Resumo: No inicio do século XVI, o pensador Jean Bodin sistematiza uma teoria sobre a soberania. Visando o fortalecimento do poder real, esse autor a apresenta como um poder de origem divina, absoluto, indivisível, perpétuo, inalienável e irresponsável. Essa teoria prevaleceu por quase dois séculos. Para esse autor, um poder soberano com essas características seria a solução para a instabilidade reinante nos Estados da época. No século XVIII, o renomado contratualista Jean Jacques Rousseau escreve o contrato social, no qual apresenta nova concepção de soberania, importando sua origem não a Deus, como o fez Bodin, mas a um corpo político, ou seja, ao povo. A diferença básica entre esses dois autores é a origem do poder, que passa da soberania divina à soberania popular. Tomando como base a teoria rousseaniana, mas tecendo-lhe severa crítica, o constitucionalista Benjamin Constant apresenta sua própria teoria, também como soberania popular, mas com características diversas das de Bodin e Rousseau. Neste trabalho, fazemos uma abordagem do tema resgatando os conceitos desses três pensadores, estabelecendo as características de cada um e traçando suas principais diferenças. A abordagem do tema é importante pois permite compreender como essas teorias se formaram, a que momento histórico serviram e como evoluíram com o tempo.
Palavras-chave: Estado. Soberania. Direito.
Introdução
Desde o primeiro estudo apresentado por Jean Bodin, ainda no século XVI, sobre a soberania, diversos estudiosos se interessaram pelo assunto. Para a Ciência Política, o tema é de elevada importância, especialmente por ser a soberania um dos elementos constitutivos do Estado. Quase seis séculos depois dos primeiros estudos, a soberania ainda é motivo de divergência entre os mais destacados pensadores. É verdade que no transcorrer da história surgiram diversas teorias que a caracterizaram e a conceituaram sob os mais diversos aspectos. De origem divina ou popular, de caráter absoluto ou relativo, a soberania sofreu transformações ao sabor do tempo, dos lugares e dos movimentos sociais que promoveram as grandes mudanças no mundo ocidental. Com o advento da globalização, os Estados se aproximam cada vez mais, as fronteiras se encurtam, promovendo o surgimento de um Direito Internacional positivo cada vez mais abrangente. Por outro lado, grandes confederações são formadas, impondo um novo modo de relação entre os países e tornando suas soberanias mais “flexíveis”. Nesse cenário, ela ganha novo viés, motivando novos estudos.
Neste trabalho, faz-se uma abordagem sobre a soberania, conhecendo sua importância em diferentes épocas e lugares. Para tanto, recorreu-se aos clássicos que se destacaram sobre o estudo do tema, apresentando seus pontos de convergência e divergência. Jean Bodin, Jean Jacques Rousseau e Benjamin Constant de La Rebecque são os escolhidos. Estes autores viveram em épocas, lugares e momentos históricos diversos. Conhecer suas concepções nos possibilitará compreender a evolução do próprio Estado e da soberania.
1.Conceito de Estado
A compreensão do que é o Estado é um instrumento indispensável para o estudo da soberania, assim como o contrário também é verdadeiro. Como um de seus elementos constitutivos, a soberania termina por integrar o seu conceito, daí a importância de conhecê-lo. É histórica a dificuldade de se defini-lo objetivamente. Sob qual perspectiva o pesquisador deve se basear para formar seu conceito: do ponto de vista da força ou do jurídico? Uma outra questão é que, além da complexidade do próprio Estado, este se apresentou de forma diversa nas diferentes épocas e lugares.
