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O acordo de não persecução cível na ação de improbidade administrativa

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2. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NA AÇÃO DE IMPROBIDADE

 

Em sua redação original, o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 vedava a transação, o acordo ou a conciliação nas ações por improbidade administrativa. Contudo, a despeito da referida vedação legal, parcela da doutrina defendia a possibilidade da aplicação de métodos de autocomposição nas ações por improbidade, com base em razões de interesse público, considerando o microssistema de tutela coletiva e, sobretudo, através da aplicação, por analogia, de compromissos de ajustamento de conduta (Lei nº 7.347/1985), de acordos de leniência (Lei nº 12.846/2013) e de colaborações premiadas (Lei nº 12.850/2013).

Nesse sentido, Acácia Regina Soares de Sá (2021) defende a compatibilidade dos métodos de solução consensual de conflitos com as ações de improbidade administrativa, pois, conforme esclarece a autora, à época da promulgação da Lei nº 8.429/1992, não existia regulamentação para as modalidades de autocomposição de conflitos:

[...] pode-se concluir que a vedação de celebração de transação no âmbito da ação de improbidade administrativa decorreu do momento histórico e legal na qual foi criada, no qual não existiam exceções ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, uma vez que a Lei nº 9.099/95 só veio a ser promulgada três anos após, bem como o fato de ainda não existir, à época, uma regulamentação consistente acerca das modalidades de soluções alternativas de conflitos, que também veio ocorrer alguns anos após, tendo sua maior expressão com a promulgação da Lei nº 13.140/15 e o atual Código de Processo Civil, o qual possui como um dos seus princípios basilares a conciliação.

Após a edição da Lei nº 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira (Lei Anticorrupção), o posicionamento doutrinário a favor da celebração de acordo nas ações por improbidade administrativa foi fortalecido, em razão da previsão, por essa lei, de acordo de leniência a ser celebrado pela pessoa jurídica responsável pela prática de atos lesivos à Administração Pública, possibilitando a isenção de determinadas sanções e a redução do valor da multa aplicável no caso concreto (art. 16, § 2º).

Logo, considerando que, em certa medida, a Lei nº 12.846/2013 e a Lei nº 8.429/1992 tutelam os mesmos bens jurídicos, não se mostrava compatível com o ordenamento jurídico a regra que proibia a celebração de acordos, transações ou conciliações no âmbito das ações de improbidade administrativa.

Cabe registrar que, em 2016, a Primeira Turma do STJ decidiu pela extinção de ação civil pública por ato de improbidade administrativa, em razão da celebração de termo de ajustamento de conduta entre as partes do processo. Conduto, deve ser ressalvado que à época do referido julgamento estava em vigor a Medida Provisória nº 703/2015, que havia revogado o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992, possibilitando assim a celebração de acordo nas ações de improbidade.

Nas razões do seu voto[9], o Relator do processo, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, enfatizou que a transação corresponde a um eficiente método democrático para a solução dos conflitos e a pacificação social:

[...] não se desconhece – é conveniente para logo dizer – que o art. 17, § 1º da Lei 8.429/92 vedava a transação, o acordo ou a conciliação nas ações de improbidade; contudo, esse dispositivo foi expressamente revogado pela MP 703, de 18.12.15, que, de acordo com o texto constitucional, ostenta vigor imediato.

[...] Sobre este nobre tema da transação, conforme é do tradicional conhecimento da Filosofia Jurídica, o direito e a Justiça se corporificam com a pacificação social e o equilíbrio das relações, tal como escreveu o salmista DAVI ao dizer que, sob os olhos da proteção salvífica divina, o amor e a fidelidade se encontrarão; a justiça e a paz se abraçarão (Salmo 85).

[...] é unânime entre os operadores do Direito, seja qual for a sua esfera de atuação, que os meios democráticos de solução dos conflitos são muito mais eficientes do que um pronunciamento jurisdicional puro e simples. Não é sem motivo que, com o advento do novo CPC, as oportunidades para que haja transação entre as partes estão sobremaneira amplificadas. [...]

