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Uma incitação gravíssima

02/04/2021 às 09:35
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A presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Bia Kicis (PSL/DF), usou as redes sociais para incitar motim de policiais miliares da Bahia contra o governador.

Segundo o site do Estado de Minas, em 29 de março de 2021, “a deputada bolsonarista e presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Bia Kicis (PSL/DF), usou as redes sociais nesta segunda-feira (29/3) para incitar um motim de policiais miliares da Bahia contra o governador baiano Rui Costa (PT). O gesto ocorreu após a morte de um PM em Salvador, que teria surtado e atirou contra os próprios colegas.”

 Prosseguiu o Estado de Minas ao noticiar que, diante da repercussão, a parlamentar apagou a publicação. Em novo post, ela recuou e disse que removeu o texto para "aguardar as apurações" do caso. "As redes se comoveram e eu também", justificou.

Vários perfis bolsonaristas na redes sociais aproveitaram para insuflar um motim contra o governador baiano Rui Costa (PT).

Informou o Estado de Minas, outrossim, que “o oportunismo ocorre após as manifestações de PMs registradas ainda na noite desse domingo (28/03) em protesto pela morte do soldado. A partir dos protestos, bolsonaristas passaram a  estimular um motim dos militares baianos.”

De toda sorte o fato é gravíssimo.

Acentua o Código Penal militar em seu artigo 149:

Motim. Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados:

I – agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a cumpri-la;

II – recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem ou praticando violência;

III - assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência ou violência, em comum, contra superior;

IV - ocupando quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar, ou dependência de qualquer deles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio ou viatura militar, o utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência a ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito), com aumento de 1/3 (um terço) para os cabeças.

Revolta. Parágrafo único. Se os agentes estavam armados:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, com aumento de 1/3 para os cabeças.

A diferença básica do crime de motim (artigo 149, caput do CPM) para o crime de revolta (artigo 149, parágrafo único[9], do CPM), é que, no crime de revolta, os agentes, por ocasião da ordem recebida, encontram-se armados, sendo o perigo oferecido por conta desta conduta rechaçada de um maior grau de reprovabilidade.

Para primeira modalidade do crime de motim, os militares claramente não cumprem uma ordem recebida de superior hierárquico, sendo, então, sua forma comissiva – agindo contra a ordem de superior (inciso I,1ª parte).

Na segunda modalidade, os subordinados permanecem estáticos quando recebem a ordem de superiores e, nada fazem, sendo, também, forma omissiva – negando-se a cumprí-la (inciso I, 2ª parte). Já na terceira modalidade, os amotinados, ao receberem a ordem de superior, recusam-se a cumpri-la. Por exemplo, trocar peças de fardamento para uma ação de policiamento tático, lembrando que nesta modalidade ocorre, simultaneamente, o “agindo sem ordem” – recusando obediência a superior quando estejam agindo sem ordem (inciso II -1ª parte). Nas lições de Célio Lobão, o agir sem ordem ”significa qualquer comportamento diferente daquele que o militar deve ter em público ou lugar sob a administração militar”. Na quarta modalidade, que é a 2ª parte do inciso II – praticando violência, esta violência é de forma genérica, portanto, tanto faz se a violência é contra os próprios amotinados, contra bens móveis e imóveis (coisa) ou dirigida à terceiros, sendo que, após individualizada a conduta do agente, este responderá cumulativamente com as penas de outros crimes que cometera (crime de dano, lesão corporal, etc).

No inciso III, 1ª parte – assentindo em recusa conjunta de obediência, agora a quinta modalidade, os agentes que estão amotinados conjuntamente aderem à ideia de se recusar a obedecer a ordem de superior hierárquico – resistência passiva. Na sexta modalidade (inciso III – 2ª parte) – ou em resistência ou violência, tem-se a resistência ativa. Na sétima modalidade, do mesmo Inciso, porém, na sua parte final – contra superior – que decorre da violência praticada contra o superior.

Para o Inciso IV – 1ª parte, tem-se a oitava modalidade – ocupando quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar, ou dependência de qualquer deles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio ou viatura militar. O verbo é ocupar, que é o mesmo que instalar-se, tomar conta, invadir, bens estes que estão sob a administração militar, de forma ilegal em detrimento da ordem de superior ou da disciplina militar. E, finalmente, a nona modalidade de motim, que é a 2ª parte do mesmo inciso – utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência à ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar. Como o próprio verbo formaliza, há a utilização daqueles aparatos institucionais em detrimento da ordem e da disciplina militar.

A revolta é o motim armado, sendo a existência de armas o único e essencial ponto de distinção entre os dois crimes.