Uma técnica utilizada pelos estudiosos para se formar um conceito é conhecer as características ou elementos do objeto. Os elementos essenciais do Estado são aqueles sem os quais ele não existe. Como o próprio conceito de Estado ainda hoje é polêmico, também há divergência doutrinária quanto aos seus elementos essenciais ou constitutivos. O fato é que, historicamente, os Estados se apresentaram de formas diversas em épocas e lugares diferentes. O Estado Antigo, o Medieval, o Moderno e o Contemporâneo possuem características nem sempre comuns. Dalmo Dallari (2009, p. 72) apresenta quatro elementos: “a soberania, o território, o povo e a finalidade”. Sem pretensão de maior aprofundamento no tema, apresenta-se, preliminarmente, o conceito proposto por ele, para quem o Estado é “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território.” (DALLARI, 2009, p. 59).
Com se extrai do texto citado, o autor parte da dimensão jurídica para formular o seu conceito. Nele são expostos seus elementos constitutivos, dentre os quais está a soberania.
2.Noções preliminares de soberania.
“Etimologicamente, o termo soberania provém de superanus, supremias, ou super omnia, configurando-se, definitivamente, através da formação francesa souveraineté, que expressava, no conceito de Bodin, ‘o poder absoluto e perpétuo de uma República’" (SIMEÃO, 2008, 3).
Para Miguel Reale (1963, apud DALLARI, 2009, p. 80), a soberania é “o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.” Sob um ponto de vista estritamente jurídico, a soberania é “o poder de decidir em última instancia sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito.” (DALLARI, 2009, P. 80). Segundo este autor, a grande maioria dos estudiosos do tema entende a soberania como una, indivisível, inalienável e imprescritível. Do ponto de vista da relação entre Estados, a soberania pode ser entendida como um poder que o Estado tem de se conduzir segundo os seus interesses e valores, nos limites do direito. Caracteriza-se pela independência de um Estado em relação aos outros.
Historicamente, é bastante variável a formulação do conceito de soberania, no tempo e no espaço. Para Ferrer e Silva (2003, p.1):
O termo surge no final do século XVI, juntamente com o Estado Moderno, sendo esse decorrente da necessidade de neutralizar um contexto de instabilidade política, econômica e social presente no final da Idade Média. Instabilidade gerada, dentre outros fatores, pela disputa constante entre o poder temporal, do rei e o poder espiritual, da Igreja, agravada ainda pela descentralização do poder entre barões, condes, duques e outros.
Sobre o momento histórico de surgimento do termo, Dallari (2009, p. 75) esclarece que:
No Estado da Antiguidade, desde a época mais remota até o fim do Império Romano, não se encontra qualquer noção que se assemelhe à soberania.
.......................................................................................................................................
Qual a razão de não se ter chegado, até então, ao conceito de soberania ou a outro equivalente? A resposta a essa pergunta já foi dada com bastante precisão por JELLINEK, quando este observou que o fato de a Antiguidade não ter chegado a conhecer o conceito de soberania tem um fundamento histórico de importância, a saber, faltava ao mundo antigo um único dado capaz de trazer à consciência o conceito de soberania: a oposição entre o poder do Estado e outros poderes.
Para Dallari (2009, p.75), as ações do Estado, de intervenção na vida privada, voltadas quase que exclusivamente às questões de segurança e arrecadação de tributos, não permitiam a hierarquização dos poderes sociais, daí não haver, ainda, essa relação formal, institucionalizada entre o Estado e o povo. Sem essa relação, onde um poder se sobrepunha para regular os direitos, as liberdades dos indivíduos, não havia que se falar em soberania.
Ao elaborar, de forma pioneira, a sua teoria sobre a soberania, Bodin (2011, 196) faz essa observação: “Há necessidade aqui de formar a definição de soberania, porque não há jurisconsulto nem filósofo político que a tenha definido, embora seja o ponto principal e o mais necessário de ser entendido no tratado da República.”
Atualmente, existem várias teorias sobre o poder soberano, sendo as principais correntes: Teoria da Soberania Absoluta do Rei; Teoria da Soberania Popular; Teoria da Soberania Nacional; Teoria da Soberania do Estado; Teoria Negativista da Soberania; Teoria Realista ou Institucionalista e Teoria das Escolas Alemã e Austríaca. Essas correntes se ramificam formando diversas outras teorias.