Em reforço a esse posicionamento, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), através da Resolução nº 179/2017, que disciplina o compromisso de ajustamento de conduta (previsto na Lei nº 7.347/1985, art. 5º, § 6º), previu o cabimento da celebração de tal negócio jurídico “nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado” (art. 1º, § 2º), em razão da utilidade de tal instrumento para reduzir a litigiosidade e evitar a judicialização mediante a autocomposição de conflitos.

Já no que se refere à aplicação da colaboração premiada, pode ser citado o posicionamento doutrinário de Matheus Carvalho (2017, p. 982), segundo o qual o referido instituto, previsto na Lei nº 12.850/2013, pode ser analogicamente aplicado às ações de improbidade como meio de obtenção de prova, com vistas a auxiliar no combate a condutas que violam a moralidade pública, haja vista que a ação de improbidade, embora regida pelas regras processuais civis, se liga à processualística penal em certos aspectos, tais como nos critérios para a fixação e a individualização da sanção a ser aplicada (Lei nº 8.429/1992, art. 12). Desse modo, o autor sustenta que:

[...] a Lei de Improbidade Administrativa, criada como instrumento para combate à corrupção, apresenta dificuldades no que tange às investigações, mormente nos casos que envolvem grandes associações criminosas e esquemas de corrupção com agentes de alto escalão.

Assim, a delação premiada seria uma forma de auxiliar o poder público no combate a condutas violadoras da moralidade pública, permitindo a punição dos responsáveis por grandes esquemas de corrupção, permitindo ao Ministério Público atingir o topo da pirâmide, alcançando todos os responsáveis pelos atos danosos.

Saliente-se, ainda, que não se vislumbra empecilho legal à aplicação analógica do instituto da colaboração premiada, uma vez que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657/42) estabelece, no seu artigo 4º, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Contudo, após a perda de eficácia da Medida Provisória nº 703/2015, a jurisprudência voltou a não admitir a celebração de acordos em ações de improbidade administrativa[10], em razão da proibição constante da Lei nº 8.429/1992 para a realização de acordo, transação ou conciliação.       

Sob o mesmo fundamento, a jurisprudência também entendia pela não aplicação, nas ações de improbidade, de leis que previssem acordos de leniência ou colaborações premiadas[11].    

No entanto, com a edição da Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), restou alterada a Lei nº 8.429/1992, que passou a admitir expressamente, nas ações por improbidade administrativa, a celebração de acordo de não persecução cível, ao passo que, na hipótese de possível solução consensual, “poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias” (art. 17, §§ 1º e 10-A).

O texto da Lei nº 13.964/2019 aprovado pelo Congresso Nacional havia incluído na Lei nº 8.492/1992 o artigo 17-A, para disciplinar o acordo de não persecução cível. Entretanto, o referido dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, que entendeu como um retrocesso a legitimidade exclusiva do Ministério Público para celebrar o referido acordo, porquanto a pessoa jurídica lesada também possui legitimidade ativa na ação de improbidade, nos termos das razões de veto abaixo transcritas:

A propositura legislativa, ao determinar que caberá ao Ministério Público a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa, contraria o interesse público e gera insegurança jurídica ao ser incongruente com o art. 17 da própria Lei de Improbidade Administrativa, que se mantém inalterado, o qual dispõe que a ação judicial pela prática de ato de improbidade administrativa pode ser proposta pelo Ministério Público e/ou pessoa jurídica interessada leia-se, aqui, pessoa jurídica de direito público vítima do ato de improbidade. Assim, excluir o ente público lesado da possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível representa retrocesso da matéria, haja vista se tratar de real interessado na finalização da demanda, além de não se apresentar harmônico com o sistema jurídico vigente.

