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A OCDE e a sociedade civil:

a acessão brasileira e novos canais de participação

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24/01/2021 às 11:00
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Analisa-se como a acessão brasileira à OCDE pode resultar em desafios e oportunidades para atuação de organizaçoes não governamentais.

Introdução

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é instituição internacional vitualmente desconhecida no Brasil, a despeito de sua longa existência e de sua relevância na determinação da agenda internacional. Dotada de interesses múltiplos e de estrutura complexa, a OCDE apresenta relativa homogeneidade ideológica entre seus membros, os quais também têm similares graus de desenvolvimento humano e adotam políticas semelhantes em matéria de governança social e econômica. No seu arcabouço organizacional, destacam-se os organismos técnicos, que realizam a parte mais divulgada do trabalho da Organização. A produção contínua desses organismos, que verificam a qualidade e a eficiência de políticas públicas por meio de análises comparativas, de sofisticado instrumental econométrico e de índices de estudo qualitativo, possibilita a elaboração de documentos legais que, com forte base em evidência empírica, determinam, recomendam e orientam um conjunto de boas práticas aos membros, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social, com plena vigência da democracia liberal, dos respeito às liberdades individuais e da preservação do meio ambiente. O processo de acessão à OCDE depende de fatores políticos, mas apresenta também dinâmica técnica, na qual o país passa pelo escrutínio de Comitês especializados e pelo Secretariado, antes de sua entrada ser aprovada, consensualmente, pelos membros do Conselho. O Brasil formalizou seu pedido de entrada à Organização e aguarda o começo oficial do processo de acessão, com a publicação de documento indicativo das fases a serem cumpridas pelo país (road map).

Alguns dos vários questionamentos suscitados pela acessão à OCDE são os reais impactos da entrada do pais como membro pleno da organização. Os efeitos sobre a liberdade de condução da política econômica, sobre as estratégias de desenvolvimento, sobre as políticas sociais e sobre a qualidade da democracia são indagações frequentemente formuladas pelos mais diversos atores sociais atentos às relações internacionais do Brasil. Aspecto relevante, mas menos mencionado, diz respeito aos impactos da acessão do país sobre a sociedade civil brasileira. Nesse tema, indaga-se, por exemplo, se a Organização é aberta à participação de atores da sociedade civil e se os novos compromissos internacionais decorrentes da acessão à OCDE ofereceriam instrumentos de atuação para organizações não governamentais, ao ofertar mecanismos adicionais de atuação e de pressão sobre o governo brasileiro.

Como será indicado no texto, as práticas recomendadas pela OCDE e os princípios orientadores da organização são, em tese, favoráveis à atuação da sociedade civil, pois valorizam a participação de múltiplos atores nos processos decisórios e na construção de políticas públicas. Portanto, suas decisões e recomendações, nas mais diversas áreas, tendem a ampliar o espaço de participação de atores da sociedade civil no âmbito nacional dos países. No entanto, a OCDE, na qualidade de entidade intergovernamental, tem iniciativas e canais limitados de participação da sociedade civil no processo decisório e de fixação da agenda da Organização. Os canais da OCDE são seletivos, pois dependem do tema e da dinâmica dos órgãos técnicos especializados, embora haja tendência de maior abertura à sociedade civil.

Este texto, dividido em quatro partes, explora a evolução histórica da Organização, bem como sua estrutura e funcionamento, com a finalidade de tentar identificar oportunidades e dificuldades que a acessão do Brasil à OCDE poderia criar para os atores da sociedade civil no país. Na primeira parte, será abordada, de maneira sucinta, a história da OCDE, com suas origens europeias e sua relação ao plano de recuperação econômica da Europa. Na segunda parte, será abordado o processo de aproximação entre Brasil e OCDE.

1. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

A circunstância de origem da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é o momento de reconstrução política, social e econômica do continente europeu após a Segunda Guerra Mundial, assim como de surgimento do antagonismo entre bloco capitalista e comunista no contexto da guerra fria[1]. A ideia embrionária de Organização decorre dos arranjos europeus para execução do Programa de Recuperação Europeia (Plano Marshall), proposto pelos Estados Unidos da América (EUA), a fim de reconstruir, com aporte norte-americano, importantes parceiros comerciais e aliados políticos dos EUA no contexto da reversão de alianças da Segunda Guerra e da bipolaridade emergente (THORSTENSEN e GULLO, 2018, p. 5; PINTO, 2000).