3. A soberania segundo os clássicos.
Neste sentido, para se conhecer o pensamento destes autores sobre a soberania, preliminarmente, é preciso que se conheça o seu tempo histórico.
Do estudo comparativo dos três autores se percebe significativas diferenças. Para Bodin, a soberania tinha a chancela divina, pertencia somente ao rei, era indivisível e ilimitada. Diversamente de Bodin e com base no contrato social, Rousseau atribui a força geradora da soberania ao povo, entretanto, a mantém como indivisível e ilimitada, embora com premissas justificadoras diversas de seu antecessor. A diferença temporal entre os dois autores é de cerca de dois séculos. Sucedendo Rousseau, e com a experiência vivenciada pelas grandes transformações pelas quais a Europa, em especial a França, passou e passa, Constant reformula a teoria rousseaniana sobre a soberania. Ataca principalmente a indivisibilidade e a ilimitação. Para tanto, faz uma análise destes aspectos por ocasião dos últimos acontecimentos franceses, tais como a revolução, a Convenção Termidoriana, o terror e, por fim, a monarquia.
3.1 Jean Bodin
Jean Bodin foi o primeiro pensador a tratar detalhadamente da soberania. Considerando-a um poder absoluto e perpétuo ele faz um estudo detalhado do tema, legando grande contribuição à política, e cria bases teóricas para o absolutismo monárquico. Incrementando sua teoria com farta gama de exemplos históricos, esse autor apresenta várias marcas da soberania, subordinando todas elas a um ponto de convergência - a lei.
A escassez de informações sobre a vida de Bodin e outros pensadores do século XVI, segundo José Carlos Orsi Morel (2011, p. 23), decorre do fato de que, naquela época, “o Estado Nacional ainda não havia se consolidado completamente, de modo que as informações pessoais, demográficas e estatísticas ainda não são muito valorizadas [...] as guerras e revoltas por vezes queimam arquivos que nem sempre são repostos, etc.”. Segundo este autor (2011), Bodin nasceu entre junho de 1529 e junho de 1530, em Angers, França. O pai era um burguês dono de comércio e a mãe, filha da pequena nobreza local. Sua primeira educação formal se dá no Convento dos Carmelitas, de onde se retira aos 15 anos sem “tomar os votos”. Em 1548 entra para a Universidade de Toulouse para estudar direito, onde adquire uma vasta erudição jurídica. Ao final do curso, em 1553, torna-se professor naquela Universidade. Apesar da sua tendência humanista, não tem maiores inclinações sobre a religião.
Vivendo em uma época de grande inquietação sobre a supremacia do poder político, das contendas da realeza pela conquista do trono, pela disputa religiosa entre católicos e protestantes e pelas diversas guerras e convulsões internas pelas quais passava a Europa, em especial a França do século XVI, Bodin apresenta suas teorias com o firme propósito de fortalecer o poder do rei. Para ele um poder absoluto seria a solução para os problemas que assolavam o país.
Para o autor, a soberania tem origem divina e por isso é absoluta e perpétua. Esse absolutismo do soberano se deve ao fato de que seu poder é estabelecido por Deus para comandar os outros homens. Por isso, ele afirma que “[...] NÃO HÁ NADA MAIOR NA TERRA, depois de Deus, que os príncipes soberanos [...]” e acrescenta que “[...] quem despreza seu Príncipe soberano despreza Deus, de quem o Príncipe é a imagem na Terra.” (BODIN, p. 289 – grifado no original). “Ora, a soberania não é limitada nem em poder, nem em responsabilidade, nem por tempo determinado.” (BODIN, 2011, p.198).
