do sofrimento do recorrente, atentando para as condições sócio-econômicas de ambas as partes.

Recurso especial provido.

(REsp 988.380-MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20.11.2008, DJe 15.12.2008)

- A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo Estatuto da Advocacia, não é de caráter absoluto, não tolerando os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo, seja o Juiz, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária.

Precedentes.

- A indenização por dano moral dispensa a prática de crime, sendo bastante a demonstração do ato ilícito praticado.

- O advogado que, atuando de forma livre e independente, lesa terceiros no exercício de sua profissão responde diretamente pelos danos causados.

- O valor dos danos morais não deve ser fixado em valor ínfimo, mas em patamar que compense de forma adequada o lesado, proporcionando-lhe bem da vida que aquiete as dores na alma que lhe foram infligidas.

Recurso especial provido. Ônus sucumbenciais invertidos.

(REsp 1022103-RN, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17.4.2008, DJe 16.5.2008)

 Como Sérgio Eduardo Martinez (O advogado e as afirmações realizadas em juízo: quais ao limites?) bem afirmou, é possível, em tese, a imputação aos advogados que pratiquem excessos de linguagem cometidos em suas manifestações judiciais: o crime de calúnia (Código Penal, art. 138), além da responsabilidade civil e, ainda, a representação perante a Ordem dos Advogados do Brasil.

Já se entendeu que a imunidade judiciária aqui abordada somente existe quando for proferida a ofensa “na discussão da causa”. Não é a causa de imunidade absoluta ou ilimitada e a ofensa deve estar de algum modo relacionada com o direito de defesa, que é o tutelado pelo dispositivo. Caso a ofensa não tenha a menor correlação com essa finalidade de defesa, não gozará o agente da imunidade (RT 606/358, 652/346, 651/288,  665/330, 670/299; RJDTACRIM 3/204; JTACrSP 67/120, 50/141, 62/127; JSTJ 28/234.

Na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo lembro:

“Imunidade judiciária tem por fim assegurar a amplitude da discussão da causa ou defesa de direitos em litígio; mas não é, nem podia ser outorgada indefinidamente; tem o seu limite instransponível na sua própria razão finalística. A locução “na discussão da causa” contida no preceito legal, está precisamente a indicar que a indenidade penal só se refere ao que as partes ou seus procuradores alegam em torno do objeto da controvérsia(relação jurídica em debate e provas aduzidas), tendo em vista a elucidação e convencimento do Juiz(HC 496.269 – 3/1, Caçapava, 5ª C., relator José Damião Pinheiro Machado Cogan, 9 de junho de 2005, JUBI 108/05).

Sendo assim, não há imunidade se a ofensa não tem a menor relação, mesmo longínqua, com a discussão da causa (STF, RTJ 110/231; STJ, RT 751/553).


III – CONCLUSÕES

Ora, a lide não pode ser transformada numa “selva”. Não se pode exigir que a vítima, possa fazer “um verdadeiro curso de sobrevivência na selva”.

Há, pois, limites de linguagem do advogado no decorrer da instrução e da discussão do direitos.

Disse bem o ministro Gilmar Mendes sobre o caso que “o Sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação”.

Não se pode permitir que o advogado, na defesa dos interesses da parte, use o processo para extrapolar o direito de defesa, denegrindo a parte, com afirmações fora dos limites dos autos.

Quando Mariana começa a chorar, o advogado fica ainda mais agressivo e, além de acusar a vítima de “ganhar dinheiro” com a a divulgação do caso nas redes sociais, afirmou:

“Não dá para dar seu showzinho. Seu showzinho você vai dar no Instagram depois, para ganhar mais seguidores. Tu vive disso”, ele falou e argumenta que a influencer fala sobre a acusação de estupro nas redes sociais para ganhar dinheiro com isso.

“Por que você apaga essas fotos, Mariana? E só aparece com essa sua carinha chorando, só falta uma auréola na cabeça. Não venha com esse seu choro falso, dissimulado e essa lágrima de crocodilo”, disse.

Houve, sem dúvida, um excesso desnecessário da parte do advogado, salvo melhor juízo. De forma desproporcional, ele afrontou a honra da vítima, em conduta que extrapolou a razoabilidade.

Será caso de abertura de procedimento ético contra o advogado mencionado por parte da Seção local da OAB, podendo a vítima, por seus advogados, estudar a possibilidade de ajuizamento de ação penal por crime contra a honra e ainda de ação civil por danos morais.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A questão da imunidade judiciária diante de fato concreto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6337, 6 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86538. Acesso em: 18 dez. 2024.

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