O esboço de estrutura de decisão conjunta dos países europeus sobre a destinação dos recursos havia sido sugerido por George Marshall (THORSTENSEN e GULLO, 2018, p. 5), que ressaltou a necessidade da coordenação dos líderes europeus para adoção harmonizada de decisões reciprocamente vantajosas, com objetivo de, mediante concertação dos esforços, acelerar a recuperação econômica do continente europeu (THORSTENSEN e GULLO, 2018, p. 5). Dezesseis representantes de países europeus[2] reuniram-se, em 1947, na capital francesa, com intuito de elaborar plano conjunto de recuperação econômica para o período subsequente ao conflito mundial. Na Conferência, os representantes acordaram a criação do Comitê Europeu de Cooperação Econômica. No ano seguinte, mediante assinatura de convenção pelos mesmos países[3], o Comitê, caracterizado pelo mandato limitado e precário, foi transformado na Organização para Cooperação Econômica Europeia (OCEE)

Terminado o Plano Marshall, os países da OEEC, os EUA e o Canadá corroboram a intenção de prosseguir com os esforços de cooperação para o fortalecimento da economia europeia em bases democráticas e liberais, em oposição ao sistema que se afirmava no leste europeu. Esse propósito formalizou-se com a assinatura da Convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (dezembro de 1960). A OCDE, cujo tratado constitutivo entrou em vigor em setembro de 1961, substituiu a antiga OEEC, com o objetivo de promover determinados valores e de fortalecer a tradição de cooperação existente entre os membros, buscando abarcar também perspectivas, interesses e posições políticas de EUA e de Canadá.

O papel político e geoestratégico da organização é reiterado em suas primeiras décadas de existência, e apresenta centralidade na dinâmica da Organização até o fim da guerra fria. Como organização econômica que contemplava os valores fundamentais do ocidente capitalista em oposição ao socialismo soviético (representado, na economia, pela COMECON (Conselho de Assistência Econômica Mútua), a OCDE sustentava a superioridade da economia de mercado, do liberalismo e da democracia, expressa na defesa de direitos garantias fundamentais, no pluripartidarismo e na realização periódica de eleições, com sistema de voto universal. Com a queda do muro de Berlim e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), as organizações internacionais passam por importantes transformações, em direção ao maior universalismo, passando a incluir países africanos e asiáticos de independência recente. A OCDE, ainda que de maneira menos intensa, também apresentará importantes mudanças, tornando-se mais preocupada com novas dimensões do desenvolvimento (meio ambiente, combate à pobreza, universalização de serviços públicos essenciais) e expendido seus interesses para realidade de países emergentes, muitos dos quais apresentavam problemas sensivelmente distintos dos países desenvolvidos. 

Em termos formais, a estrutura da OCDE apresenta três eixos, articulados de maneira harmoniosa e complementar. O Conselho, o Secretariado e os diversos Comitês e organismos técnicos temáticos constituem os componentes estruturantes da Organização e conduzem, de maneira articulada, as atividades típicas da entidade.

O poder normativo da Organização está contido nos art. 5, 6 e 12 da Convenção de 1960 e no 18 do Regulamento Interno da OCDE. Mediante aprovação do Conselho, a OCDE adota conjunto de instrumentos legais que devem ser implementados por seus membros de forma a uniformizar condutas, políticas nacionais e trocas de informações. Os instrumentos legais resultam de trabalho de análise, de estudos, de trocas de experiências e de pesquisas realizadas por Comitês temáticos e corroborados pela autoridade política do Conselho. Ao todo, a OCDE conta, atualmente (agosto de 2020), com 248 instrumentos legais vigentes, distribuídos em dezessete temas distintos: agricultura e alimentação; desenvolvimento; economia; educação, emprego; energia; meio ambiente; finanças e investimentos; governança; indústria e serviços; energia nuclear; ciência e tecnologia; assuntos sociais, migração, saúde; tributação; comércio; transporte; desenvolvimento urbano, rural e regional (OECD, 2020).

Os instrumentos jurídicos da OCDE são de diferentes tipos: Decisões, Recomendações, Declarações, Entendimentos, Acordos. Há outros documentos prescritivos da Organização que não são considerados instrumentos legais, como, por exemplo, diretrizes, guias e manuais. Entretanto, mesmo os instrumentos não normativos têm sua importância na análise da conduta dos membros por seus pares, pois, com frequência, esses documentos indicam as condutas e as políticas entendidas como adequadas pela Organização.