Portanto, o soberano é superior a todos, não reconhecendo ordem de qualquer outro homem ou assembléias. Mesmo quando ele delega poderes, ainda assim permanece soberano, deixando claro o conceito de que a soberania é inalienável, como se extrai dessa passagem:
Seja qual for o poder e a autoridade que ele dê a outrem, ele nunca dá tanto que ele não retenha sempre mais, e nunca está excluído de comandar ou de conhecer, por prevenção, concorrência ou avocação, ou do modo que lhe aprouver, as causas das quais encarregou seu súdito, seja ele comissário ou oficial. Essa pode subtrair-lhes o poder que lhes foi atribuído em virtude de sua comissão ou instituição, ou manter tal poder em suspenso por tanto tempo quanto quiser. (BODIN, 2011, p. 197)
Carreando vários exemplos da história, o autor se preocupa em estabelecer o que não é considerado soberano. Nesse rol ele inclui os ditadores, pois seu poder é limitado pelo tempo e portanto não é perpétuo, e o que não é perpétuo não é soberano. Assim que o ditador perde o poder volta a ser súdito. Assim como o ditador, também o lugar-tenente geral e perpétuo de um príncipe, não é soberano pois, apesar de seu imenso poder, quando ele age, o faz em nome do soberano.
Portanto, o poder soberano é absoluto, pois não se subordina senão a Deus; perpétuo, pois permanece no tempo mesmo após a morte de um monarca, sendo transferido a seus descendentes; inalienável, pois jamais pode ser transferido em sua totalidade para alguém e irresponsável, pois não pode ser responsabilizado por seus atos, seja de que natureza for.
Para distinguir o príncipe soberano dos outros homens e torná-lo superior, Bodin (2011) atribui-lhe marcas características, são elas: 1. Dar (e cassar) a lei a todos em geral e a cada um em particular. 2. Fazer a paz e a guerra. 3. Prover todos os magistrados de seu país. 4. Última alçada e, 5. Conceder a graça aos condenados.
Com a primeira marca, o autor coloca o monarca como o único legítimo para dar e cassar a lei a seu povo, seja de forma coletiva ou mesmo individual. Mesmo quando ele delega tal atribuição, ele não delega o poder, pois o delegatário o faz em seu nome. Bodin frisa que, no mister de fazer a lei, o soberano o faz sem o consentimento de ninguém, senão não seria soberano. Também o soberano não se submete a lei, pois se assim o fosse, não seria soberano. Daí se extrai uma das outras marcas da soberania que é o poder de conceder a graça. Ora, se o soberano não fosse superior à lei, não poderia conceder uma graça, sob pena de infringir a norma. Importante frisar que a lei do soberano, na idéia de Bodin, pode ser geral ou específica, dirigida a todos ou somente a alguns, ou mesmo a um só indivíduo. Ao mesmo tempo em que ele tem o poder de “dar” a lei, ele também tem o poder de conceder a graça a um condenado, sem qualquer interferência de qualquer pessoa e sem ter que justificar qualquer motivação.
Essa marca primeira, Bodin a considera como macro, sob as quais se subordinam todas as outras. Assim ele afirma que:
Sob esse mesmo poder de dar e cassar a lei, estão compreendidos todos os outros direitos e marcas de soberania, de modo que, falando-se propriamente, pode-se dizer que existe apenas essa única marca de soberania, visto que todos os outros direitos estão compreendidos neste [...]. (BODIN, 2011, p. 301).
Bodin apresenta o poder soberano como forma de centralização e fortalecimento do poder estatal. Essa soberania, entretanto, passa pela via do direito, ou da lei. O trato do poder soberano com os súditos se dá pela imposição da lei posta por ele mesmo. Entretanto, como já se afirmou, essa lei não lhe impõe deveres nem responsabilidades, pois ele está acima de qualquer regra criada pelo homem ou por ele mesmo.
