I – O FATO
Como noticiou o jornal O Globo, em 17 de fevereiro de 2021, a Polícia Federal (PF) prendeu, na noite do dia 16, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após o parlamentar ter divulgado um vídeo no qual proferia ataques e ofensas aos ministros da corte. Silveira fez apologia a agressões físicas contra os ministros e defendeu a "destituição" deles.
II – A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
São crimes formais, de perigo, em que se exige o dolo específico como elemento do tipo penal.
O objeto jurídico é a democracia no Brasil.
Trata-se de crime contra a segurança nacional.
Como bem se lê do FGV/CPDOC, a Lei de Segurança Nacional em vigor é a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Essa lei define os crimes contra a segurança nacional e estabelece regras para o seu processo e julgamento. A lei vigente revogou a Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978, que havia substituído o draconiano Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, que, por sua vez, havia revogado o Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, primeira Lei de Segurança Nacional do regime militar que se iniciou em 1964.
A expressão “segurança nacional” aparece no direito brasileiro com a Constituição Federal de 1934 que, no seu título VI, criou o Conselho Superior de Segurança Nacional (art. 159), com atribuições que se relacionavam com a defesa e a segurança do país. A partir daí, todas as constituições se referem ao Conselho de Segurança Nacional. Com a Constituição de 1967 introduziu-se a regra segundo a qual “toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei” (art. 89), regra essa mantida pela Constituição vigente (art. 86).
Os crimes contra a segurança interna são crimes contra o Estado de direito democrático. Falando em tese, as tiranias não têm inimigos ilegítimos. A segurança do Estado depende de múltiplos fatores, entre os quais, por exemplo, a pujança de sua economia e o preparo e coesão de suas forças armadas. Quando se fala em crime contra a segurança do Estado, no entanto, pretende-se punir somente as ações que se dirigem contra os interesses políticos da nação. Os crimes contra a segurança do Estado são os crimes políticos.
Para que possa caracterizar-se o crime político, é indispensável que a ofensa aos interesses da segurança do Estado se faça com particular fim de agir. É indispensável que o agente dirija sua ação com o propósito de atingir a segurança do Estado. Nos crimes contra a segurança interna, esse fim de agir é o propósito político-subversivo. O agente deve pretender, em última análise, atingir a estrutura política do poder legalmente constituído, para substituí-lo por meios ilegais. Pode-se dizer que o fim de agir é aqui um elemento essencial do desvalor da ação neste tipo de ilícito, sem o qual verdadeiramente não se pode atingir os interesses da segurança do Estado. A existência do fim de agir é uma indefectível marca de uma legislação liberal nessa matéria. Mas pode-se também dizer que essa exigência do fim de agir está na natureza das coisas. Não há ofensa aos interesses políticos da nação, se o agente não dirige sua ação deliberadamente para atingi-los.
Com a doutrina da segurança nacional, pretendeu-se substituir a noção de crime contra a segurança do Estado por um outro esquema conceitual, que se refere a certas ações que atingem os objetivos nacionais. Segundo tal doutrina, entende-se por segurança nacional o grau relativo de garantia que, através da ação política, econômica, psicossocial e militar, o Estado proporciona à nação, para a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais, a despeito dos antagonismos ou pressões, existentes ou potenciais. A garantia a que se alude é proporcionada pelo poder nacional, que se define como “expressão integrada dos meios de toda ordem de que efetivamente dispõe a nação numa determinada época”, exercendo-se através de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, para assegurar a consecução dos objetivos nacionais.
A segurança nacional compreende a segurança interna, que “diz respeito aos antagonismos ou pressões” de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou possam manifestar-se no âmbito interno do país”, e a segurança externa, que diz respeito aos antagonismos ou pressões de origem externa, surgidas no domínio das relações internacionais.
O conceito de segurança nacional tem por fulcro, como se percebe, a consecução dos objetivos nacionais, que compete ao Conselho de Segurança Nacional estabelecer (art. 89, I, Constituição Federal). Os objetivos nacionais são vagamente definidos como “cristalização dos interesses e aspirações nacionais em determinado estágio da evolução da comunidade, cuja conquista e preservação toda a nação procura realizar através dos meios de toda a ordem a seu alcance”. A lei vigente define como objetivos nacionais, especialmente, a soberania nacional, a integridade territorial, o regime representativo e democrático, a paz social, a prosperidade nacional e a harmonia internacional.
III – A DEMOCRACIA
O pronunciamento acima citado é uma afronta à democracia.
A democracia é meio de convivência, despertar do diálogo, sensatez.
Lincoln dizia que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, como acentuado em célebre discurso 9 de Novembro de 1863 no Cemitério Militar de Gettysburg.
Disse Burdeau (Traité de Science Politique, tomo V/57) que “se é verdade que não há democracia sem governo do povo, a questão importante está em saber o que é preciso entender por povo e como ele governa”.
Em verdade, a democracia é exercida direta e indiretamente pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente, para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político e verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.
IV – A DEMOCRACIA DE FACHADA E AS BARREIRAS LEGAIS
Mas é necessário ter o necessário cuidado para com a chamada “democracia de fachada”, dentro da construção de um poder discricionário, abusivo, para quem nada é obstáculo e tudo pode.
Na ação de Chávez, na Venezuela, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.
Para isso, no passado, foi importante a edição do AI – 5, que castrou a democracia, instituiu a censura, deu caminho para o arbítrio, institucionalizou a tortura. O HC em matéria de delitos políticos foi eliminado e o Judiciário passou a se subordinar ao Executivo, com o Legislativo silenciado.
A Constituição democrática de 1988 foi uma resposta da sociedade a esse estado de coisas.
O depoimento do deputado federal nomeado é um apelativo à ditadura, uma afronta à democracia.
Dir-se-á que ele se encontra protegido pela imunidade parlamentar. Mas, data vênia, essa imunidade parlamentar não está protegida quando se agride a Constituição. Ora, não se pode falar em imunidade parlamentar material e formal, que é um meio de proteção ao mandato popular, se esse pronunciamento visa a exterminar a democracia.
Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949, e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha.
Para o caso, a barreira legal está na tipificação penal e sua aplicação concreta, e o caminho está na lei de segurança nacional para proteção da democracia.