Em termos formais, que pouco revelam da prática da Organização, as Decisões são juridicamente vinculantes para todos os membros[4], conforme art. 5 da Carta da OCDE. O art. 18 do Regulamento Interno da OCDE diferencia as Decisões em sentido estrito das Resoluções, que se referem a aspectos internos da Organização. Embora não sejam tratados internacionais, estabelecem, na qualidade de ato de organização internacional, obrigação jurídica aos membros. Estes têm o dever legal de implementar as Decisões e têm a obrigação positiva de tomar as medidas necessárias para viabilizar a implementação, sob pena de violação da Convenção de 1961 e, por conseguinte, da Convenção de Viena de Direito dos tratados (PINTO, 2000, p. 25).

Recomendações não são juridicamente vinculantes, mas, na prática, possuem grande força moral como representação da vontade política dos membros. Há expectativa, baseada no princípio geral da boa-fé, de que os membros, ao se comprometerem com o conteúdo da Recomendação, dispensarão esforços para implementá-las plenamente e se absterão de praticar atos que frustrem o objeto da Recomendação. Assim, aqueles que, por alguma razão, não pretendem implementar uma Recomendação tendem a se abster quando são aprovadas pelo Conselho. Esse, por exemplo, é o caso da Austrália em diversas Recomendações sobre segurança e manejo de produtos químicos.

Declarações são textos solenes que estabelecem compromissos políticos relativamente precisos, subscritos pelos governos dos membros. Não constituem atos formais da organização, pois são celebrados diretamente pelos Estados, e não são juridicamente vinculantes, muito embora sejam, na prática, consideradas pelo Conselho da OCDE e sua aplicação seja monitorada pelo órgão temático responsável na OCDE.

Entendimentos são instrumentos negociados e adotados no âmbito da organização por alguns membros. Não são atos da organização e não são juridicamente vinculantes, mas são observados pela OCDE e sua implementação também é monitorada por organismos temáticos específicos.

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A OCDE também menciona os Acordos Internacionais que são concluídos no âmbito da organização. Assim como as Declarações e Entendimentos, os Acordos não são propriamente atos da organização, pois são firmados diretamente pelos Estados, mas integram parte do acervo normativo utilizado pela OCDE.

Em termos numéricos, as Recomendações são o instrumento legal mais frequente. Ainda que seja, na aparência, instrumento de soft law, as Recomendações, na prática, pouco diferem das Decisões, que são compulsórias por definição. Na ausência de órgão de solução de controvérsias na OCDE, a observância dos instrumentos legais é verificada por meio das análises no âmbito do Secretariado e dos órgãos técnicos. A conformidade com esses instrumentos, por sua vez, é buscada por meio da pressão dos pares, a qual, por vezes, não diferencia a natureza do instrumento legal que prescreve a conduta aos membros. Na prática, o conteúdo da Recomendação pode ser objeto de análise dos Comitês e da pressão dos pares, da mesma forma que as disposições de uma Decisão, ainda que ambas apresentem construções linguísticas relativamente distintas.

Um dos aspectos mais relevantes dos trabalhos rotineiros da OCDE é sua capacidade de produzir conhecimento qualificado pera formulação de políticas públicas. Em muitos temas, a produção normativa da Organização é menos relevante do que o conhecimento e os dados técnicos produzidos pelos especialistas que atuam nos diversos órgãos temáticos da OCDE. Essa dimensão cognitiva torna a OCDE uma das principais instituições internacionais na produção de conhecimento direcionado aos grandes projetos de governança global e de disseminação de indicadores, de métricas e de outras formas de avaliação qualitativa e quantitativa das múltiplas dimensões sociais e econômica da atualidade.

Um exemplo da importância da dimensão cognitiva da OCDE pode ser observado na área de governança pública e de boas práticas regulatórias. Assumindo que a atuação do Estado deve ser constantemente aperfeiçoada, a OCDE desenvolveu formas de avaliar a qualidade da regulação dos países, mediante a identificação de determinadas características do processo regulatórios (THORSTENSEN e ARIMA JR, 2020). Dessa forma, a organização verifica se os processos regulatórios apresentam transparência, canais de participação para os atores sociais interessados, avaliação de impacto regulatório, avaliação ex post dos resultados da regulação. Por meio dessa análise, a OCDE produz indicadores que possibilitam a comparação entre países, bem como a identificação de evolução em cada um dos membros.