3.2 Jean Jacques Rousseau
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, Suíça, em 28 de Junho de 1712, e faleceu no castelo de Ermenonville, em 2 de Julho de 1778, aos 66 anos. Foi um destacado filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suiço. É conhecido como um dos principais filósofos iluministas e um precursor do romantismo. Do mesmo modo que Bodin, iniciou seus estudos em escola religiosa. Escreveu diversas obras, dentre elas Discurso sobre as ciências e as artes, O Contrato social e outras. Órfão de mãe alguns dias após o parto, Rousseau se afasta do pai aos 10 anos, mas mantém frequentes contatos. Este, Isaac Rousseau, era um relojoeiro calvinista.
O pensador genebrino vive em um período onde o Estado e a sociedade passam grandes transformações. É a época do absolutismo monárquico, onde a Europa é solapada por grandes conflitos. Viajando pela Europa e morando em mais de um país ele vivencia essa realidade e conhece do pensamento político da época. Mantendo sempre o hábito de andar pelos campos e ficar cada vez mais próximo do estado natural, Jean Jacques vai refletindo sobre os dois estados (natural e social). Isso propicia bases para o autor desenvolver suas teorias e escrever seus livros de política e de romances.
Rousseau é um dos contratualistas mais estudados. Segundo sua teoria do contrato social, o homem vive inicialmente em um estado de natureza. Nesse estado inicial, ele sequer tem a percepção de sua existência e da necessidade de sua conservação. Aí não existia a propriedade, tudo era comum e cada um usufruía da natureza como lhe aprouvesse. O aumento populacional, a consciência de si, do outro e dos objetos, o levaram a idéia de se apropriar das coisas, tomando-as como se fossem sua. Essa noção de propriedade somada à de sobrevivência e às condições naturais desfavoráveis, o impulsionaram a superar todas as dificuldades. Para isso, ele desenvolve utensílios, armas, procedimentos e muda seu modo de vida. Assim, ele “Aprendeu a superar os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens, ou a compensar-se do que tinha de ceder ao mais forte.” (ROUSSEAU, 1999, p. 204). Lentamente, o homem vai formando famílias e se sedentarizando. A linguagem se desenvolve. Então, afirma Rousseau (1999, p. 210):
Os homens, até então errantes pelos bosques, depois de adquirirem uma situação mais fixa, aproximaram-se lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam por fim, em cada região, uma nação particular, uniforme nos costumes e nos caracteres, não por regulamentos e leis, mas pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influencia comum do clima.
Esses agrupamentos vão conduzindo o homem a discórdias, seguindo-se das guerras, sempre no afã de dominar e possuir cada vez mais. Rousseau (1999, p. 219) observa que:
À sociedade nascente seguiu-se um terrível estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às infelizes aquisições que fizera e trabalhando apenas para a sua vergonha, pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou a sim mesmo às portas de sua ruína.
Como forma de reverter esse estado de guerra e insegurança, o homem precisa “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a sim mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. (LIMONGI, 2006, p. 220). Nessa associação, faz-se um pacto social onde cada indivíduo coloca seu poder à disposição da vontade geral. Esta, forma um corpo social, uma pessoa pública, um soberano a quem cabe garantir e proteger o direito de todos enquanto coletividade e de cada um enquanto indivíduo. Forma-se, o Estado.
Para compreender o pensamento de Rousseau sobre a soberania se faz necessário conhecer a terminologia que ele adota, usual à sua época.
Diz ele que “essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou corpo político”. Portanto, se extrai que o que hoje comumente chamamos de Estado, à sua época se chamava de república ou corpo político. Em seguida, Rousseau atribui dois outros termos ao corpo político: estado, quando passivo e soberano, quando ativo. Finalmente, ainda segundo a terminologia da época, e considerando a república na sua relação com outras semelhantes a mesma recebia a denominação de potência. Portanto, república, corpo político, estado, soberano e potência, serviam para denominar a “pessoa pública”, formada pela união de todos os indivíduos, conforme a sua relação com o povo ou com outras repúblicas. Ainda segundo Rousseau a coletividade desses associados recebia o nome de povo e eram chamados de cidadãos quando participantes da autoridade soberana e súditos quando submetidos a ela. (LIMONGI, 2006, p. 221).
