Gustav Radbruch foi o mais importante jusfilósofo alemão do século XX. Pertencia à Escola de Baden (sudocidental alemã, que defendia a validade científica das ciências humanas) e sofreu a oposição da Escola de Marburgo (na qual somente as ciências exatas são verdadeiras ciências). Representante da filosofia dos valores de origem neokantiana, sua obra se dividiu em duas fases: antes do nazismo – onde se posicionava como positivista – e pós Segunda Guerra Mundial[1]. Escreveu diversos livros, sendo que o presente trabalho pretende analisar seu texto Cinco Minutos de Filosofia do Direito.
O ensaio foi escrito após a Segunda Guerra Mundial, marcada pela barbárie e pelas atrocidades nazistas, como o Holocausto. Nesse sentido, o filósofo redigiu tal texto com o objetivo de expor motivos para a sua profunda descrença na corrente do positivismo jurídico e propor a retomada da teoria jusnaturalista, há tempos esquecida e considerada superada. Radbruch organizou suas ideias em cinco parágrafos, cada qual representando um minuto.
No primeiro minuto, o autor inicia realizando uma analogia entre o soldado que deixa de cumprir uma ordem injusta e o jurista que, segundo ele, “não conhece exceções deste gênero à validade das leis”[2]. Desse modo, Radbruch apresenta uma crítica direta e contumaz aos operadores do Direito que acreditam que a lei vale por si só, que pelo fato de ela ter força vinculativa entre a realidade fática e o campo teórico do Direito, ela é válida independentemente de seu conteúdo. É a ideia de que a norma redigida supera qualquer valor moral concorrente, pois foi positivada pelo Estado enquanto representante da soberania popular e, sendo assim, é uma lei justa que visa o melhor para o povo.
O segundo minuto condensa uma crítica ao ideal do utilitarismo. O Direito não pode ser uma ferramenta para se chegar a uma finalidade que o Estado considera útil ao povo. O Direito se evidencia como um soldado de reserva, que deveria reger a relação entre utilidade e bem popular, através de critérios como a racionalidade e a sensibilidade humana. Desse modo, Radbruch afirma: “Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.” [3]
O terceiro minuto evidencia a posição do autor no tocante à questão da justiça estar cristalizada em valores morais inerentes ao homem, superiores a qualquer lei escrita, mesmo que o seu processo de formação tenha se dado por meios válidos e legítimos. De acordo com Radbruch, quando as leis desmentem o desejo e vontade de justiça, então não serão válidas.[4]
O quarto minuto compõe uma análise acerca da relação entre Bem Comum, Justiça e Segurança Jurídica, valores que todo o direito deve servir; de modo que o autor discorre no sentido de que, em um ordenamento jurídico, existirão leis que são consideradas más e nocivas, mas que visam à tutela de certos interesses necessários para o Estado e a nação. Contudo, há outras que, pelo grau da ofensa aos direitos naturais, deverão perder sua validade e seu status jurídico.
Por fim, o último minuto reafirma a tese do jusfilósofo alemão. Fixa-se a ideia de que os princípios fundamentais de direito transcendem qualquer preceito jurídico positivo. Nesse sentido, os direitos naturais sempre devem reger a atividade jurídica. Entretanto, Radbruch não procurou negar a importância do direito positivo, mas sim, tecer-lhe críticas e mostrar sua falibilidade.
A obra de Radbruch, seu contexto histórico e as críticas ao positivismo jurídico remetem à obra Eichmann em Jerusálem: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt. Nesse relato jornalístico repleto de conteúdo histórico e análises sobre a psique humana, a filosofa acompanha o julgamento de Adolf Eichmann, um dos líderes da SS nazista e um dos arquitetos da “solução final”. Seria o julgamento do século, algo como a condenação de um psicopata que articulou um dos maiores genocídios da história.
Contudo, conforme o julgamento procedia, com a retórica da acusação e os testemunhos, a figura do monstro se apagava, se apequenava. O que Arendt viu em Eichmann foi uma pessoa medíocre, um arrivista de pouca inteligência e um funcionário leal incapaz de discriminação moral. Um sujeito comum que seguiu ordens do Estado nazista sem pensar no que estava fazendo, apenas procurando ascender dentro da hierarquia. Nesse sentido, a autora afirma que: “Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”[5]
Além disso, “Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos da época”.[6] Desse modo, Eichmann estaria seguindo ordens de uma ideologia que ele internalizou sem levantar suspeitas ou críticas. Teve culpa e foi responsável por mandar milhões de judeus para campos de extermínio, mas, em sua visão, constituiu mera engrenagem de um sistema, estava seguindo suas leis. Fato que remete à uma passagem da obra antológica de George Orwell, 1984, na qual o autor expõe que: “Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência”[7]. Acerca do julgamento do oficial nazista e do conceito de banalidade do mal, José Eduardo de Siqueira discorre:
Eichmann revelou-se, durante todo o processo, até os dias que antecederam sua morte por enforcamento, como uma pessoa incapaz de exercer a atividade de pensar e elaborar um juízo crítico e reflexivo. Seu linguajar era estruturado por sentenças prontas, robotizadas, como por exemplo: minha honra é minha lealdade. Lealdade tão absoluta que o conduziu a nunca tomar decisões autônomas, pois necessitava executar rigorosamente ordens que lhe fossem dadas, jamais emitindo opiniões pessoais e sempre acolhendo as decisões emanadas de seus superiores, conforme a exigência de cumprir incontinente o juramento de irrestrita fidelidade ao partido que o designara oficial da Gestapo. Hannah Arendt o descreveu como um homem de mediocridade transparente, que se envaidecia por ter sido protagonista do interrogatório mais longo da história do século XX. O termo “banalidade do mal” foi por ela cunhado, após ouvir do próprio Eichmann, que o cego cumprimento às ordens emitidas por seus superiores poderia ser comparada à obediência de um cadáver.[8]