A produção de dados e de conhecimento da OCDE é direcionada à melhoria das políticas públicas dos membros. Ainda que amparada por sólido suporte teórico, a OCDE não tem a pretensão de ser entidade científica, mas, sim, de oferecer opções para aperfeiçoamento da atuação do Estado e de outros atores sociais.

2. Brasil e a OCDE

O início do processo de aproximação entre Brasil e OCDE ocorre nos anos de 1990, momento de importantes inflexões na política externa do país. O país distancia-se da retórica desenvolvimentista e da dinâmica de oposição norte-sul, a qual, por vezes, apegava-se excessivamente à ideia de soberania, e inicia processo de participação mais ativa nos regimes e organizações internacionais, aceitando compromissos em direitos humanos, não proliferação, direito penal internacional (FONSECA JR, 2008).

Nesse contexto de inflexão da política externa brasileira, o país passa a integrar o Comitê do Aço da OCDE, na qualidade de país associado. Paulatinamente, o Brasil passa a participar de outros órgãos e tem a oportunidade de acompanhar discussões técnicas sobre políticas públicas e boas práticas em diferentes áreas (OECD, 2015, p. 3). No ano de 1994, o Brasil tornou-se Membro do Centro de Desenvolvimento da OCDE, e, em 1997, o Brasil subscreve a Declaração sobre Investimento Internacional e Empresas Multinacionais e passa a participar do Comitê de Investimento Internacional. Dois anos mais tarde, em 1999, o Conselho da OCDE concebe programa direcionado ao Brasil, indicativo da relevância de relação bilateral para a organização. A partir de então, o país passa a ser convidado para todas as reuniões Ministeriais da OCDE (OECD, 2018). No ano 2000, o Brasil assina a Convenção de Combate à Corrupção de Autoridades Estrangeiras, cuja implementação, subdividida em quatro etapas, requer processo estreito de acompanhamento por parte da Organização.

No ano de 2003, por meio da Portaria nº 92 do Ministério da Fazenda, o Brasil instituiu o Ponto de Contato Nacional (PCN), em observância à exigência contida nas Diretrizes da OCDE para as Empresas Multinacionais[5], parte integrante da Declaração sobre Investimento Internacional e Empresas Multinacionais. O PCN constitui grupo de trabalho interministerial e objetiva a implementação das Diretrizes no Brasil.  O órgão recebe informações de indícios de condutas empresariais omissivas ou comissivas em desconformidade com as Diretrizes. Na atualidade, o PCN brasileiro é regido e estruturado pela Portaria nº 548, de 2 de setembro de 2019, pelo Decreto Nº 9.874, de 27 de junho de 2019, que revogou a Portaria interministerial nº 37, de 19 de fevereiro de 2013 e tem recebido alegações de descumprimento especialmente de entidades da sociedade civil[6].

No que tange à adesão do país aos instrumentos legais, dos 245 vigentes, de acordo com informações disponíveis no site da OCDE, o Brasil é reconhecido como tendo aderido a noventa e um instrumentos que estão em vigor (OECD, 2020). Dos países em estágio mais avançado de acessão, o Brasil é aquele com maior número de acessões ao acervo regulatório (acquis) da OCDE[7]. Desses instrumentos aderidos pelo Brasil, 58 deles são Recomendações, 19 são Declarações, 9 são Decisões. Os temas mais frequentes desses investimentos são governança (pública e privada), investimentos e finanças e ciência e tecnologia, com, respectivamente, 31, 25 e 20 instrumentos. Importante destacar que, em 2017, o Brasil havia aderido apenas a 37 instrumentos e, na atualidade, compromete-se com 91 instrumentos.

Como candidato a membro efetivo da OCDE, além de buscar aderir ao maior número possível de instrumentos, o Brasil precisa se comprometer a implementar seus conteúdos, uma vez que, caso seu pedido de acessão seja aceito, passará, durante o processo estabelecido no road map, a ser cobrado por seus pares no que tange às regras e princípios da organização.