A base do pensamento rousseaniano está na liberdade, fundamento do contrato social. Mesmo quando o homem participa do contrato e cede parte dos seus direitos aos soberanos, ele preserva a sua liberdade, mesmo porque preservá-la, e a outros direitos essenciais, é a finalidade do contrato. Em uma clara crítica a Bodin e Hobbes, sobre o poder ilimitado do soberano, Rousseau assevera que:
Dizer que um homem se dá gratuitamente, é uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, tão-somente porque aquele que o pratica não está de posse do seu bom-senso. Dizer a mesma coisa de todo um povo é supor uma nação de loucos e a loucura não cria direito.
........................................................................................................................................
Renunciar à liberdade, é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e mesmo aos seus deveres. (LIMONGI, 2006, p. 216)
Portanto, segundo o autor, o contrato é sinalagmático. Não pode existir de um lado uma autoridade absoluta e de outro uma obediência sem limites. Continua ele:
Vê-se, por essa fórmula, que o ato de associação compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano. (LIMONGI, 2006, p. 216).
Nessa lógica, como o soberano é formado pelo conjunto de todos os particulares, os deveres e finalidades de ambos não podem ser contrários. Assim, o soberano não pode ofender um de seus elementos sem prejudicar a vontade geral e, portanto, fugir à sua finalidade. Para Rousseau (2006), “o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui.”
Na concepção de Rousseau (2006), a soberania nada mais é do que o exercício da vontade geral e esta jamais pode ser alienada. O poder pode ser alienado, mas, não a vontade. Daí sua afirmação de que a soberania é inalienável. Dessa forma é que, aquele que, no exercício do poder soberano, contrariar a vontade geral, torna-se ilegítimo e, portanto, pode ser destituído
Uma outra característica da soberania é a indivisibilidade. Para Rousseau, todo ato soberano se faz lei. Somente o corpo político, que é o único soberano, pode “dar” a lei. E como se dá, na prática, a sua aplicação e a estruturação do Estado? Segundo esse autor:
A força pública necessita, pois, de um agente próprio que a reúna e a ponha em ação segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva à comunicação entre o Estado e o soberano, que de algum modo determine na pessoa pública o que no homem faz a união da alma com o corpo. Eis qual é, no Estado, a razão do governo, confundida erroneamente com o soberano, do qual não é senão o ministro. (ROUSSEAU, 2006, p. 230).
Neste ponto, verifica-se mais uma divergência entre Rousseau e Bodin. Para este, aquele que exerce o governo diretamente, ou seja, o monarca ou a assembléia, é o soberano, ao passo que para Rousseau estes dois são distintos. Aquele que exerce o governo nada mais é do que um funcionário, um intermediário entre os súditos e soberano, um executor do poder deste. Portanto, o poder é atribuído ao governo, mas, não à vontade, que será sempre a do corpo político, do povo. A esse corpo executivo, Rousseau chama de Príncipe. Para ele existe uma constante tensão e tentativa de superação de forças entre o príncipe e o soberano. E quando este for oprimido por aquele, estará rompido o contrato.
3.3 Benjamin Constant de La Rebecque
Constant chega à França em 1795, durante um agitado momento político, justamente na transição da Convenção Termidoriana para o regime constitucionalista do diretório. Uma época de grandes transformações.
“Enfrentando as soluções do passado e as questões do seu tempo, Benjamin Constant inicia os Princípios de política com uma discussão sobre soberania, Rousseau e a Revolução.” (QUIRINO, p. XXIII).
Para Célia N. Galvão Quirino (p. XXIII), “Constant toma a direção contrária ao sentido do poder contido na descrição rousseauniana, isto é, a soberania não é, e não pode ser, una, suprema, indivisível, inalienável. [...] para ele a soberania precisa de limites. [...] O liberalismo de Constant prevê, para os limites da soberania, os próprios direitos civis”.