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Assim, conclui-se que é possível a celebração de acordo de não persecução cível nas ações por improbidade administrativa, por expressa previsão legal (Lei nº 8.492/1992, art. 17, § 1º), cabendo tanto ao Ministério Público quanto à pessoa jurídica lesada a iniciativa para propor a autocomposição.

A despeito da ausência de regramento legal específico, a doutrina condiciona a celebração de transação ao cumprimento, de forma cumulativa, dos seguintes requisitos: a) confissão do cometimento do ato de improbidade; b) acordo para reparar integralmente o dano ao erário, se houver; c) acordo para transferir gratuitamente à pessoa jurídica lesada a propriedade dos bens, direitos ou valores eventualmente acrescidos ao patrimônio do infrator em decorrência da prática do ato de improbidade; d) aplicação, isolada ou cumulativa, de uma ou mais sanções previstas na Lei nº 8.429/1992 (LIMA, 2020, pp. 288-289).

Portanto, desde a edição da Lei nº 13.964/2019, não há mais divergência acerca da possibilidade da realização de acordos, transações ou conciliações em ações de improbidade, cumprindo acrescentar que, diante da inexistência de limitação legal, a autocomposição poderá ser promovida na fase extrajudicial (antes do ajuizamento da ação de improbidade) ou em qualquer fase processual (antes do trânsito em julgado), desde que o acordo seja submetido a homologação judicial para extinguir o respectivo processo com resolução de mérito, nos moldes do Código de Processo Civil (arts. 139, V; 487, III, “b”; 515, II):

Nesse sentido, vem a calhar a lição de Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 289):

Como se pode notar, no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa, o acordo de não persecução cível pode ser celebrado inclusive com o processo judicial em curso, hipótese em que sua eficácia ficará condicionada à homologação judicial, tal qual previsto no art. 515, inciso II, do CPC. Nesse caso, como o Projeto Anticrime não delimitou um limite para a celebração da avença, conclui-se que a medida pode ser levada a efeito a qualquer tempo, nos termos do art. 139, inciso V, do CPC, desde que antes do trânsito em julgado de eventual sentença condenatória.

A tendência é que a jurisprudência venha a se formar com esse mesmo entendimento, considerando que, no ano de 2021, em sede de Agravo em Recurso Especial nº 131.4581/SP[12], a Primeira Turma do STJ homologou acordo celebrado na fase recursal de ação de improbidade administrativa, ensejando a extinção do processo com resolução do mérito:

[...] A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, alterou o § 1º do art. 17 da Lei n. 8.429/1992, o qual passou a prever a possibilidade de acordo de não persecução cível no âmbito da ação de improbidade administrativa.

[...] o Ministério Público Federal manifestou-se favoravelmente à homologação judicial do acordo em apreço asseverando que: “Realmente, resta consignado no ajuste que apesar de ter causado danos ao erário, o ato de improbidade em questão foi praticado na modalidade culposa, tendo o Agravante se comprometido a reparar integralmente o Município no valor atualizado de R$ 91.079.91 (noventa e um mil setenta e nove reais e noventa e um centavos), além de concordar com a aplicação da pena de proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos [...]

Dessa forma, tendo em vista a homologação do acordo pelo Conselho Superior do MPSP, a conduta culposa praticada pelo ora recorrente, bem como a reparação do dano ao Município de Votuporanga, além da manifestação favorável do Ministério Público Federal à homologação judicial do acordo, tem-se que a transação deve ser homologada, ensejando, por conseguinte, a extinção do feito, com resolução de mérito, com supedâneo no art. 487, III, "b", do CPC/2015.

[...] Homologo o acordo e julgo prejudicado o agravo em recurso especial.

 

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Sobre o autor
João Daniel Correia de Oliveira

Analista Judiciário, Área Judiciária. Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas (2022). Especialização em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, FALEG (2021). Especialização em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA em parceria com a Escola Brasileira de Direito, EBRADI (2019). Especialização em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo (2019). Especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Daniel Correia. O acordo de não persecução cível na ação de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6571, 28 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90396. Acesso em: 26 abr. 2024.

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