Embora a acessão aos instrumentos não seja conditio sine qua non à entrada do país como membro pleno da OCDE, é parte relevante do processo de acessão, a exemplo do caso colombiano. Como parte de seu processo de acessão, a Colômbia foi submetida a análises aprofundadas por 23 (vinte e três) Comitês da OCDE e promoveu ou comprometeu-se em promover grandes reformas para alinhar sua legislação, políticas e práticas aos padrões da OCDE, incluindo aspectos trabalhistas, a reforma de seu sistema de justiça, governança de empresas estatais, lei anticorrupção, normas de comércio, bem como novas políticas nacionais sobre governança de produtos químicos industriais e gestão de resíduos[8].

3. OCDE e a sociedade civil

A relação entre a OCDE e a sociedade civil pode ser apreciada sob duas perspectivas: 1) acesso e participação de entidades da sociedade civil na estrutura da Organização, em especial na formulação da agenda de atuação da OCDE e no processo de tomada de decisões da entidade; 2) forma de valorização da sociedade civil no modelo de governança pública delineado pelos instrumentos normativos da OCDE, com repercussão também nos documentos analíticos e estudos da Organização.

3.1. Iniciativas de engajamento da sociedade civil no âmbito da OCDE

Primeiramente, deve-se ressaltar que os princípios que orientam a atuação da OCDE, amparados na democracia liberal, favorecem os processos decisórios abertos à participação de múltiplos atores, bem como a constante prestação de contas por parte das autoridades aos atores interessados. Em segundo lugar, destaca-se que, desde o início de suas atividades, a OCDE interage com parte da sociedade civil, ainda que, inicialmente, essa interação tenha sido limitada à dimensão empresarial e das relações de trabalho. O aumento da relevância da pauta ambiental e a força crescente de organizações dedicadas às várias dimensões da sustentabilidade induziram a OCDE a se aproximar, progressivamente, de organizações não governamentais. A atuação destas no âmbito de Comitês e de outros órgãos técnicos e o desenvolvimento de iniciativas conjuntas têm reforçado essas relações. Adicionalmente, os diversos instrumentos legais da OCDE, que consistem na formalização do conjunto de boas práticas da organização, contemplam a participação da sociedade civil e influenciam o refinamento da participação democrática dos atores sociais no âmbito da política interna dos membros.

Os dois marcos iniciais de conexão entre a OCDE e a sociedade civil ocorreram no âmbito das relações entre capital e trabalho. O Comitê Consultivo Sindical (TUAC, conforme a sigla em inglês) foi fundado em 1948 como parte do Plano de Recuperação Europeu (Plano Marshall). O TUAC continuou seu trabalho de representação das entidades trabalhistas na OCDE, que substituiu a OEEC, em 1961. No ano seguinte, é estabelecido o Business at OCDE (BIAC), que faz contraponto ao TUAC e apoia empresas a contribuir para o crescimento sustentável, desenvolvimento econômico e a prosperidade social. Por meio de suas 55 (cinquenta e cinco) federações nacionais e 45 (quarenta e cinco) redes de grupos de especialistas associados, esse comitê consultivo da OCDE trabalha atualmente com mais de sete milhões de empresas em praticamente todos os setores, representando cerca de meio bilhão de pessoas (OCDE, 2020)[9].

Na década de 1990, em especial após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a temática ambiental torna-se incontornável nas discussões econômicas. Na Reunião de 1996 do Comitê de Política Ambiental em Nível Ministerial, o Gabinete Ambiental Europeu, que tinha relação antiga com a OCDE, coordenou a delegação de organizações não governamentais e suas contribuições para o envolvimento regular da sociedade civil como ator chave em comitês e fóruns. Em 2017, o papel do Gabinete Ambiental Europeu foi formalizado por meio de um Memorando de Entendimento (MOU) anual com a OCDE[10].

Outra oportunidade regular de estreitamento das relações entre a OCDE e a sociedade civil é o Fórum da OCDE[11], direcionado a discutir os principais desafios econômicos e sociais da agenda internacional. Consiste em evento de destaque da semana anual da OCDE, na qual também ocorre a principal reunião ministerial da OCDE. O Fórum reúne representantes do governo de alto nível, executivos de empresas, líderes da sociedade civil e sindicatos, bem como membros proeminentes da academia e da mídia.

