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Crime militar de tortura: Inconstitucionalidade da decretação automática da perda do posto e patente de oficial ou da graduação da praça por juiz de primeiro grau da Justiça Militar

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25/05/2021 às 13:50
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4 PERDA DO POSTO E PATENTE DOS OFICIAIS E DA GRADUAÇÃO DAS PRAÇAS CONDENADOS PELA PRÁTICA DE CRIME DE TORTURA À LUZ DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONSOLIDAÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA

Conforme demonstrado, a prática da tortura é uma conduta atroz que viola o princípio da dignidade da pessoa humana, instrumentaliza o indivíduo e o perturba nos espaços mais íntimos do seu ser.

Criminalizar a tortura, estabelecer penas rigorosas e efetivas era uma expectativa iniciada nas discussões profundas e densas do século XVIII. No Brasil, a Lei 9.455/1997 representou a materialização dessa conquista civilizatória.

A questão que se impõe a partir desse ponto, e que carece de análise detida, se refere à possibilidade jurídica de decretação automática da perda do cargo, função ou emprego público, conforme previsto no artigo 1º, § 5º, da Lei 9.455/1997, quando da ocorrência de crime militar de tortura, em dois questionamentos específicos:

I) pode o juiz federal da Justiça Militar da União ou do juiz de direito do Juízo Militar no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, órgãos de primeiro grau, decretar, automaticamente, a perda do posto e patente de oficial autor de crime militar de tortura; e

II) o juiz federal da Justiça Militar da União ou do juiz de direito do Juízo Militar no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, órgãos de primeiro grau, pode decretar, automaticamente, a perda da graduação de praça autora de crime militar de tortura.

A doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento que a condenação pela prática de crime de tortura ocasiona a perda do cargo, função ou emprego público, na forma do artigo 1º, § 5º, da Lei 9.455/1997. Essa “perda é automática, pois fundada diretamente em lei, logo, não precisa figurar expressamente na sentença condenatória. Basta a Administração, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, executar o ato de exclusão do servidor”. (NUCCI, 2016, p. 866)

Esse mesmo entendimento é defendido por Lima, ao asseverar que a Lei de Tortura dispõe que:

a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Como se percebe, trata-se de efeito automático da condenação transitada em julgado, não dependente de motivação, ou do tempo de duração da pena.

A aplicação desse efeito da sentença condenatória não está condicionada à existência de requerimento expresso nesse sentido constante da peça acusatória. Ora, sendo a perda do cargo, função ou emprego público, conforme disposto no art. 1º, §5º, da Lei n. 9.455/97, consequência automática da condenação, mostra-se dispensável a veiculação, na denúncia, do pedido visando a sua implementação. (LIMA, 2020, p. 1010)

O posicionamento doutrinário acima exposto não encontra dificuldades quando a tortura é praticada por civis. Entretanto, sendo o autor do delito um militar, federal ou estadual, a questão ganha relevo constitucional em razão de garantias específicas fixadas na Constituição Federal para os oficiais, seja das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares, e para as praças das Forças Auxiliares.

No que concerne ao oficial, a Constituição Federal estabelece duas situações:

I) somente perderá o posto e patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra (art. 142, § 3º, VI); e

II) se for condenado na justiça comum ou militar, a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior (art. 142, § 3º, VII). Insta esclarecer que as regras do artigo 142, § 3º, aplicam-se aos oficiais das Forças Auxiliares em razão do disposto no artigo 42, § 1º, da Carta Magna. (BRASIL, 1988)

O tratamento das garantias inerentes às praças das Forças Armadas e das Forças Auxiliares é dicotômico no texto constitucional.

A Constituição Federal não prevê regramento específico quando da prática de crime, comum ou militar, por praças das Forças Armadas, aplicando-se a elas o disposto no artigo 102 do Código Penal Militar, que trata da exclusão das Forças Armadas em caso de condenação à pena privativa da liberdade superior a dois anos. (BRASIL, 1969)

A situação é distinta em relação às praças das Forças Auxiliares. Nesse caso, a Constituição Federal é expressa ao estabelecer em seu artigo 125, § 4º, in fine, que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (BRASIL, 1988)

Segundo Lima (2020, p. 1011), antes da entrada em vigor da Lei 13.491/2017, quando o delito de tortura gozava da natureza jurídica estrita de crime comum, não se verificava a necessidade de julgamento perante a Justiça Militar para fins de aplicação da perda do cargo, função ou emprego público, conforme art. 1º, § 5º, da Lei 9.455/1997. (LIMA, 2020, p. 1012)

E, neste sentido, destaca-se a ementa do Agravo de Instrumento n. 769637 AgR-ED-ED/MG, julgado pela 2ª Turma do STF:

E M E N T A: CRIME DE TORTURA – CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA A OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR – PERDA DO POSTO E DA PATENTE COMO CONSEQUÊNCIA NATURAL DESSA CONDENAÇÃO (LEI Nº 9.455/97, ART. 1º, § 5º) – INAPLICABILIDADE DA REGRA INSCRITA NO ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO, PELO FATO DE O CRIME DE TORTURA NÃO SE QUALIFICAR COMO DELITO MILITAR – PRECEDENTES – SEGUNDOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – INOCORRÊNCIA DE CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU OMISSÃO – PRETENSÃO RECURSAL QUE VISA, NA REALIDADE, A UM NOVO JULGAMENTO DA CAUSA – CARÁTER INFRINGENTE – INADMISSIBILIDADE – PRONTO CUMPRIMENTO DO JULGADO DESTA SUPREMA CORTE, INDEPENDENTEMENTE DA PUBLICAÇÃO DO RESPECTIVO ACÓRDÃO, PARA EFEITO DE IMEDIATA EXECUÇÃO DAS DECISÕES EMANADAS DO TRIBUNAL LOCAL – POSSIBILIDADE – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO CONHECIDOS. TORTURA – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM – PERDA DO CARGO COMO EFEITO AUTOMÁTICO E NECESSÁRIO DA CONDENAÇÃO PENAL.