Benjamin temia que a concentração do executivo nas mãos do monarca lhe desse tamanho poder que não pudesse ser controlado. No esquema montado por ele, existiriam cinco poderes: o Judiciário, o executivo, o poder representativo duradouro, o poder representativo de opinião e finalmente, o poder neutro. Ele lembra que a ideia de um poder neutro não é sua. Foi Stanilas de Clermont Tonnerre que, em 1791, em sua obra Analyse raisonnée de La Constituition Française, havia levantado a questão sobre como resolver os problemas da soberania diante dos três poderes. Nessa ocasião, Tonnerre havia apresentado, como solução, a criação de outro poder, o poder neutro [...] (CONSTANT, 2005, p. XXV).
Sobre o poder neutro, Quirino (2005, p. XXVI) afirma que “esse poder é para ser ‘defensivo e imparcial’ o que o coloca acima dos outros poderes, mesmo do judiciário. Para Constant, o poder neutro é o próprio poder judiciário dos outros poderes.” Quirino (2005, p. XXVI) destaca que o poder neutro tem o condão de ser garantidor das liberdades e direitos dos indivíduos, pois não age com soberania sobres estes mas sobre os outros poderes, garantindo o exercício justo segundo suas finalidades.
Com um poder soberano sobre os demais, a idéia primeira que surge é a de que tamanha força certamente levaria ao despotismo ou à tirania. Entretanto, também a este problema, Constant apresenta uma solução. Esta, segundo ele, se daria pela retirada da força material do chefe do estado. Essa força seria confiada aos ministros, ou seja, ao executivo.
Inicialmente defensor da república, Constant flexibiliza seu pensamento, conforme vão ocorrendo as transformações na França. Entretanto, ele continua firme na defesa dos seus princípios. “O que Constant quer provar é que a preservação dos seus Princípios em uma Constituição, numa república ou numa monarquia constitucional, é a garantia de que esse processo igualitário não ameace a liberdade.” (CONSTANT, 2005, p. XXIX):
Constant chama de irresponsável o poder neutro porque o mesmo não governa, não tem a força de ordenar sobre os indivíduos, ou seja, não tem o poder material. Este ficaria com os ministros, a quem caberia governar o Estado. Em uma frase: reina, mas não governa. Assim, o poder neutro se impunha sobre os outros quatro poderes mas não sobre os indivíduos. Nesse ponto, vê-se a divisão da soberania no âmbito interno. A primeira, composta pelo bloco dos quatro poderes (judiciário, poder representativo duradouro, poder representativo de opinião e o executivo), exerceria a soberania direta sobre o povo. A segunda, da qual se investia o poder neutro, exerceria a soberania sobre os outros poderes. Eis porque Constant não considerava a soberania una e indivisível.
Ele vê a constituição como um instrumento para a garantia das liberdades. Esta, e todo o arcabouço das leis civis, é que impedem a existência de uma soberania absoluta. O poder soberano pode se impor coativamente sobre os indivíduos, mas nos limites da lei. Daí sua limitação. Aqui reside uma das principais contradições aos seus antecessores que afirmavam ser a soberania um poder absoluto.
A soberania bodiniana é bastante diversa da apresentada por Rousseau e por Constant. Bodin é partidário do absolutismo e defende um poder total para o soberano. Dada pelo próprio Deus, o poder soberano, segundo Bodin, se confunde com a pessoa do monarca. Já as soberanias de Rousseau e Constant tem natureza popular e se assemelham em muitos aspectos. Entretanto, a apresentada por Constant é mais pragmática e resolve problemas pendentes na teoria de Rousseau. Esta é mais idealista; a de Constant, mais realista e pragmática. O que se percebe é que há uma mudança radical no modo de pensar a soberania entre estes dois últimos e Bodin.
