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Gustav Radbruch e os Cinco Minutos de Filosofia do Direito:

a importância dos princípios para o direito

16/12/2020 às 14:35
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Gustav Radbruch foi um notável jusfilósofo alemão do século XX que, ao publicar sua obra "Cinco Minutos de Filosofia do Direito", após a Segunda Guerra Mundial, expôs os riscos de um direito dogmático-positivo exacerbado e propôs a valorização do jusnaturalismo.

Gustav Radbruch foi o mais importante jusfilósofo alemão do século XX. Pertencia à Escola de Baden (sudocidental alemã, que defendia a validade científica das ciências humanas) e sofreu a oposição da Escola de Marburgo (na qual somente as ciências exatas são verdadeiras ciências). Representante da filosofia dos valores de origem neokantiana, sua obra se dividiu em duas fases: antes do nazismo – onde se posicionava como positivista – e pós Segunda Guerra Mundial[1]. Escreveu diversos livros, sendo que o presente trabalho pretende analisar seu texto Cinco Minutos de Filosofia do Direito.

O ensaio foi escrito após a Segunda Guerra Mundial, marcada pela barbárie e pelas atrocidades nazistas, como o Holocausto. Nesse sentido, o filósofo redigiu tal texto com o objetivo de expor motivos para a sua profunda descrença na corrente do positivismo jurídico e propor a retomada da teoria jusnaturalista, há tempos esquecida e considerada superada. Radbruch organizou suas ideias em cinco parágrafos, cada qual representando um minuto.

No primeiro minuto, o autor inicia realizando uma analogia entre o soldado que deixa de cumprir uma ordem injusta e o jurista que, segundo ele, “não conhece exceções deste gênero à validade das leis”[2]. Desse modo, Radbruch apresenta uma crítica direta e contumaz aos operadores do Direito que acreditam que a lei vale por si só, que pelo fato de ela ter força vinculativa entre a realidade fática e o campo teórico do Direito, ela é válida independentemente de seu conteúdo. É a ideia de que a norma redigida supera qualquer valor moral concorrente, pois foi positivada pelo Estado enquanto representante da soberania popular e, sendo assim, é uma lei justa que visa o melhor para o povo.

O segundo minuto condensa uma crítica ao ideal do utilitarismo. O Direito não pode ser uma ferramenta para se chegar a uma finalidade que o Estado considera útil ao povo. O Direito se evidencia como um soldado de reserva, que deveria reger a relação entre utilidade e bem popular, através de critérios como a racionalidade e a sensibilidade humana. Desse modo, Radbruch afirma: “Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.” [3]

O terceiro minuto evidencia a posição do autor no tocante à questão da justiça estar cristalizada em valores morais inerentes ao homem, superiores a qualquer lei escrita, mesmo que o seu processo de formação tenha se dado por meios válidos e legítimos. De acordo com Radbruch, quando as leis desmentem o desejo e vontade de justiça, então não serão válidas.[4]

O quarto minuto compõe uma análise acerca da relação entre Bem Comum, Justiça e Segurança Jurídica, valores que todo o direito deve servir; de modo que o autor discorre no sentido de que, em um ordenamento jurídico, existirão leis que são consideradas más e nocivas, mas que visam à tutela de certos interesses necessários para o Estado e a nação. Contudo, há outras que, pelo grau da ofensa aos direitos naturais, deverão perder sua validade e seu status jurídico.

Por fim, o último minuto reafirma a tese do jusfilósofo alemão. Fixa-se a ideia de que os princípios fundamentais de direito transcendem qualquer preceito jurídico positivo. Nesse sentido, os direitos naturais sempre devem reger a atividade jurídica. Entretanto, Radbruch não procurou negar a importância do direito positivo, mas sim, tecer-lhe críticas e mostrar sua falibilidade.

A obra de Radbruch, seu contexto histórico e as críticas ao positivismo jurídico remetem à obra Eichmann em Jerusálem: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt. Nesse relato jornalístico repleto de conteúdo histórico e análises sobre a psique humana, a filosofa acompanha o julgamento de Adolf Eichmann, um dos líderes da SS nazista e um dos arquitetos da “solução final”. Seria o julgamento do século, algo como a condenação de um psicopata que articulou um dos maiores genocídios da história.