- O crime de tortura, tipificado na Lei nº 9.455/97, não se qualifica como delito de natureza castrense, achando-se incluído, por isso mesmo, na esfera de competência penal da Justiça comum (federal ou local, conforme o caso), ainda que praticado por membro das Forças Armadas ou por integrante da Polícia Militar. Doutrina. Precedentes.

- A perda do cargo, função ou emprego público – que configura efeito extrapenal secundário – constitui consequência necessária que resulta, automaticamente, de pleno direito, da condenação penal imposta ao agente público pela prática do crime de tortura, ainda que se cuide de integrante da Polícia Militar, não se lhe aplicando, a despeito de tratar-se de Oficial da Corporação, a cláusula inscrita no art. 125, § 4º, da Constituição da República. Doutrina. Precedentes.   

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Em seu voto condutor, o Ministro Celso de Mello, relator, asseverou que:

Não obstante esse juízo de incognoscibilidade, que se legitima em razão do caráter infringente de que se revestem estes segundos embargos de declaração, vale observar, tal como assinalado nos julgamentos anteriores do presente caso, que a tortura, tipificada na Lei nº 9.455/97, constitui prática criminosa juridicamente equiparável aos delitos hediondos, não se qualificando como crime militar, a significar, portanto, quando cometida por policial militar, que pertencerá à Justiça comum (e não à Justiça castrense), a competência para processar e julgar esse ignominioso ilícito penal.

Disso resulta ser inaplicável a norma inscrita no § 4º do art. 125 da Constituição da República, que tem como pressuposto – para efeito de instauração do procedimento administrativo de decretação da perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças – a existência de crime militar definido em lei, circunstância de todo inocorrente na espécie destes autos, pois – insista-se – o crime de tortura não configura delito de natureza castrense.

É sempre importante rememorar, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a natureza jurídica do crime de tortura, tal como definido na Lei nº 9.455/97, tem acentuado não se tratar de delito militar (HC 92.181/MG, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – RHC 104.751/MG, Rel. Min. LUIZ FUX, v.g.), o que legitima, plenamente, o exercício, por órgãos da Justiça comum, da competência penal em relação àquela infração delituosa, ainda que praticada por membros das Forças Armadas ou, como sucede na espécie, por integrantes da Polícia Militar. (grifos originais do voto)  

O Supremo Tribunal Federal, em inúmeros precedentes, já havia consolidado o entendimento de que, como explicitado pelo Ministro Celso de Mello, o delito de tortura tem natureza jurídica de crime comum.

Cumpre aqui observar que o entendimento da Suprema Corte é anterior ao advento da Lei 13.491/2017, que, alterando o artigo 9º, inciso II, do Código Penal Militar, passou a tipificar o crime militar de tortura quando presente um dos requisitos das alíneas “a” a “e” do referido inciso.

No caso em análise, a inteligência dos precedentes do STF e, em especial, do contido no voto do Ministro Relator, ao fundamentar que a aplicação da norma inscrita no § 4º do art. 125 da Constituição da República somente incidirá quando se estiver diante de um crime militar definido em lei, permite formular quatro teses harmônicas assentadas em um novo paradigma:

I) se o delito de tortura estiver classificado como crime comum, independentemente de quem seja o agente, a perda do cargo, função ou emprego público é automática, cabendo tal decisão à Justiça comum;

II) se o delito de tortura estiver classificado como crime militar e o sujeito ativo for praça das Forças Armadas, a competência para determinar a exclusão das Forças Armadas é do juiz federal da Justiça Militar da União;

III) se o delito de tortura estiver classificado como crime militar e o sujeito ativo for oficial das Forças Armadas, a competência para decretar a perda do posto e patente é do tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;

IV) se o delito de tortura estiver classificado como crime militar e o sujeito ativo for oficial ou praça das Forças Auxiliares, a competência para decretar a perda do posto e patente do oficial e da graduação da praça será do Tribunal de Justiça Militar nos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, ou do Tribunal de Justiça comum nos demais Estados da Federação e no Distrito Federal.

Aliás, esse também é o entendimento de Lima ao ressaltar que:

Como se percebe, enquanto a tortura era considerada crime comum – antes da Lei n. 13.491/17 -, não havia necessidade de processo perante a Justiça Militar para fins de aplicação do art. 1º, §5º, da Lei n. 9.455/97. Todavia, a partir do momento em que a tortura passou a ser crime militar se acaso praticada numa das condições do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças passa a depender de procedimento específico que deve tramitar perante a Justiça Militar. (LIMA, 2020, p. 1012)

Portanto, entendo que, diante de um crime militar de tortura, não cabe ao juiz federal da Justiça Militar da União ou ao juiz de direito do Juízo Militar no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, órgãos de primeiro grau, decretar a perda do posto e patente do oficial e da graduação de praça, uma vez que se trata de competência originária de Tribunal, seja Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que foi criado ou o próprio Tribunal de Justiça comum. Exceção feita às praças das Forças Armadas. 

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Sobre o autor
Joaquim Manoel Alves Cardoso

Advogado. Oficial da reserva da PMMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Joaquim Manoel Alves. Crime militar de tortura: Inconstitucionalidade da decretação automática da perda do posto e patente de oficial ou da graduação da praça por juiz de primeiro grau da Justiça Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6537, 25 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90761. Acesso em: 28 mar. 2024.

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