No início de 2002, o Conselho Internacional de Proteção Animal em Programas da OCDE (ICAPO, conforme sigla em inglês) recebeu status oficial na categoria de "especialistas convidados" em determinados programas da OCDE (ICAPO, 2020). Destaca-se a participação no Grupo de Trabalho de Coordenadores Nacionais do Programa de Diretrizes de Teste (WNT) e na antiga Força-Tarefa sobre Produtos Químicos Existentes, antes de participar do Comitê de Produtos Químicos, a partir de 2012.

No ano seguinte, é criado o OECD Watch, que atua como a voz oficial da sociedade civil nas Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais[12]. O OCDE Watch participa também do Comitê de Investimentos da OCDE, centrado na melhoria da implementação das Diretrizes como ferramenta de responsabilização corporativa e fortalecimento do mecanismo de reclamação do Ponto de Contato Nacional. O OECD Watch, adicionalmente, tem um relacionamento formal com o Grupo de Trabalho sobre Conduta Empresarial Responsável desde sua criação em 2013.

Em 2008, em Seul, integrantes da sociedade civil se encontraram na Reunião Ministerial da OCDE. Declarou-se que os objetivos da política para a economia da internet no futuro deveriam ser considerados no contexto mais abrangente de direitos humanos, de democracia e de acesso à informação. Houve também referência à liberdade de expressão, à privacidade e à transparência, à proteção ao consumidor, à governança da internet, aos padrões abertos e à inclusão digital. O estabelecimento do Conselho Consultivo da Sociedade da Informação da Sociedade Civil em 2008 ocorreu após duas décadas de participação da coalizão Public Voice na OCDE. O Conselho, que atua no Comitê de Política de Economia Digital, possibilita a participação da sociedade civil nas decisões sobre economia digital e política de Internet, promovendo recomendações baseadas em evidências e em experiências exitosas dos membros.

Em 2013, a Water Governance Initiative foi criada pelo Grupo Central de Boa Governança liderado pela OCDE no Sexto Fórum Mundial da Água[13]. Dois anos depois, a Iniciativa coproduziu os Princípios da OCDE sobre Governança da Água, endossados por quase duzentos grupos de partes interessadas, e concebeu estrutura de indicadores da OCDE para apoiar a autoavaliação da governança da água em cidades, bacias e países interessados. Também facilitou a revisão por pares de mais de cinquenta casos concretos de governança da água em todo o mundo.

No ano de 2017, o Grupo de Referência de Organizações da Sociedade Civil foi criado no âmbito do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento para estabelecer um diálogo mais estruturado com as ONGs, no que diz respeito ao Marco de Diálogo com as Organizações da Sociedade Civil[14]. Oferece às organizações da sociedade civil um espaço para se engajar e influenciar, ao mesmo tempo em que potencializa seus conhecimentos, capacidades e funções como defensoras do combate à pobreza e da promoção da igualdade de gênero, inclusão e desenvolvimento sustentável.

3.2. Sociedade civil nos instrumentos legais da OCDE

Parte relevante da atuação da sociedade civil ocorre no âmbito dos Comitês e dos órgãos técnicos, cujo trabalho principal, além de produzir estudos e análises não prescritivas, é elaborar instrumentos jurídicos a serem aprovados pelo Conselho. A OCDE formaliza a relação com atores da sociedade civil e canais de diálogo por meio das disposições contidas nos seus instrumentos jurídicos. Em análise rápida dos 248 (duzentos e quarenta e oito) instrumentos jurídicos vigentes da OCDE, verifica-se que 41 (quarenta e um) deles mencionam sociedade civil, ou variação do termo. Esse conjunto é constituído integralmente por instrumentos não vinculantes: há 8 (oito) declarações e 31 (trinta e uma) recomendações que mencionam a sociedade civil[15].

Quatorze órgãos técnicos foram os responsáveis pela iniciativa de produção desses instrumentos normativos: são 12 (doze) Comitês e 2 (dois) Grupos de Trabalho. O Comitê de Governança Pública participou da elaboração de 11 (onze) desses instrumentos. Destacam-se também o Comitê de Política de Economia Digital, o Comitê de Assistência aos Desenvolvimento e o Comitê de Investimentos, que elaboraram, respectivamente, 7 (sete), 6 (seis) e 6 (seis) instrumentos. Outros dez organismos produziram pelo menos um instrumento com menção direta à sociedade civil, ainda que em sua parte preambular: Comitê de Agricultura (1), Comitê para Política de Ciência e Tecnologia (2), Comitê de Política do Consumidor (2), Comitê de Governança Corporativa (2), Comitê de Emprego, Trabalho Assuntos Sociais (1), Comitê de Política Ambiental (2), Comitê de Desenvolvimento Regional (1), Comitê de Política Regulatória (1), Grupo de Trabalho de Anticorrupção (2), Grupo de Trabalho de Créditos à Exportação (2).