Contudo, conforme o julgamento procedia, com a retórica da acusação e os testemunhos, a figura do monstro se apagava, se apequenava. O que Arendt viu em Eichmann foi uma pessoa medíocre, um arrivista de pouca inteligência e um funcionário leal incapaz de discriminação moral. Um sujeito comum que seguiu ordens do Estado nazista sem pensar no que estava fazendo, apenas procurando ascender dentro da hierarquia. Nesse sentido, a autora afirma que: “Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”[5]

Além disso, “Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos da época”.[6] Desse modo, Eichmann estaria seguindo ordens de uma ideologia que ele internalizou sem levantar suspeitas ou críticas. Teve culpa e foi responsável por mandar milhões de judeus para campos de extermínio, mas, em sua visão, constituiu mera engrenagem de um sistema, estava seguindo suas leis. Fato que remete à uma passagem da obra antológica de George Orwell, 1984, na qual o autor expõe que: “Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência”[7]. Acerca do julgamento do oficial nazista e do conceito de banalidade do mal, José Eduardo de Siqueira discorre:

Eichmann revelou-se, durante todo o processo, até os dias que antecederam sua morte por enforcamento, como uma pessoa incapaz de exercer a atividade de pensar e elaborar um juízo crítico e reflexivo. Seu linguajar era estruturado por sentenças prontas, robotizadas, como por exemplo: minha honra é minha lealdade. Lealdade tão absoluta que o conduziu a nunca tomar decisões autônomas, pois necessitava executar rigorosamente ordens que lhe fossem dadas, jamais emitindo opiniões pessoais e sempre acolhendo as decisões emanadas de seus superiores, conforme a exigência de cumprir incontinente o juramento de irrestrita fidelidade ao partido que o designara oficial da Gestapo. Hannah Arendt o descreveu como um homem de mediocridade transparente, que se envaidecia por ter sido protagonista do interrogatório mais longo da história do século XX. O termo “banalidade do mal” foi por ela cunhado, após ouvir do próprio Eichmann, que o cego cumprimento às ordens emitidas por seus superiores poderia ser comparada à obediência de um cadáver.[8]

Destarte, muitos alemães alegaram que não agiram de forma ilegítima, pois estavam seguindo ordens de seus superiores e estavam seguindo as leis. Por isso, que a teoria do positivismo jurídico, de certo modo, foi muito útil aos líderes de regimes fascistas. Pode-se dizer que as ações daqueles indivíduos não foram ilegais, baseadas nas leis do Estado-nação. Contudo, como uma lei pode ser justa, válida, aceitável, se suprime a liberdade, a igualdade e a vida de terceiros? É justamente nesse contexto, após observar os horrores que poderiam ser legitimados por leis feitas por homens nefastos, que Radbruch enfatiza a importância de direitos naturais, fundamentais, inalienáveis, que devem ser tomados como valores e a base do ordenamento jurídico. Observa-se tal panorama na seguinte passagem:

Após assistir aos horrores da Segunda Guerra Mundial, Radbruch modifica conceitos centrais de sua teoria, com a hierarquização dos valores, no qual a justiça é o valor prioritário e propõe uma nova abordagem: a existência de princípios fundamentais acima de qualquer direito positivo, em clara acepção ao jusnaturalismo – após um século de desenvolvimento do Direito calcado em posições positivistas.[9]

As ideias de Gustav Radbruch acabaram se desdobrando em um novo movimento juspolítico, cunhado com o nome de Neoconstitucionalismo, que visava à garantia, à preservação e à promoção dos direitos fundamentais. Percebe-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 bebeu da fonte das ideias do jusfilósofo alemão, pois já em seu preâmbulo expôs direitos naturais que deverão ser assegurados e tidos “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometimento [...]”.[10] Faz-se mister recordar que o Brasil tinha acabado de passar por anos de chumbo, os quais, com a ascensão de um regime ditatorial, ocorreu de forma desmedida a supressão de inúmeros direitos individuais, políticos e sociais e, por isso, tornou-se essencial valorizar e fortificar os direitos fundamentais, a fim da construção de um novo Estado Democrático de Direito.