Para Constant, não interessa em que mãos o poder esteja, mas, uma vez que se estabelece que a soberania do povo é ilimitada, ela sempre será um mal. Para ele, o que se deve temer não são aqueles que detém o poder, mas o grau de grandeza a que se dá a esse poder. “[...] é contra a arma e não contra o braço que se deve ser severo” (CONTANT, 2005, p.8), resultando que não adianta manejar ou deslocar o poder deste para aquele ente, se ele for ilimitado o mal (a injustiça) sempre estará presente.
Constant entende que não há, por parte do indivíduo, uma delegação completa ao soberano de todos os seus direitos. “Ao contrário, há uma parte da existência humana que, necessariamente, permanece individual e independente, e que está de direito fora de qualquer competência social”, portanto, “a soberania só existe de maneira limitada e relativa. No ponto em que começa a independência e a existência individuais detém-se a jurisdição dessa soberania.” (CONSTANT, 2005, p. 9). Portanto, mesmo com a delegação de todos os indivíduos, ou de parte deles, o poder soberano jamais poderá ser usado para oprimir o indivíduo, sob pena de se tornar ilegítimo, pois nem mesmo em nome do bem comum o poder soberano tem o direito de oprimir qualquer pessoa.
Pois é aqui que reside o ponto chave da crítica a Rousseau: a alienação completa e sem reserva que o indivíduo faz de seus direitos ao corpo social. Constant afirma que isso é um equívoco, pois jamais acontece na prática e, por desconhecer essa verdade, e fazer tal afirmação no seu contrato social, este serviu de base para todos os gêneros de despotismo. Na teoria rousseaniana, ao alienar ao soberano seus direitos, o indivíduo o recebe na mesma medida de forma potencializada, garantindo a sua liberdade na sociedade. Para Constant, essa limitação abstrata não basta, é preciso buscar instituições políticas que combinem
Em um de seus discursos, Constant critica, ao mesmo tempo, Bodin e Rousseau, asseverando que:
“há dois dogmas igualmente perigosos: um, o direito divino; o outro, a soberania ilimitada do povo. Um e outro causam grandes danos. De divino, só existe a divindade; de soberano, só há a justiça. Não se deve pegar as opiniões de um amigo fogoso, mas pouco esclarecido, da liberdade, numa época em que a liberdade ainda não estava estabelecida, e propô-las como regra a homens que adquiriram idéias mais saudáveis graças a uma experiência de trinta anos de desgraças.” Discours de B. Constant, t. I, p. 211. Sessão de 10 de março de 1820. (E.L.) (Constant, 2005, p. 10).
O que se percebe é que, quanto à origem do poder, as teorias de Rousseau e Constant têm um ponto em comum: ou seja, a soberania é popular, mas divergem de Bodin, cuja soberania tem origem divina. Por outro lado, Constant se afasta de Rousseau quanto ao absolutismo da soberania, dentre outros aspectos. Entretanto, talvez Rousseau tenha sido mal compreendido quando trata de uma soberania ilimitada do povo. Talvez a questão seja mais prática do que conceitual. De fato, ao elaborar sua teoria, ele parte do pressuposto de que, como a vontade geral tem como finalidade a garantia das liberdades civis, o que é bom para o indivíduo e para todo o corpo social, então essa vontade geral, com este propósito, deverá prevalecer sobre todos os outros poderes, ou seja, não deve conhecer limites.
Entretanto, talvez o problema resida justamente na transmissão desse poder a um governo, que executará essa vontade geral. O próprio Rousseau (2006) admite que há aí um problema e escreve um capítulo dedicado a tratar dos abusos do governo e de sua tendência a degenerar, e outro sobre a morte do corpo social. Por outro lado, é preciso compreender que o autor diz que esse modelo democrático de administrar se adequa mais a pequenos Estados, onde há a participação direta do povo.