A quantidade de organismos técnicos na OCDE é superior ao número de temas prioritários da organização e que figuram no mecanismo de busca dos instrumentos legais. Muitos órgãos técnicos tratam de um mesmo grande tema. Por exemplo, o tema energia pode ser objeto de instrumentos legais formulados no Comitê de Energia, no Comitê de Eletricidade, no Comitê de Gás, no Comitê de Energia Nuclear, no Comitê de Petróleo e no Comitê de Política Ambiental. Os Comitês, além disso, podem trabalhar em conjunto no desenvolvimento de instrumento legal ou de estudo sobre seus temas de interesse. A temática da governança, nas suas diversas dimensões (pública, privada, corporativa, especializada em algum tema), é que apresenta maior número de instrumentos que contemplam a sociedade civil. Ao todo, são 23 (vinte e três) instrumentos sobre governança com menção expressa à sociedade civil. Anticorrupção, ciência e tecnologia e finanças e investimentos aparecem em seguida, com, respectivamente, doze (12), onze (11) e dez (10) instrumentos. Indústria e serviços, meio ambiente e desenvolvimento são temas que têm, respectivamente, 7 (sete), 5 (cinco) e 5 (cinco) instrumentos. Há também instrumentos sobre agricultura e alimento (1), educação (1), energia nuclear (1), desenvolvimento regional, rural e urbano (1), assuntos sociais, migração e saúde (1), tributação (1) e comércio (1).

Dos 41 (quarenta e um) instrumentos legais da OCDE que mencionam a sociedade civil, o Brasil, até novembro de 2020, tinha aderido a 21 (vinte e um). Os instrumentos tratam principalmente de governança (13), anticorrupção e integridade (8), comércio, indústria e serviços (5) e finanças e investimentos (8).

O resultado do mapeamento da presença da sociedade civil nos instrumentos jurídicos é indicativo dos órgãos e dos temas nos quais a interação pode ser mais frutífera. Aparentemente, a construção de canais entre a OCDE e a sociedade civil torna-se mais viável quando passa pela atuação nos Comitês. Evidentemente, não basta a referência contida no instrumento legal, para que a interação seja continua e profícua. No entanto, verifica-se que, em certas temáticas e em determinados Comitês, existe predisposição para o trabalho conjunto entre a organização internacional e os atores da sociedade civil.

3.3. O processo de criação de espaços de participação de atores da sociedade civil

A OCDE é organização com múltiplos interesses e suas iniciativas abarcam áreas variadas. A quantidade de órgãos técnicos e a variedade temática dos instrumentos jurídicos são indicativos dessa complexidade da organização. Em razão dessa complexidade estrutural, a OCDE apresenta características que podem variar conforme a área de atuação, inclusive no que concerne ao seu relacionamento com atores não estatais.  

Um exemplo interessante de abertura da OCDE à sociedade civil ocorre no âmbito da governança, que, em grande medida, é discutida pelo Comitê de Governança Pública, um dos principais órgãos técnicos da organização. O Comitê elaborou, após importante tomada de subsídios de atores interessados[16], inclusive da sociedade civil, a Recomendação sobre governo aberto, aprovada pelo Conselho em 2017. O instrumento legal reconhecia a relevância da sociedade civil na construção de governo verdadeiramente democrático, estipulava mecanismos de participação que deveriam ser criados pelos membros.

Como continuidade dos esforços de busca do governo aberto, criou-se, no âmbito do Comitê de Governança Pública, o grupo de trabalho sobre governo aberto. Ainda nesse sentido de estreitamento dos canais de participação da sociedade civil, criou-se o observatório do espaço cívico e o mapa do caminho de monitoramento do espaço cívico.

Essas iniciativas, no âmbito do comitê de governança pública e, mais especificamente, no intuito de implementar as disposições da recomendação sobre governo aberto, apontam para futuro estreitamento de relações entre o Comitê e a sociedade civil, o que pode ser replicado em outras áreas.