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Além disso, observa-se a relevância dos direitos fundamentais – direitos fundamentais das várias dimensões, respeitando o caráter de historicidade –, visto que o Título II da Carta de 1988 trata sobre os direitos e garantias fundamentais, trazendo em seu artigo 5º os direitos e garantias individuais, no capítulo II os direitos sociais e, posteriormente, a menção aos direitos políticos. O fato de estarem expressos na Constituição é uma forma de assegurar que estarão presentes em todos os outros diplomas e em todas as outras relações jurídicas, uma vez que as leis devem ser interpretadas em consonância com a Constituição, como se verifica no movimento do Garantismo Penal. Explicando o modelo penal garantista de Luigi Ferrajoli e traçando esse paralelo entre os direitos fundamentais constitucionais e o direito penal, Rogério Greco expõe:

A Constituição nos garante uma série de direitos, tidos como fundamentais, que não poderão ser atacados pelas normas que lhe são hierarquicamente inferiores. Dessa forma, não poderá o legislador infraconstitucional proibir ou impor determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção penal, se o fundamento de validade de todas as leis, que é a Constituição, não nos impedir de praticar ou, mesmo, não nos obrigar a fazer aquilo que o legislador nos está impondo. Pelo contrário, a Constituição nos protege da arrogância e da prepotência do Estado, garantindo-nos contra qualquer ameaça a nossos direitos fundamentais.[11]

Portanto, é possível aduzir que as teses de Radbruch influenciaram muito o mundo jurídico no pós-guerra, uma vez que elas impulsionaram o surgimento de uma teoria jusfilosófica, que resgatou o jusnaturalismo e ressignificou os direitos naturais, elevando-os ao status de Princípios e unindo-os ao direito positivo, como por exemplo, a presença dos direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Nesse sentido, conclui-se que a obra Cinco Minutos de Filosofia do Direito é indispensável para se analisar a evolução histórica do Direito e extremamente relevante para se evitar um novo cenário de dogmatismo exacerbado do Direito.


Notas

[1] SANTOS, Lidiane Souza dos. O pensamento de Gustav Radbruch e a influência do jusnaturalismo no constitucionalismo moderno. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75717/o-pensamento-de-gustav-radbruch-e-a-influencia-do-jusnaturalismo-no-constitucionalismo-moderno Acesso em: 24 de março de 2020.

[2] RADBRUCH, Gustav. Cinco minutos de filosofia do direito. Brasília, 2012: Publicações da Advocacia Geral da União (AGU), pp. 261 – 263. Disponível em: https://seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/viewFile/1620/1307. Acesso em: 24 de março de 2020.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp 310

[6] Ibidem. Pp 311

[7] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pp 70

[8] SIQUEIRA, José Eduardo de. Irreflexão e a banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt. Revista BioEThikos – Centro Universitário São Camilo, 2011. Disponível em: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A5.pdf Acesso em: 20 de novembro de 2018 Pp 393.

[9] SANTOS, Lidiane Souza dos. O pensamento de Gustav Radbruch e a influência do jusnaturalismo no constitucionalismo moderno. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75717/o-pensamento-de-gustav-radbruch-e-a-influencia-do-jusnaturalismo-no-constitucionalismo-moderno Acesso em: 24 de março de 2020.

[10] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. In: Vade Mecum Compacto: método/ Organização Equipe Método. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019.

[11] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume 1.- 20 ed – Niterói: Impetus, 2018.

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Sobre o autor
Patrick Henriques Gonçalves

Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal Fluminense.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Patrick Henriques. Gustav Radbruch e os Cinco Minutos de Filosofia do Direito:: a importância dos princípios para o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6377, 16 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87361. Acesso em: 16 abr. 2024.

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