Destarte, muitos alemães alegaram que não agiram de forma ilegítima, pois estavam seguindo ordens de seus superiores e estavam seguindo as leis. Por isso, que a teoria do positivismo jurídico, de certo modo, foi muito útil aos líderes de regimes fascistas. Pode-se dizer que as ações daqueles indivíduos não foram ilegais, baseadas nas leis do Estado-nação. Contudo, como uma lei pode ser justa, válida, aceitável, se suprime a liberdade, a igualdade e a vida de terceiros? É justamente nesse contexto, após observar os horrores que poderiam ser legitimados por leis feitas por homens nefastos, que Radbruch enfatiza a importância de direitos naturais, fundamentais, inalienáveis, que devem ser tomados como valores e a base do ordenamento jurídico. Observa-se tal panorama na seguinte passagem:
Após assistir aos horrores da Segunda Guerra Mundial, Radbruch modifica conceitos centrais de sua teoria, com a hierarquização dos valores, no qual a justiça é o valor prioritário e propõe uma nova abordagem: a existência de princípios fundamentais acima de qualquer direito positivo, em clara acepção ao jusnaturalismo – após um século de desenvolvimento do Direito calcado em posições positivistas.[9]
As ideias de Gustav Radbruch acabaram se desdobrando em um novo movimento juspolítico, cunhado com o nome de Neoconstitucionalismo, que visava à garantia, à preservação e à promoção dos direitos fundamentais. Percebe-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 bebeu da fonte das ideias do jusfilósofo alemão, pois já em seu preâmbulo expôs direitos naturais que deverão ser assegurados e tidos “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometimento [...]”.[10] Faz-se mister recordar que o Brasil tinha acabado de passar por anos de chumbo, os quais, com a ascensão de um regime ditatorial, ocorreu de forma desmedida a supressão de inúmeros direitos individuais, políticos e sociais e, por isso, tornou-se essencial valorizar e fortificar os direitos fundamentais, a fim da construção de um novo Estado Democrático de Direito.
Além disso, observa-se a relevância dos direitos fundamentais – direitos fundamentais das várias dimensões, respeitando o caráter de historicidade –, visto que o Título II da Carta de 1988 trata sobre os direitos e garantias fundamentais, trazendo em seu artigo 5º os direitos e garantias individuais, no capítulo II os direitos sociais e, posteriormente, a menção aos direitos políticos. O fato de estarem expressos na Constituição é uma forma de assegurar que estarão presentes em todos os outros diplomas e em todas as outras relações jurídicas, uma vez que as leis devem ser interpretadas em consonância com a Constituição, como se verifica no movimento do Garantismo Penal. Explicando o modelo penal garantista de Luigi Ferrajoli e traçando esse paralelo entre os direitos fundamentais constitucionais e o direito penal, Rogério Greco expõe:
A Constituição nos garante uma série de direitos, tidos como fundamentais, que não poderão ser atacados pelas normas que lhe são hierarquicamente inferiores. Dessa forma, não poderá o legislador infraconstitucional proibir ou impor determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção penal, se o fundamento de validade de todas as leis, que é a Constituição, não nos impedir de praticar ou, mesmo, não nos obrigar a fazer aquilo que o legislador nos está impondo. Pelo contrário, a Constituição nos protege da arrogância e da prepotência do Estado, garantindo-nos contra qualquer ameaça a nossos direitos fundamentais.[11]
Portanto, é possível aduzir que as teses de Radbruch influenciaram muito o mundo jurídico no pós-guerra, uma vez que elas impulsionaram o surgimento de uma teoria jusfilosófica, que resgatou o jusnaturalismo e ressignificou os direitos naturais, elevando-os ao status de Princípios e unindo-os ao direito positivo, como por exemplo, a presença dos direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Nesse sentido, conclui-se que a obra Cinco Minutos de Filosofia do Direito é indispensável para se analisar a evolução histórica do Direito e extremamente relevante para se evitar um novo cenário de dogmatismo exacerbado do Direito.
Notas
[1] SANTOS, Lidiane Souza dos. O pensamento de Gustav Radbruch e a influência do jusnaturalismo no constitucionalismo moderno. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75717/o-pensamento-de-gustav-radbruch-e-a-influencia-do-jusnaturalismo-no-constitucionalismo-moderno Acesso em: 24 de março de 2020.
[2] RADBRUCH, Gustav. Cinco minutos de filosofia do direito. Brasília, 2012: Publicações da Advocacia Geral da União (AGU), pp. 261 – 263. Disponível em: https://seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/viewFile/1620/1307. Acesso em: 24 de março de 2020.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp 310
[6] Ibidem. Pp 311
[7] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pp 70
[8] SIQUEIRA, José Eduardo de. Irreflexão e a banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt. Revista BioEThikos – Centro Universitário São Camilo, 2011. Disponível em: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A5.pdf Acesso em: 20 de novembro de 2018 Pp 393.
[9] SANTOS, Lidiane Souza dos. O pensamento de Gustav Radbruch e a influência do jusnaturalismo no constitucionalismo moderno. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75717/o-pensamento-de-gustav-radbruch-e-a-influencia-do-jusnaturalismo-no-constitucionalismo-moderno Acesso em: 24 de março de 2020.
[10] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. In: Vade Mecum Compacto: método/ Organização Equipe Método. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019.
[11] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume 1.- 20 ed – Niterói: Impetus, 2018.