O caso do Comitê de Governança Pública, assim como a atuação do Grupo de Referência de Organizações da Sociedade Civil, do Conselho Internacional de Proteção Animal em Programas da OCDE e o OECD Watch são indicativos de que os canais de participação abertos à sociedade civil dependem da temática e da abordagem adotada no comitê ou no órgão técnico. Há temas em que a legitimidade do tratamento legal e da política pública recomendada pela OCDE dependem da participação mais ativa de grupos da sociedade civil.

Contudo, não se pode esquecer que, formalmente, a OCDE é organização intergovernamental. Seu modus operandi difere substancialmente dos processos eivados de supranacionalidade, como os existentes, por exemplo, na UE. É também destituído de instrumentos jurídicos de constrangimento do Estado, como aqueles comuns aos sistemas de regionais de proteção aos direitos humanos. A inexistência de mecanismo jurídico de solução de controvérsias, adicionalmente, não é característica aleatória na organização.  A OCDE, ao optar pelo convencimento técnico e pela pressão dos pares para implementar seus instrumentos, indica que a diplomacia e o argumento fundado em evidências predominam entre os membros da organização. Importante destacar que a participação dos atores não estatais tem ocorrido principalmente no processo de construção desse conhecimento amparado em evidências, que será utilizado como instrumento de pressão sobre os membros. A participação, entretanto, não é automática e depende do consentimento pontual dos membros.

Ressaltar essas caraterísticas parece ser importante para não se criar expectativas irrealistas sobre os impactos da acessão à OCDE e sobre a capacidade de a organização determinar a mudança de conduta do Estado. Certamente, observadas experiências recentes de acessão, verifica-se que o momento de entrada é quando ocorrem as mudanças mais substanciais nos países candidatos. Mesmo quando as alterações efetivas são parciais, os compromissos assumidos pelo acedente perante a organização devem ser valorizados.

Especificamente em relação à sociedade civil, verifica-se que a OCDE, ao mesmo tempo que tem ampliado seus interesses e ajustado sua identidade aos novos tempos, tem criado mecanismos de participação dos atores não estatais e fortalecido os mecanismos existentes. Aparentemente, mais do que ampliar o acesso dos atores da sociedade civil à OCDE, a organização preocupa-se em garantir espaço seguro de atuação dessas entidades na esfera nacional de seus membros.

Considerações finais

A OCDE constitui organização intergovernamental dotada de interesses múltiplos. Seus membros apresentam relativa homogeneidade ideológica e adotam práticas semelhantes em matéria de governo e de economia. Em sua estrutura organizacional, destacam-se os organismos técnicos, que realizam a parte mais relevante e visível da Organização. Os estudos, análises e relatórios produzidos por esses organismos possibilitam a produção de instrumentos legais que determinam e recomendam boas práticas aos membros. O processo de acessão à Organização tem etapa altamente técnica, na qual o país é avaliado pelos Comitês especializados e pelo Secretariado, antes de sua entrada ser aprovada pelo Conselho. O Brasil formalizou seu pedido de entrada à Organização e aguarda o início do processo de acessão, com documento indicativo das etapas desse processo (road map). Os impactos da acessão são imprecisos e a incerteza é maior em decorrência do pouco conhecimento acerca do funcionamento da OCDE. Neste texto, buscou-se, por meio da análise histórica e estrutural da organização, oferecer algumas reflexões sobre possiblidades e limitações decorrentes do processo de acessão e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito da organização. Como se notou, a abertura da OCDE à participação da sociedade civil é seletiva e dependente da temática e da dinâmica interna dos Comitês técnicos. A tendência, no entanto, é de ampliação dessa abertura, o que pode constituir oportunidade importante de atuação para os atores da sociedade civil brasileira.

  • As práticas recomendadas pela OCDE e os princípios orientadores da organização são favoráveis à atuação dos atores da sociedade civil; portanto, suas decisões e recomendações, nas mais diversas áreas, tendem a ampliar o espaço de participação de atores da sociedade civil no âmbito nacional
  • A OCDE tem iniciativas e canais limitados de participação da sociedade civil
  • A abertura é seletiva: depende do tema e da dinâmica dos órgãos técnicos especializados
  • A tendência é de maior abertura da OCDE à sociedade civil

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. A OCDE e a sociedade civil:: a acessão brasileira e novos canais de participação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6416, 24 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87482. Acesso em: 26 abr. 2024.

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