Não será suficiente a mera reunião de militares, pois é preciso que os sujeitos ativos do crime ajam contra a ordem recebida de superior ou neguem o seu cumprimento. Assim, a conduta envolve o fato de que os que praticam o crime agem em desfavor da ordem, fazendo o oposto do que lhes foi devidamente ordenado, ou ainda, criem obstáculos à execução. Há ainda conduta criminosa quando os agentes optam por deixar de cumprir a tarefa que lhes foi atribuída pelo superior hierárquico.

O motim é crime formal e de perigo.

Trata-se de crime de ação múltipla.

A disciplina militar é, segundo o art. 14, § 2º do Estatuto dos Militares, “a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes deste organismo”.

O motim é crime militar próprio, em que o sujeito ativo é o militar.

Militar é “qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar.

Motim é um crime que só militares e seus assemelhados podem cometer.

O dolo, elemento do tipo, é o genérico, não existindo a modalidade culposa no motim.

Tanto o motim, como a revolta, são crimes que exigem ação penal pública incondicionada.

Não se pode conceber uma parlamentar, aliada do presidente da República, na presidência da Comissão de Constituição e Justiça, incitando à prática de crime.

Necessário estudar o tipo penal previsto no artigo 286 do Código Penal:

Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa. Os Códigos Penais de 1830 e 1890 eram omissos a respeito.

O crime, do que se lê pela pena, é de menor potencial ofensivo, razão pela qual há uma consciência de impunidade social nesse tipo de conduta.

Merecem ser estudadas as ocorrências na conduta, em redes sociais, de incitar (instigar, provocar, excitar), publicamente, a prática de crime. A publicidade da ação é um pressuposto de fato indispensável. Dela resulta a gravidade dessa conduta, que, de outra forma, seria apenas um ato preparatório impunível. Pública é a incitação quando é feita em condições de ser percebida por um número indeterminado de pessoas, sendo indiferente que se dirija a uma pessoa determinada. A publicidade implica na presença de várias pessoas ou no emprego de meio que seja efetivamente capaz de levar o fato a um número indeterminado de pessoas (rádio, televisão, cartazes, alto-falantes, a internet). A publicidade é a nota nesse ilícito, que surge pela indeterminação nos destinatários.

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Exige-se a seriedade na incitação que deve resultar das palavras e dos gestos empregados.

Como bem assevera Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, Rio de Janeiro, Forense, volume II, 5ª edição, pág. 274), a tutela penal exerce-se com relação à paz pública, pois a instigação à prática de qualquer crime traz consigo uma ofensa ao sentimento de segurança na ordem jurídica e na tutela do direito, independentemente do fato a que se refere a instigação e as consequências que possam advir. No direito comparado, aliás, se tem o exemplo do Código Penal alemão (§111), que classifica este delito entre as infrações que constituem resistência ao poder público, de tal sorte a considerar, como bem jurídico tutelado, o poder público.

O crime de incitação, crime contra a paz pública, pode ser praticado por qualquer meio idôneo de transmissão de pensamento (palavra, escrito ou gesto).

Não basta uma palavra isolada ou uma frase destacada de um discurso ou de um escrito.

A incitação deve referir-se à prática de um crime (fato previsto pela lei penal vigente como crime), e não mera contravenção. Deve a incitação se referir a um fato delituoso determinado, exigindo o dolo genérico, sendo crime formal que se consuma com a incitação pública, desde que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas, independentemente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação. Repita-se que é indispensável que se trate de fato determinado (e não de instigação genérica a delinquir).

 Por fato determinado, entende-se um certo homicídio, etc. Cita o Ministro Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume IX, pág. 167), o exemplo daquele que lança a primeira pedra contra a mulher adúltera, incitando os demais da multidão colérica à criminosa lapidação. Mais ainda, ensina o Ministro Nelson Hungria que não há crime quando o agente faz apenas a defesa de uma tese sobre a ilegitimidade ou sem razão da incriminação de tal ou qual fato, como por exemplo, o homicídio eutanásico, o aborto. Isso porque não haveria ali o animus instiganti delicti, mas uma opinião no sentido da exclusão do crime.

O crime é formal e se consuma coma incitação pública que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas independente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação.

 É possível a tentativa quando se trata de incitação oral. Assim, consuma-se o crime com a simples incitação, com a incitação pública (RT 718/378), mas, repita-se: é indispensável, porém, que um número indeterminado de pessoas tome conhecimento da incitação, ainda que seja dirigida a pessoas determinadas. O crime é de perigo presumido.

O dolo é genérico e consiste na vontade conscientemente dirigida à incitação, à prática de um crime determinado, já que não exige um especial fim de agir. Tal consciência corresponde à sua seriedade, que é elemento indispensável e fundamental para que a pessoa possa reconhecer o fato, bastando que o agente saiba poder causá-lo e assuma o risco de produzi-lo.

Por sua gravidade, será caso de representação criminal à Procuradoria Geral da República para a adoção de providências que julgar cabíveis.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma incitação gravíssima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6484, 2 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89469. Acesso em: 18 abr. 2024.

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